15 Mai 2014
O geógrafo David Harvey diz que para reparar a desigualdade será preciso mais do que arranjos.
A reportagem é de Scott Carlson, publicada por The Chronicle Review, 12-05-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
David Harvey imploraria a você imaginar a vida sem o capitalismo, mas isso caso você conseguisse. Possibilidades existem. Mesmo se você se encontra perplexo com a manipulação do dinheiro fantasma em Wall Street, perturbado com a crescente desigualdade social ou desgostado com os executivos das empresas, você provavelmente ainda concebe o mundo em termos de lucros, propriedade privada e livres mercados, com uma mão invisível sempre no leme.
Para Harvey, professor de antropologia e geografia no Centro de Pós-Graduação da Universidade Municipal de Nova York – CUNY (sigla em inglês), tal mundo está chegando ao fim. Na obra “Seventeen Contradictions and the End of Capitalism” [Dezessete contradições e o fim do capitalismo] (Oxford University Press), Harvey examina o que considera os elementos insustentáveis do capital e analisa como eles podem produzir um sistema desigual, destrutivo e propenso a crises. O livro representa uma condensação dos 40 anos de estudos do autor sobre a obra de Karl Marx, e à sua própria maneira não deixa de ser uma tentativa de mudar o diálogo a respeito do que não está funcionando e do que é possível – em especial quando muitos colocaram Marx nas lixeiras da história.
“Estava cansado de ver citações de Marx de uma maneira que me colocava com estando completamente errado”, disse Harvey em seu departamento na CUNY, nas proximidades do edifício Empire State. “Em certo sentido, aqueles para quem estou escrevendo são os que dizem: ‘Quem é esse tal de Marx?’. Eu quis fazer as coisas simples o suficiente para que as pessoas pudessem entender, sem ser simplista”.
O novo livro decorre de uma carreira de estudos que tem não só ajudado a definir o estudo da geografia como também ultrapassou várias disciplinas. J. Richard Peet, professor de geografia na Universidade de Clark, diz que Harvey desempenhou um papel importante na renovação de uma disciplina “decrépita” nas décadas de 1960 e 1970, e ajudou a estabelecer a geografia como um dos campos mais esquerdistas na academia. Seu livro “Explanation in Geography” [Explicação em geografia] (St. Martin’s Press, 1969) foi o “principal manual positivista” da área, diz Peet. Foi seguido por “The Limits to Capital” [Os limites do capital] (University of Chicago Press, 1982), análise amplamente traduzida e impressa, e por “The Condition of Postmodernity” [A condição da pós-modernidade] (Blackwell, 1989), um exame multidisciplinar das sensibilidades e práticas contemporâneas que levou o autor a ter destaque internacional.
Formado em geografia na Universidade de Cambridge no início de 1960, Harvey descobriu Marx em 1970, após desembarcar em Baltimore, na Universidade Johns Hopkins. Aí ele já se sentia limitado à teoria tradicional das ciências sociais na qual teve sua formação, e a Cidade Charmosa [como é conhecida a cidade de Baltimore] – uma localidade racialmente segregada e empobrecida que ainda se recompunha dos tumultos de 1968 – provou ser um ambiente propício para o despertar. “Quando vim da Inglaterra para Baltimore, foi um pouco chocante ser mergulhado naquilo que estava acontecendo na cidade”, declara. “Olhei para a situação e pensei: ‘Não consigo ver como entender tudo isso, dadas as técnicas que me estão disponíveis, e talvez eu devesse procurar por algo mais’. Foi aí que comecei a ler Marx”.
Ele participou de uma comissão universitária que analisava os problemas de moradias na cidade e, ao escrever o relatório para os representantes locais, pegou emprestado ideias da obra “Das Kapital”. Encontrou ressonância na análise de Marx com o conflito entre os valores de uso (o valor, digamos, de uma casa como um abrigo) e os valores de troca (seu valor como propriedade de compra e revenda), e na noção de que o capital muda os problemas de lugar (como quando aflição e gentrificação se alastram nos bairros), sem nunca resolvê-los. Harvey diz que os representantes da cidade – independentemente de seus pontos de vista políticos – acharam perspicaz o relatório. “Eu não disse a eles que estava me baseando em Marx”, declara o autor.
“Quanto mais ele funcionava para mim e para outras pessoas, mais confiança eu tinha de que este não era um sistema maluco, mas que na verdade era bastante interessante”.
Nos anos seguintes, o seu trabalho focou a urbanidade, a política, a economia e o capitalismo. Robert Pollin, professor de economia na Universidade de Massachusetts em Amherst, pede para seus alunos ler o livro de Harvey intitulado “A Brief History of Neoliberalism” [Uma breve história do neoliberalismo] (Oxford, 2005), que relata o projeto de 40 anos que visou substituir a economia keynesiana e sua noção dos limites do setor público na iniciativa privada pelas ideologias de livre mercado que prevalecem hoje.
“A meu ver, ele é um gigante”, diz Pollin. Porém este seu reconhecimento por Harvey não é comum na disciplina de economia, geralmente mais conservadora. A maioria dos economistas com os quis fiz contato deu uma ou duas respostas quando lhes perguntei sobre a obra de Harvey: eles sabiam que este autor era importante, mas nunca o tinham lido, ou nunca tinham ouvido falar dele”.
Este é um sinal do foco dos economistas voltado para dentro, e não um condenação da obra de Harvey, diz Pollin. “Não há dúvida de que Harvey é um importante pensador”. Mas na cultura sobrecarregada do capitalismo nos Estados Unidos, ser um intelectual marxista – mesmo, segundo Thomson Reuters, estando entre os acadêmicos mais citados no mundo – significa ser ignorado na praça pública muitas vezes.
“Eu me dou bem na BBC, mas não na NPR”, declara. “Há uma espécie de tabu na grande mídia; não se leva nada disso a sério”.
O livro “Seventeen Contradictions and the End of Capitalism” pode ser a obra que apresenta Harvey para uma audiência mais ampla. Afinal, ela chega num momento propício.
Lidar com a desigualdade de renda está no tipo da agenda do presidente Obama para o ano. Desde que o movimento Occupy se abancou no Zuccotti Park, em Nova York, o público tem estado mais consciente da consolidação do poder entre os “1%” – termo que os manifestantes popularizaram. Marx voltou a estar presente entre jovens intelectuais; Benjamin Kunkel, em “Utopia or Bust” [Utopia ou fracasso] (Verso Books), sua nova exploração do marxismo contemporâneo, passa seu capítulo primeiro discutindo Harvey.
“Se fosse preciso escolher alguém que fosse o expositor de Marx para a presente geração, este seria David Harvey”, diz Timothy Shenk, doutorando em história pela Universidade de Columbia, que estuda marxistas atualmente em destaque e que recentemente escreveu sobre os “marxistas milleniais” para a revista The Nation. “É o seu dom de uma prosa lúcida que o distingue. Não consigo imaginar outra pessoa que seja melhor em expor claramente uma interpretação distinta de Marx”.
O cenário americano foi posto, recentemente, a questionar o capitalismo, com a turnê do destacado acadêmico do momento, Thomas Piketty. O livro do economista francês “Capital in the Twenty-First Century” [O capital no século XXI] salientou a deriva do capitalismo em direção à desigualdade e criticou o foco dos economistas na teoria pura.
Embora Harvey aprecie a maneira como Piketty “trouxe de volta parte da tradição humanista” à economia, ele acredita que o livro se centra demais nas desigualdades sociais que o capital produz, e não nas complicadas causas originais de seus problemas.
“Piketty tem uma fonte fantástica de informação em termos de história da desigualdade de riqueza e renda, e isso é bastante útil, mas é possível ler o mesmo livro sem ter ideia do que aconteceu em 2007 e 2008 – quer dizer, sem saber por que os Lehman Brothers faliram, de onde a crise surgiu”, declara. “O que tentei mostrar em ‘Seventeen Contradictions’ é que o capital constitui um sistema multifacetado, com contradições entrelaçadas que são muito ricas.
O livro começou exatamente com aquilo que desencadeou a crise de 2008: o conflito entre os valores de uso e os valores de troca, em particular na habitação, e a forma como as pessoas foram privadas de suas casas por causa que o setor imobiliário se tornou um investimento especulativo. De forma crescente, aponta o autor, mais necessidades são definidas e dominadas por seu valor de troca, enquanto o capital busca por novos campos nos quais jogar. “Por essa razão, muitas categorias dos valores de uso que, até então, eram supridas sem encargos pelo Estado foram privatizadas e transformadas em commodities: habitação, educação, saúde e serviços públicos, todos foram nesta direção em muitas partes do mundo”, escreve. “A escolha política está entre um sistema transformado em commodity (ou mercantilizado) que serve suficientemente aos ricos e um sistema que se centra na produção e na provisão democrática dos valores de uso para todos, sem quaisquer mediações do mercado”.
