02 Junho 2014
A matéria do Estadão sobre a suposta “união” dos Black Blocs com o PCC é uma das maiores peças publicitárias em formato jornalístico que eu já li nos últimos anos. Trata-se de uma matéria que tem ótimas reflexões em potencial para problemas reais, porém com uma abordagem inacreditavelmente manipuladora para nossos tempos de Internet.
Mostro por A mais B.
O artigo é de Gustavo Barreto, publicado por Fazendo Media, 01-06-2014.
A reportagem, se efetivamente lida, nada fala de prático sobre a suposta união entre os BB e o PCC. Cita o “caos” que foi prometido pelos entrevistados durante a Copa do Mundo – não na forma violenta, eles ressaltam –, em depoimento gravado em vídeo. Mas o vídeo em nenhum momento fala em PCC.
No “lead” – jargão jornalístico que supostamente identifica a parte da reportagem com todas as informações básicas –, diz-se o seguinte de importante sobre o PCC:
“A gente tem certeza de que o crime organizado, o PCC, vai causar o caos na Copa, e a gente vai puxar para o outro lado”, continua o veterano. “Não temos aliança nem somos contra o PCC. Só que eles têm poder de fogo muito maior do que o MPL (Movimento Passe Livre, que iniciou as manifestações, há um ano, com ajuda dos black blocs). Pararam São Paulo”, acrescentou, lembrando as ações do PCC na década passada.
Ou seja: nada. Qual a relação com o PCC? Nenhuma. E qual o título do texto, então? “Black Blocs prometem caos na Copa com ajuda do PCC”…
Cita fontes sem qualquer possibilidade de verificação, já que o Black Bloc é uma tática, sem líderes, sem organização. É uma lógica, uma resposta à repressão (física ou não). Concordando ou não, eu não posso simplesmente ignorar essa realidade.
Mas, mesmo assim, levando em consideração a prerrogativa do repórter de manter em sigilo suas fontes e o esforço em ouvir alguns dos seus supostos integrantes, onde estão as evidências de que os black blocs se uniram ao PCC? Não existem. Pelo menos nesta matéria. Basta ler.
A falácia da união nos presídios
Na outra parte, afirma que integrantes black blocs foram “bem recebidos” nos presídios. É verdade, em parte. Na prisão há muita gente da periferia, esquecida pelo sistema. Difícil entender porque se entendem? Não. Além disso, alguns chegam com coisas incríveis, como ideias. Mais ainda: ideais. Citam autores, alternativas ao sistema capitalista. Os presidiários – que, caso alguém não saiba, são seres humanos, têm família, histórias de vida etc., gente como a gente – ficam interessados mesmo. E daí?
Um integrante do Movimento do Passe Livre (MPL) já me confidenciou: deu uma aula por lá, quando foi preso ano passado. Havia grande interesse. É óbvio. É história, cidadania, sociologia. Quem não gosta de conhecimento? Os presidiários gostam. Tratam alguns deles como professores. Normal. Quer julgar? Seja bem-vindo. Mas não há nada de novo ou intrigante. Infelizmente faltou essa percepção à matéria, ansiosa que estava em criminalizar o grupo. Bando de bandidos, todos juntos agora, devem ter pensado. Lamentável, é o que posso dizer, tamanha falta de perspectiva social.
Além disso, isso não é uma norma. Não é comum. Tanto que, no Rio, uma das medidas solicitadas pelo Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura local foi, justamente, a separação entre os manifestantes e os presos comuns, para evitar que os casos de tortura fossem ainda mais frequentes. E assim foi feito. Essa é a realidade, infelizmente ignorada pela maior parte dos meios de comunicação, que nem sequer sabem que tal Mecanismo existe.
A velha questão da aç]ao e reação
Em seguida, citam na matéria alguns dos crimes do grupo anarquista: “(…) queimaram carros de emissoras de TV e da polícia, depredaram 14 bancos (em 40 minutos) e a sede da Prefeitura. Protegidos por barricadas e beneficiados pela surpresa e pelo despreparo da polícia, não foram pegos.”
Quem não entende essa reação não conhece como age a polícia militar na periferia. Ou simplesmente ignora. Esses crimes em nada se equiparam ao que se faz com estes mesmos jovens, diariamente. A polícia entra, atira contra a população e vai embora. Há vídeos, relatórios, reportagens. Muita coisa documentada, mesmo que não plenamente. E os números estão aí, pra mostrar essa realidade.
É a completa ausência do Estado Democrático de Direito, na maior parte das vezes. Por isso a adesão de mais e mais jovens. Todo jovem que joga uma pedra ou mesmo um coquetel molotov já apanhou da polícia em algum momento de sua vida – no mínimo – ou várias vezes. No outro extremo, já perdeu algum conhecido ou parente por meio de execução sumária. Como não ter raiva? Eu não sei responder. Não sei se tem resposta fácil.
Um trecho da matéria – lá no final… – é uma notável evidência:
“Um rapaz de 20 anos conta que aderiu à tática depois de levar três balas de borracha da polícia – uma na perna esquerda e outra nas costas, no distúrbio na Rua Maria Antonia, no dia 13 de junho; e uma no estômago, na manifestação do 7 de Setembro, a que teve a maior participação de black blocs e de seus seguidores adolescentes. (…) A bailarina afirma ter sido assediada sexualmente por policiais, antes de aderir à tática.”
Um outro rapaz conta sobre um abuso de autoridade policial ocorrido no centro de São Paulo:
“Segundo ele, o soldado na Praça da Sé não conhecia a lei, e teria dito: “Se fosse noutro momento, você teria apanhado”. Os moradores da periferia que acompanharam o episódio concordaram que ele só teve esse desfecho porque ocorreu no centro da cidade, e na presença da imprensa. “Se você diz na comunidade ‘quero me identificar na delegacia’, não sai vivo de lá”, comenta um rapaz que mora com o pai, auxiliar de limpeza, no extremo sul de São Paulo.”
Este caminho, o da ação policial e da reação da periferia – política, geográfica ou, na maior parte das vezes, ambas – é boa? Claro que não. Mas ignorá-la criminalizando este movimento como se fossem de alguma facção criminosa é uma das práticas mais baixas que eu conheço.
O Estado quase sempre reage com porrada e bomba
Citando a matéria: “Ocupamos durante cinco meses a frente da Assembleia Legislativa, cheios de boas intenções”, lembra um estudante de Direito de 22 anos. “Apresentamos uma pauta de reivindicações. Não deu em nada. Manifestação pacífica não dá resultado.”
E segue a reportagem do Estadão: “No último ano, houve 30 protestos, 4 muito violentos, que foram os mais noticiados”, contabiliza um profissional de Marketing e estudante de Ciência Política de 32 anos, que doutrina os black blocs e seus seguidores com textos anarquistas. “Os outros não receberam uma linha.”
Ora bolas, e não é verdade? É verdade. É a mais pura verdade. Um trecho lúcido da matéria:
“(…) A socióloga espanhola Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora dos black blocs, vê uma distorção nessa atenção dada às depredações. “Num país onde mais de 50 mil pessoas são mortas por ano, como é possível essa histeria com 40 garotos?”, pergunta. “Um país que naturaliza tanto a sua violência não tolera ver a violência na Avenida Paulista.” O veterano acrescenta: “No Brasil, choca mais 14 bancos quebrados do que a polícia matar 6 crianças”.
E o melhor: eles estão lendo Marcuse, apresentado como “ideólogo da contracultura”, para quem “não temos que quebrar o sistema nem por dentro nem por fora, mas por suas brechas”.
A mensagem do grupo entrevistado
A reportagem tem essa vantagem de, no fundo, ser boa. Basta ignorar o título e o lead, politicamente agradáveis para a cabeça do editor.
No vídeo, o grupo entrevistado – e aqui pouco importante são black blocs ou não – passa sua mensagem:
“No que tange às manifestações, não são também todos os policiais que saem provocando. Mas todos eles acabam acatando ordens. Nós respeitamos o indivíduo que está dentro daquela farda, porque o policial já é o Estado. Eu tenho quase certeza que o ser humano que está dentro daquela farda perdeu o livre arbítrio, porque um ser humano que somente sabe acatar ordens, que ataca outra vida humana por ordens, sem raciocinar, é extremamente complicado. É muito mais perigoso a obediência cega do que a desobediência.”
Sobre a violência invisibilizada:
“Pega um menino que vê a mãe sendo explorada durante a vida inteira, a família é pobre, a polícia bate nele porque ele é negro, porque ele é pobre, porque ele mora na periferia, aí ele vai pruma manifestação e vê que ele pode gritar e, no momento ápice dos sentimento dele, da revolta dele, ele pega a pedra e taca num banco. E a população, ela tá tão manipulada que ele entende aquele pedra como muito mais violenta do que a morte todo dia de uma pessoa na fila do SUS, de uma pessoa na mão da polícia. Acha mais trágico o vidro do banco ser quebrado do que dez pessoas sendo mortas pela polícia na periferia. Duzentas e cinquenta mil famílias foram desapropriadas por causa da Copa do Mundo. Quem divulgou isso?”
E o que desejam:
“Nós queríamos viver em uma sociedade livre, livre da opressão, uma sociedade onde todos possam viver dignamente, e não onde você trabalha, rala a vida inteira para, depois de contribuir sua vida inteira, quando se aposentar você ainda tem que continuar trabalhando pra sobreviver, porque ninguém vive sua vida, nenhum trabalhador honesto vive sua vida, todos os trabalhadores sobrevivem do seu trabalho, e sobreviver não é viver.”
Saiba o que é efetivamente a tática Black Bloc, em um relato ponderado e inteligente, a partir do texto do professor Pablo Ortellado: http://bit.ly/1e44eKs
E pare de ler só a manchete. Faz mal para a democracia.
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Ler só a manchete faz mal para a democracia: os black blocs voltam à grande mídia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU