Por: Caroline | 15 Mai 2014
“A tomada de decisões no campo também está, em boa medida, nas mãos dos homens. Na unidade familiar há uma clara repartição de tarefas em função do sexo. Desta maneira, aquelas atividades de caráter e responsabilidade pública (trabalho assalariado, participação em instâncias políticas, transações econômicas relevantes) recaem sobre os homens, enquanto as de caráter privado (trabalho doméstico com cuidado das pessoas dependentes, alimentação e saúde da família) são feitos pelas mulheres. Uma divisão de papéis que outorga ao campesino, e não a campesina, o poder da decisão. Igualmente, a acumulação de trabalho produtivo e reprodutivo, e a não divisão das responsabilidades domésticas, impede que a mulher tenha tempo disponível para participar em espaços de representação pública”. É o que problematiza Esther Vivas, ativista política e social dos movimentos a favor da soberania alimentar e consumo crítico. O artigo é publicado por Público.es, 12-05-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/LsYOZE |
Eis o artigo.
Quando eu era pequena ajudava meus pais em nossa barraca de venda de ovos no Mercado Central de Sabadell (Barcelona). Ia após o colégio ou aos sábados. Nos arredores do mercado, sempre havia aquelas camponesas com suas barracas improvisadas, e aquelas grandes cestas com verdura e frutas frescas. Uma imagem que se repetia em inúmeros mercados. Os anos se passaram, e estas mulheres continuam ali. Todavia quando olhamos o mundo rural, as camponesas são as invisíveis da terra. Quantas trabalharam durante toda a sua vida no campo e não constam em lugar algum? O que é das camponesas? Onde estão? Que futuro as espera?
Sem direitos
O pape da mulher camponesa sempre foi chave no campo. Mulheres que cuidavam da terra, das filhas e filhos, das casas, dos animais. Apesar dos anos, e as mudanças ocorridas no meio rural, estas seguem tendo um peso significativo na agricultura familiar. Calcula-se que 82% das mulheres rurais trabalham no campo, de acordo com dados do Ministério da Agricultura, sendo a maioria na qualidade de conjugues ou filhas, invisíveis, sem direitos, consideradas formalmente, e nas estatísticas, como “ajuda familiar”. O que significa que não constam na seguridade social, não tem acesso a uma indenização por desemprego, acidente, maternidade, uma pensão digna etc.
Nestas circunstâncias, a mulher necessita de independência econômica ao passo de que não possuem uma remuneração pessoal e direta pelo trabalho que realiza, e se torna dependente do marido que ostenta a titularidade da exploração agrária. Trata-se de uma situação que ocorre com frequência nas pequenas propriedades, com baixa renda e sem possibilidade de pagar os impostos da seguridade social e, como consequência, opta-se por pagar ao homem, em detrimento da mulher. Mari Carmen Bueno, do Sindicato dos Trabalhadores do Campo, deixa claro: “Nós não éramos nem mesmo consideradas trabalhadoras, éramos donas de casa de acordo com as estatísticas e entre nós mesmas não tínhamos consciência de sermos trabalhadoras”.
A propriedade da terra é uma fonte clara de desigualdade. Os 76% das propriedades têm como titular e chefe da exploração agrária um homem, frente a 24% que se encontram em mãos de mulheres, de acordo com o Censo Agrário de 2009. Esta última porcentagem tem aumentado recentemente, como explica o Ministério de Agricultura, devido a fato de que em muitos casais com idade avançada, o falecimento do conjugue significa a transferência da propriedade para a esposa. Não é fácil encontrar mulheres jovens ou de idade mediana proprietárias. Deve-se saber que os costumes, habitualmente, consideram como legítimo herdeiro das terras o filho primogênito e homem, de forma que a mulher será herdeira apenas se não tiver irmãos.
Nos casos em que a mulher está à frente da exploração agrícola, esta normalmente é menor, menos rentável e está localizada, majoritariamente, em zonas desfavorecidas ou montanhosas. Um dado que o ilustra bem é que 61% das mulheres titulares de propriedades agrárias são justamente das parcelas marginais e de difícil viabilidade econômica de maneira que, para sobreviver, necessitam de outro emprego e de acordo com o Livro Branco da Agricultura e do Desenvolvimento Rural, tem maior risco de desaparecer. Na Galícia, região central da Europa, por exemplo, encontra-se um quarto das mulheres que são titulares de propriedades e dessas 79% o são de pequenas propriedades.
A tomada de decisões no campo também está, em boa medida, nas mãos dos homens. Na unidade familiar há uma clara repartição de tarefas em função do sexo. Desta maneira, aquelas atividades de caráter e responsabilidade pública (trabalho assalariado, participação em instâncias políticas, transações econômicas relevantes) recaem sobre os homens, enquanto as de caráter privado (trabalho doméstico com cuidado das pessoas dependentes, alimentação e saúde da família) são feitos pelas mulheres. Uma divisão de papéis que outorga ao campesino, e não a campesina, o poder da decisão. Igualmente, a acumulação de trabalho produtivo e reprodutivo, e a não divisão das responsabilidades domésticas, impede que a mulher tenha tempo disponível para participar em espaços de representação pública.