As demais contradições se desdobram a partir daí. Por exemplo, o valor do dinheiro, especialmente quando ele não está vinculado a nenhum padrão de metal tangível; a relação entre capital e mão de obra, na qual o capital busca aumentar os lucros e a produtividade enquanto que a mão de obra busca aumentar o seu padrão de vida; a retórica de liberdade do capital versus a realidade, na qual ele domina a mão de obra e os pobres.
Mais para o final do livro, Harvey explora as “contradições perigosas”: as exigências do capital de um crescimento complexo sem fim, a destruição ecológica que ele inflige e, no último capítulo, a “alienação universal”, na qual explora as forças que impedem um trabalho significativo e incentivam um consumismo insípido. O capital pode sobreviver a suas contradições, escreve, na medida em que ele acumula mais fardos – na forma de desigualdade de classe, de degradação do meio ambiente e de cerceamento da liberdade humana – sobre as pessoas e instituições que já o sustentam.
A pergunta central é: Para onde as coisas vão a partir daqui? Harvey pede por um “humanismo revolucionário que possa se aliar com aqueles humanismos com base nas religiões (...) para combater a alienação em suas múltiplas formas e mudar o mundo em suas formas capitalistas”.
Ele pede aos leitores para imaginarem uma economia onde as necessidades de alimentação, moradia e educação não sejam tomadas segundo um sistema de mercado baseado na maximização dos lucros; uma sociedade onde o dinheiro “apodreça”, não podendo portanto ser acumulado; onde o ritmo de trabalho seja desacelerado para acomodar empreendimentos criativos e a vida social; e onde uma economia de “crescimento zero” seja um desejável estase, e não uma emergência nacional.
Pode parecer exagero, mas Harvey não apresenta fórmulas para a criação de um tal mundo. Pollin, o economista da Universidade de Massachusetts, diz que esta é uma de suas maiores frustrações com a obra de Harvey: “Ele é muito parecido com Karl Marx, ou seja, é muito mais forte na crítica do que no pensar caminhos viáveis de superação. Se alguém verdadeiramente estiver preocupado com as soluções, não deverá apenas escrever tratados sem pensar seriamente sobre o que deve ser feito”.
Por sua vez, Harvey diz que qualquer revolução teria que começar “mudando concepções mentais do que é uma vida boa”, e que, em parte, se faz isso mudando a linguagem. O Occupy deu início a este trabalho definindo o “1%”.
“Vimos isso no movimento pelos direitos civis e no movimento LGBT”, diz ele. “Quando se muda a linguagem, é possível mudar a forma como as pessoas pensam e suas concepções mentais. E quando isso muda, pode-se começar a exigir novas políticas”.
Mas ele reconhece uma miríade de desafios. A maioria de nós, diz o autor, foi “neoliberalizada”: fomos levados a acreditar nos credos de uma campanha bem-financiada que exalta o individual, que privatiza os serviços sociais e as instituições públicas, além de desprezar o potencial dos governos. A esquerda, diz, se encerra “numa política que descansa sobre narrativas de vitimização”, as quais não inspiram solidariedade. Organizações não governamentais, principal ferramenta usada atualmente para abordar as desigualdades, têm o apoio dos ricos e, portanto, não podem criticar a riqueza e a acumulação que as alimentam.
O endividamento pessoal, que surgiu como um grande fardo nas últimas décadas, pode ser o desafio mais crucial. “Uma das coisas relacionadas ao endividamento é que ele tende a descartar o futuro: o sujeito já o gastou”, diz Harvey. “É bastante difícil ter uma imaginação de algo radicalmente diferente quando o seu futuro já está preso a alguma continuação do capital”.
Em algum momento, acredita o autor, o sistema não poderá continuar. Nas páginas finais do livro “Seventeen Contradictions”, ele traz o espectro da violência como uma resposta potencial às iniquidades do capital: os distúrbios e protestos na Turquia, no Egito, no Brasil e na Suécia no ano passado “se parecem, mais e mais, com os tremores prévios de um terremoto que irá fazer parecer brincadeiras de criança as lutas revolucionárias pós-coloniais da década de 1960”.
“Quanto mais o tempo passa” – diz Harvey silenciosamente em seu departamento, em Nova York – “menos eu acho haver uma possibilidade de que esta será uma transição pacífica”.
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Mapeando uma nova economia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU