Por: Jonas | 29 Mai 2014
“No domingo passado pudemos visitar as ruínas. Tiramos delas três lições enquanto as contemplamos, talvez menos calmos do que parecemos”, pondera Boaventura de Sousa Santos, comentando o resultado das eleições na Europa no último domingo. O artigo é publicado por Outras Palavras, 28-05-2014.
Eis o artigo.
A Europa que conhecíamos até ontem era a Europa virtuosa, construída politicamente com o objetivo de evitar uma terceira guerra europeia, integrando a Alemanha, sempre imprevisível, num espaço politico mais amplo. Assim se esperava consolidar as democracias europeias por via de formas intensas de cooperação e transformar a Europa num continente de promoção da paz num mundo ameaçado pela guerra fria (e por vezes quente) promovida pelos dois imperialismos, o norte- americano e soviético. Já́ sabíamos, por experiência dolorosa própria, que este projeto tinha colapsado. No domingo passado pudemos visitar as ruínas. Tiramos delas três lições enquanto as contemplamos, talvez menos calmos do que parecemos.
O que vivemos foi em grande medida desolador, como é próprio das ruínas, sobretudo enquanto fumegam. O brilho dos vernizes ainda é visível nas mobílias destroçadas onde o fogo ainda não chegou. A história europeia sabe que um partido de extrema-direita pode ser eleito democraticamente para destruir a democracia. Começou assim a ascensão do nazismo. Nas eleições europeias, a extrema-direita e os ultraconservadores ganharam em França, Reino Unido, Dinamarca e ficaram em segundo na Hungria, Letônia e, em terceiro, na Áustria e na Grécia. Obviamente que estes partidos não teriam os mesmos resultados se as eleições fossem para os parlamentos dos diferentes países. E, por isso, não há, por agora, o perigo da nazificação dos países europeus. Mas há certamente o perigo da nazificação da ideia de Europa. E não pode deixar de ser salientado que o nazismo é uma herança cruel da Alemanha do século XX e que, se é verdade que a Alemanha federal soube ao longo dos anos controlar a pulsão nazi no seu país, deixou-a à solta no resto da Europa. Imagine-se o que se diria hoje de Portugal se os fascistas europeus pintassem a cruz de Cristo pelos cemitérios judaicos de toda a Europa. Em face da sua história, o modo com a Alemanha lidou com a crise europeia foi criminosa, já que ninguém como ela podia ter travado a pulsão nazi na Europa. Não o fez, e até parece lidar bem com os nazis, desde que não sejam alemães.
A segunda lição das eleições europeias é mais animadora e está nos antípodas da primeira. A contestação desta Europa não vem apenas da direita, vem também da esquerda e tem vários matizes. Syriza na Grécia, Movimento 5 Stelle na Itália, Podemos em Espanha e Coligação Democrática Unitária (CDU) em Portugal. Nestas vitórias vibram as ideias de solidariedade, de coesão social, de democraticidade, de respeito pela soberania dos países que presidiram ao nascimento da Europa e que os diferentes países europeus adotaram como sua no pós-guerra (Portugal, Grécia e Espanha, logo que conquistaram a democracia). Ora, estas ideias começaram a ser contestadas no interior das instituições europeias antes de o serem no interior de cada país (com a exceção de Thatcher em Inglaterra) e foram exercendo uma pressão dessolidária, autoritária, hostil ao modelo social europeu sobre cada um dos países, em especial os mais vulneráveis. Primeiro, usaram o caminho da institucionalidade (euro, tratados de Maastricht, de Lisboa e de livre comércio com a China); depois, o da extra-institucionalidade (causada diretamente pela institucionalidade anterior): a crise. Esta mistificação perversa de salvar a europa (rica) à custa dos países europeus (pobres) acaba de ser denunciada por estes partidos e é neles que reside a esperança. Por que é que o BE, que pertence à família geral dos partidos da esperança, está fora dela? Pessoas notáveis num partido medíocre.
A terceira lição é que os grandes derrotados desta eleição são os partidos que mais contribuíram para a construção da Europa como a conhecemos, os partidos de centro esquerda e de centro direita, que continuam a pensar que, com mais ou menos remendos, esta Europa sobreviverá. Como se compreende que o partido que proclamou ser a alternativa à coligação partidária que presidiu ao maior desastre social em Portugal nos últimos 90 anos fique apenas a uns míseros quatro pontos acima dessa coligação? A ilação é simples: para o PS ser a alternativa tem de se reconstruir em alternativa a si mesmo.
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Boaventura: “Uma Europa acabou” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU