02 Mai 2014
Na audiência em que se apresentou o relatório preliminar sobre o caso Riocentro, nesta terça-feira 29, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, foi categórico: "O atentado a bomba do Riocentro não é um caso isolado. É uma política de Estado praticada por agentes públicos, com recursos públicos contra a população".
A reportagem é de Marsílea Gombata, publicada por Carta Capital, 29-04-2014.
Segundo Dallari, a tentativa de atentado no show do Dia do Trabalhador ocorreu em um contexto que, ao longo de dois anos, contabilizou mais de 40 atentados a bomba no País. Na ação, um soldado morreu e outro ficou ferido a caminho do evento. "Esses atentados praticados por agentes do regime militar se converteram em uma política de Estado entre 1980 e 1981", afirmou o advogado. "Sem dúvida nenhuma, o objetivo dessa política era paralisar o processo de abertura, de redemocratização do País que já começava a avançar por pressão da sociedade."
O coordenador da CNV explicou ainda que, no âmbito do I Exército (Rio de Janeiro), o conhecimento sobre o atentado no Riocentro era total. “Documentos mostram a participação direta do comandante do I Exército. E as cenas do enterro do sargento Rosário (vítima da bomba que explodiu) são quase uma alegoria: estão presentes justamente o comandante do I Exército, o do DOI-Codi e o próprio policial que depois conduziria o inquérito sobre o caso”, afirmou. Ele se referia à probabilidade de o então chefe do SNI, o general Octávio Aguiar de Medeiros, também estar a par do planejamento, uma vez que o chefe da Agência Central do SNI, o general Newton Cruz, sabia com antecedência sobre o atentado. “Chegamos, portanto, a um plano bastante elevado para dizer com tranqüilidade que se trata de uma política de Estado, e não apenas de que envolvia alguns homens.”
Testemunha do caso, Mauro César Pimentel, 52 anos, ex-policial militar que atualmente trabalha como corretor de imóveis, lembrou em depoimento ter avistado dois cilindros do tamanho de extintores de incêndio de carro dentro do Puma em que estavam os dois autores, o capitão Wilson Machado e o sargento Guilherme do Rosário. Olhou para o carro que era seu “sonho de consumo”, mas logo acabou repreendido por Rosário para que não olhasse. Afastou-se quando lembrou que havia esquecido a carteira no carro de seu amigo e voltou. Depois de se distanciar novamente, ouviu uma explosão que o fez se jogar ao chão. Pimentel, que na época tinha 18 anos, contou ter corrido para prestar socorro a Wilson, que ainda estava vivo, quando viu seus documentos e foi buscar ajuda. Quando voltou, o então capitão havia sido retirado do local.
"Cheguei em casa, procurei um sargento do Exército que eu conhecia, e ele me disse: ‘Se tu quer viver, constituir família e ser alguém na vida, cale-se e peça para seus amigos se calarem também, porque vocês vão morrer. E se disser que falou algo para mim vou negar e dizer que vocês estão malucos’.”
Um ano mais tarde, em 1982, entrou para a Polícia Militar. A partir de então teve medo e não falou mais sobre o que testemunhou naquele 30 de abril de 1981. “Convivi 30 anos da minha vi da com esse silêncio, nem minha esposa nem meus filhos souberam", disse Pimentel ao contar que o Palácio Guanabara o havia chamado para conversar sobre se deveria ou não receber proteção depois de proferir seu testemunho nesta terça-feira 29.
Além do depoimento de Pimentel, foi apresentado o testemunho do almirante Júlio de Sá Bierrenbach, 94 anos, cuja declaração foi gravada em vídeo. Ambos afirmaram que os militares tinham bombas no carro para um atentado com muito mais vítimas e que o primeiro Inquérito Policial Militar (IPM) foi manipulado desde o início para colocar Wilson Machado e Guilherme do Rosário, que morreu na explosão, como vítimas e não autores do crime.
Inquéritos. A primeira investigação, de 1981, acaba por vitimar os militares atingidos pelo artefato ao tentar disseminar a ideia de que eles “estavam em serviço” e cumprindo uma missão de informações por determinação superior. O inquérito conclui também que os agentes e órgãos de segurança eram alvo dos grupos de oposição e ainda que foram identificados como autores do atentado a VPR e o MR-8, à esquerda, e o Comando Delta, à direita.
Bierrenbach era ministro do Superior Tribunal Militar (STM) quando o inquérito policial militar sobre o Riocentro chegou àquela instância para ser julgado. O caso veio arquivado da auditoria militar onde tramitou e o almirante foi o único a votar contra o arquivamento do processo, a pedir que Wilson Machado continuasse a ser investigado e a apuração, retomada.
Logo após Bierrenbach proferir seu voto na discussão sobre o arquivamento do IPM do Riocentro, o STM realizou uma sessão secreta, convocada pelo ministro Reinaldo Mello de Almeida para que “pudessem os Ministros oriundos do Exército manifestar, de forma veemente, sua revolta contra o modo profundamente desrespeitoso como foram tratados pelo Exmo. Sr. Ministro Bierrenbach, os chefes militares e por extensão o Exército, durante sua manifestação em sessão pública”.
Para Bierrenbach, “o IPM do Riocentro foi uma vergonha”. Segundo ele, a absolvição e as promoções que Wilson Machado recebeu na carreira são uma afronta à verdade. “Vítimas uma ova! Eles fizeram o atentado. O capitão vai ao Riocentro com uma bomba, a bomba explode. O colega morre. E ele é promovido. Isso é um absurdo!”, afirmou. Ele afirmou ainda que, caso os militares conseguissem detonar a bomba, o governo anunciaria um decreto e endureceria o regime.
Em 1999, com pedidos de reabertura de 1985, 1987, 1996 e 1999, o IPM é reaberto. A conclusão de 1999 aponta responsabilização final do capitão Wilson Machado e do sargento Rosário, que acabou impune por conta de seu próprio falecimento
Uma das peças chave para uma completa investigação, Wilson Machado foi convocado para a audiência desta terça-feira 29, mas não compareceu.
No relatório preliminar de pesquisa “Riocentro: Terrorismo de Estado Contra a População Brasileira” (PDF), a CNV conclui que o atentado foi “um minucioso e planejado trabalho de equipe realizado por militares do I Exército e do Serviço Nacional de Informações (SNI) e o que o primeiro inquérito policial militar (IPM) sobre o caso, aberto em 1981, foi manipulado para posicionar os autores diretos da explosão apenas como vítimas”.
Na noite de 30 de abril de 1981 cerca de 20 mil pessoas estavam no Riocentro para assistir um show organizado por Chico Buarque de Hollanda para o Dia do Trabalhador. O grupo de militares que planejou o atentado emitiu uma ordem incomum para que a PM não realizasse policiamento dentro do espaço onde ocorria o show.
Além da bomba que explodiu no estacionamento, mais uma bomba explodiu na casa de força do Riocentro, com o intuito de que faltasse energia no local. O artefato, no entanto, não causou o efeito desejado. Depoimentos falam ainda em outras duas bombas, que foram retiradas do local antes de serem detonadas. Segundo Pimentel, elas estavam no carro e teriam sido retiradas da cena do crime.
O relatório apresentado pela CNV confirma a tese trazida pela denuncia do Ministério Público Federal em fevereiro deste ano (PDF). No documento, procuradores do grupo Justiça de Transição também defendem que a tentativa frustrada de atentado no Riocentro fazia parte de uma serie de outras ações que visavam frear o processo de abertura política em curso no País.
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Caso Riocentro: objetivo era dar sobrevida ao regime, diz CNV - Instituto Humanitas Unisinos - IHU