As cooperativas agrícolas, por exemplo, estão altamente masculinizadas. Cerca de 75% de seus membros são homens, frente a 25% de mulheres que também enfrentam importantes barreiras para acender aos seus órgãos de gestão, nos quais sua participação é de apenas 3,5% de acordo com o relatório “A participação das mulheres nas cooperativas agrárias”. Os sócios e as direções da maior parte dos sindicatos agrários são outro claro exemplo, formados essencialmente por homens, apesar de ser um trabalho fundamental e diário da mulher no campo.
Adeus ao mundo rural
O mundo rural, assim mesmo, sofreu uma contínua perda de população, o que significou seu envelhecimento e “masculinização”. Se em 1999, 19,4% dos habitantes do Estado espanhol residia em algum município rural, dez anos mais tarde essa porcentagem havia descendido para 17,7%. Nos municípios com menos de dois mil habitantes, a queda era mais aguda, com a perda de 30% de sua população, de acordo com dados do Censo municipal de 1999 e 2008. A vida rural está se apagando, a migração das pessoas jovens somado ao crescimento demográfico negativo têm sido as causas principais. Ainda que pareça que nos últimos anos, tal tendência tenha se estancado e também tenha se observado uma “volta ao campo” por parte de pessoas da cidade, mesmo que ainda insuficiente, até o momento, para frear o despovoamento.
O mundo rural padece de um envelhecimento acelerado, 22,3% de seus habitantes são maiores de 65 anos, frente a 15,3% das zonas urbanas. Os jovens que querem estudar migram para os grandes centros urbanos, e muitos não voltam mais. A cada vez, o número de mulheres com idade entre os 20 e os 50 anos diminui, como afirma o relatório do Programa de desenvolvimento rural sustentável (2010-2014) do Ministério da Agricultura, produzindo-se uma crescente “masculinização” do campo.
As mulheres migram para as cidades frente à falta de oportunidades de trabalho em seus municípios e pelas “resistências sociais” para que elas assumam trabalhos realizados tradicionalmente por homens. De todo modo, e como assinala a Federação das Associações de Mulheres Rurais, esse fluxo se deve também “a pressão social derivada da presença de papéis e estereótipos de gênero” e a falta de serviço e infraestrutura (escolas infantis, assistência sanitária, transporte público, centro culturais) nos pequenos municípios.
Saúde ameaçada
Outro impacto do sistema agrícola industrial nas mulheres camponesas e no mundo rural ocorre sobre a saúde. Há alguns meses, em um encontro de mulheres camponesas em Tenerife, maior arquipélago das Ilhas Canárias, tive a sorte de encontrar com a bailarina Ana Torres e sua companhia Revolotearte. No tal encontro, realizaram a performance “Primavera Silenciosa”, inspirada na obra literária do mesmo nome da cientista Rachel Carson e onde retratam, brilhantemente, através da dança, o corpo e as imagens e declarações de trabalhadores do campo que explicam em, primeira pessoa, sua experiência.
“Eu me lembro. Nós na planície e o pequeno avião passando sobre nós pulverizando. E nós ficamos paradas, como se estivesse caindo uma chuva. Todas cheias de veneno”, afirma uma das trabalhadoras analisadas. E outro acrescenta: “Não conhecia as luvas, não conhecia uma máscara, não sabia que deveríamos lavar as mãos para sentar e comer, porque ali não se dizia nada. E mais: Sulfatavam, pois sulfatavam. O capataz nos dizia que isso não mata um animal com osso. E nós víamos as lagartas, as lagartixas... e dizíamos ‘Por não terem ossos, é claro, as pobres são mortas’. E assim não iríamos pensar que poderia fazer um mal para você também”.
No Arquipélago Canário, de acordo com a pesquisa da Unidade de Toxicologia Universidade de Las Palmas de Gran Canaria, o uso sistemático de grandes quantidades de agrotóxicos na agricultura intensiva, entre eles o DDT, que foi proibido na Europa no final dos anos 70, teve um impacto direto na saúde de sua população. De acordo com a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, o DDT é uma substância cancerígena: “A exposição crônica ao DDT e derivados está relacionada com diversos tipos de cânceres dependentes de estrógenos, como o câncer de mama”.
De acordo com a pesquisa, que serviu como material de trabalho e documentação para a obra “Primavera Silenciosa”, o conjunto da população canária tem níveis de resíduos de DDT muito superiores à média europeia. Concretamente, 99,3% dos casos analisados apresentavam algum tipo de resíduo derivado do DDT, sendo as mulheres as mais afetadas. Não é a toa, como o próprio estudo indica, que “as Ilhas Canárias tem as com maiores taxas de incidência e mortalidade por câncer de mama” de todo o Estado. Andaluzia, na região meridional da Espanha, é a segunda comunidade autônoma mais afetada. Há uma relação direta entre agricultura intensiva, uso de agrotóxicos e altos níveis de DDT na população e o impacto na saúde pública, especialmente nas mulheres e, principalmente, nas mulheres camponesas.
A Lei da titularidade compartilhada
Frente esta situação de agressão, falta de direitos e invisibilidade, as mulheres camponesas tem se organizado e exigido mudanças. Uma vitória significativa foi a Lei da Titularidade Compartilhada de Explorações Agrícolas, uma demanda amplamente requerida, e aprovada, finalmente, pelo Governo em setembro de 2011 e que tinha como objetivo favorecer a igualdade real de gênero no campo. Deste modo, a Lei permite as camponesas figurar como contitulares da propriedade, junto ao seu conjugue, administrar e representar legalmente a exploração e seus rendimentos econômicos, e que as ajudas e subvenções correspondam para ambos. Trata-se de deixar de lado o conceito de “ajuda familiar” e reconhecer plenamente o trabalho das mulheres na área rural.
Todavia, e como assinalava a secretaria geral do Sindicato Labrego Galego Carme Freire, apesar da “Lei de Titularidade Compartilhada ser um grande passo no sentido de avançar no reconhecimento dos direitos das mulheres no âmbito profissional agrário”, esta ainda tem carências importantes como, por exemplo, o fato de que “para conseguir essa titularidade, o companheiro ou conjugue deve estar de acordo em que possamos ser contitulares. É como se tivessem que nos dar a permissão para tonar efetivo um direito”. Assim mesmo, a responsável sobre a política territorial do sindicato União de Agricultores na Catalunha Maria Rovira considera que a tal Lei beneficia as maiores propriedade que podem registrar, sem problemas, as mulheres na seguridade social para constar como contitulares, e em consequência, serem consideradas explorações agrícolas “prioritárias”, com maior acesso a ajudas e incentivos fiscais, em detrimento das pequenas propriedades.
Mais de dois anos após ter sido colocada em andamento, seus limites são evidentes e sua aplicação efetiva segue pendente. Em realidade, cerca de apenas cem agricultoras, das 200 mil que não são titulares, solicitaram a contitularidade, devido o escasso interesse da administração em publicizar a medida e a falta de informação e os entraves burocráticos que dificultam sua execução. A responsável da Área de Mulheres da Coordenadoria de Organizações Agrárias e Pecuárias (COAG), Idáñez Vargas, tachou a Lei de ineficaz e criticou “o fracasso absoluto deste texto legislativo pelo seu caráter voluntário e não obrigatório”.
Novo campesinato feminino
Atualmente um novo campesinato começa a emergir no mundo rural. É o que a doutora em geografia e meio ambiente Neus Monllor definiu, em sua tese “Explorant la jove pagesia: camins, pràctiques i actituds en el marc d’un nou paradigma agrosocial”, como “jovens que estão fazendo as coisas de outra maneira, tanto aqueles que vem da agricultura tradicional, como aqueles que são recém chegados. Trata-se de jovens que estão tomando as rédeas de suas atividades, que tentam ser muito autônomas e vender seu produto diretamente, que tem em mente a questão do território e da qualidade... Sobretudo, este novo campesinato rompe com o discurso pessimista e contínuo”.
Este novo campesinato, o papel das mulheres é relevante e fundamental. Em muitos lugares do Estado vemos novas experiências de trabalho no campo encabeçadas por mulheres, na agricultura e na pecuária. Ao mesmo tempo, multiplicam-se as iniciativas que planejam, nas cidades, outro modelo de consumo, com uma relação direta e solidária com os produtos, como são os grupos e cooperativas de consumo agro ecológico, nos quais as mulheres, mais uma vez, desempenham um papel importante. E não nos esqueçamos dos projetos de jardinagem urbana e propostas contra o desperdício de alimentos que têm ganhado importância nos últimos anos, com uma participação ativa das mulheres.
Além da necessária coordenação entre essas experiências que apostam em outra produção, distribuição e consumo de alimentos, creio ser imprescindível um olhar, e uma reflexão, feminista para o seu trabalho. Algumas das dificuldades que estas podem enfrentar são idênticas, a partir de uma perspectiva de gênero. As reflexões conjuntas de suas mulheres, sem dúvida alguma, podem significar um passo adiante.
Onde estão as camponesas? Era o que nos perguntávamos no início do artigo. As camponesas estão aqui, à frente, e pisando mais forte do que nunca.
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Onde estão as camponesas? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU