Por: Jonas | 30 Abril 2014
O jornalista Benjamin Dangl, que já acompanhou movimentos sociais e a política em toda a América Latina, durante mais de uma década, embora reconheça os avanços da esquerda na região, considera que “enquanto a marcha para o progresso continua de muitas formas, e os anos eleitorais vão e vêm, os perdedores da nova esquerda da América Latina são muitas vezes os mesmos que antes – as comunidades rurais despossuídas e movimentos indígenas, que ajudaram a preparar o caminho para essas eleições presidenciais”. Seu artigo é publicado por Rebelión, 29-04-2014. A tradução é do Cepat.
Benjamin Dangl trabalhou como jornalista em toda América Latina, cobrindo movimentos sociais e a política na região, durante mais de uma década. É autor dos livros “Dancing with Dynamite: Social Movements and States in Latin America” e “The Price of Fire: Resource Wars and Social Movements in Bolivia”. Atualmente é doutorando de História Latino-Americana na Universidade McGill e edita UpsideDownWorld.org, uma página web sobre ativismo e política na América Latina, e TowardFreedom.com, uma perspectiva progressista sobre eventos mundiais.
Eis o artigo.
Quando me sentei cedo, pela manhã, para uma entrevista com Evo Morales, há mais de uma década, em Cochabamba, Bolívia, o então líder dos cocaleiros e congressista dissidente bebia suco de laranjas recém-exprimido e ignorava os constantes toques do telefone fixo em seu escritório do sindicato. Poucas semanas antes de nossa reunião, um movimento social em escala nacional exigiu que as reservas de gás natural da Bolívia fossem colocadas sob o controle estatal. As mentes de todos estavam fixas em como a riqueza subterrânea poderia beneficiar a maioria pobre sobre a terra.
Na medida em que suas ambições políticas se davam em termos do gás natural boliviano, Morales queria que os recursos naturais “construíssem um instrumento político de libertação e unidade para a América Latina”. Era amplamente considerado como um candidato popular à presidência, e era óbvio que a política indigenista que queria mobilizar, como dirigente, estava vinculada a uma visão em que a Bolívia recuperaria sua riqueza natural para o desenvolvimento nacional. “Nós, o povo indígena, após 500 anos de resistência, estamos recuperando o poder. Esta recuperação do poder se orienta para a recuperação de nossas próprias riquezas, nossos próprios recursos naturais”. Isso foi em 2003. Dois anos depois, foi eleito o primeiro presidente indígena da Bolívia.
Passemos rapidamente para março deste ano. Era uma ensolarada manhã de sábado, no centro de La Paz, e os vendedores de rua estavam arrumando seus pontos para o dia, ao lado de uma banda de rock que organizava uma pequena apresentação em uma área de pedestres. Estava reunido com Mama Nilda Rojas, dirigente do grupo indígena dissidente CONAMAQ, uma confederação de comunidades aimará e quéchua no país. Rojas, junto com seus colegas e família, foi perseguida pelo governo de Morales em parte pelo seu ativismo contra as indústrias extrativistas. “Os territórios indígenas estão resistindo”, explica Rojas, “porque como dizia o livro ‘As veias abertas da América Latina’, continuam abertas, continuam dessangrando, a terra continua sangrando, as veias da América Latina e esse sangue que está derramando estão sendo levadas por todos os extrativistas”.
Enquanto Morales via a riqueza sob a terra como um instrumento de libertação, Rojas via o presidente como alguém que seguia adiante com as indústrias extrativas – na mineração, nas operações de petróleo e gás –, sem se preocupar com a destruição ambiental e a remoção de comunidades rurais que deixavam para trás. Como podiam Morales e Rojas ter ideias tão contrárias? Parte da resposta reside nos amplos conflitos entre a política de extrativismo em países dirigidos por governos esquerdistas, na América Latina, e a política de Pachamama (Mãe Terra), e pela forma como movimentos indígenas resistiram o extrativismo em defesa de seus direitos, sua terra e o meio ambiente.
Desde os inícios de 2000, uma onda de presidentes esquerdistas foi eleita na América Latina com a plataforma que incluía o uso da vasta riqueza em recursos naturais da região para financiar programas sociais, expandir o acesso à saúde e a educação, redistribuir a riqueza, empoderar os trabalhadores, combater a pobreza e edificar a soberania econômica nacional.
Dentro desta mudança, o Estado, no lugar da esfera privada, assumiu um maior papel na extração para beneficiar a sociedade mais ampla, ao invés de simplesmente encher os bolsos de alguns poucos diretores executivos de corporações multinacionais, como havia sido a norma em governos neoliberais. Os custos ecológicos e sociais da extração continuam presentes, mas com uma visão econômica diferente. “As atividades extrativas e a exportação de matérias-primas continuam como antes, mas agora são justificadas com um discurso progressista”, explica o jornalista ambientalista Carmelo Ruiz-Marrero.
Apesar de muitas economias e muitos cidadãos se beneficiarem da maior participação do Estado na extração desses recursos, o extrativismo sob governos progressistas, como havia sido sob o neoliberalismo, continua removendo comunidades rurais, envenena fontes hídricas, mata o solo e fragiliza a autonomia territorial indígena. Como escreve a socióloga argentina Maristella Svampa, “a prática e as políticas do progressismo (latino-americano) correspondem, em última instância, a uma ideia convencional e hegemônica do desenvolvimento baseada na concepção de progresso infinito e de recursos naturais supostamente inesgotáveis”. Alentada pelo discurso progressista e o mandato da esquerda latino-americana, esta tendência extrativista produziu resultados alarmantes em toda a região.
Depois da crise argentina de 2001-2002, as presidências de Néstor e Cristina Kirchner trabalharam triunfalmente para reabilitar a economia da Argentina, empoderar os trabalhadores e aplicar uma política econômica progressista para reforçar a soberania do país, após anos de neoliberalismo, em que os serviços públicos e empresas de propriedade estatal foram privatizados. Os Kirchner colocaram várias indústrias sob controle o estatal, e utilizaram novos ingressos do governo para financiar programas sociais e fazer com que o país estivesse menos endividado com prestamistas e corporações internacionais.
Como parte desta mudança, em 2012, o Estado argentino obteve 51% do controle da companhia de hidrocarbonetos YPF, que foi privatizada nos anos 1990. No ano passado, no entanto, a YPF da Argentina assinou um acordo com a Chevron para expandir a exploração de gás natural no país, operações que ocorrerão em território indígena mapuche. Como reação, comunidades indígenas que serão atingidas pela exploração tomaram quatro instalações de perfuração da YPF. “Não apenas estão tomando a terra”, explicou Lautaro Nahuel, da Confederação Mapuche de Neuquén para o Earth Island Journal. “Toda a vida natural nesta região está interconectada. Aqui, atingirão o rio Neuquén, que é o rio do qual bebemos”. Protestos contra os planos de exploração da YPF-Chevron acontecem no país.
O presidente uruguaio José “Pepe” Mujica, que recentemente recebeu atenção internacional pela legalização da maconha, do aborto e de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, e pela sua oferta em receber presos liberados de Guantánamo, orienta-se para um acordo com o grupo mineiro anglo-suíço Zamin Ferrous, para a realização de uma grande operação mineira a céu aberto, que envolveria a extração de 18 milhões de toneladas de ferro do país, durante os próximos 12-15 anos. Além da operação mineira em si, o plano inclui a construção de condutos para transportar o mineral do interior à costa atlântica do país. Críticos destacaram que o plano causaria estragos na biodiversidade da região e removeria agricultores locais. Como resposta aos planos, existe atualmente um movimento nacional a fim de organizar um referendum para proibir a mineração a céu aberto no Uruguai.
Embora o presidente do Brasil, Luiz Lula da Silva, e sua sucessora Dilma Rousseff, ambos do Partido dos Trabalhadores, ajudaram a expandir a classe média no país, e iniciaram exitosos programas sociais orientados para eliminar a pobreza e a fome, suas administrações também presidiram sobre uma economia de extrativismo que não abre espaço para as preocupações dos pequenos agricultores ou do meio ambiente. O Brasil tem a maior indústria mineira da região. Em 2011, extraiu mais do dobro da quantidade de minérios que todos os demais países sul-americanos combinados, e é o maior produtor de soja do mundo, um cultivo OGM que se expande rapidamente no continente, com uma mistura de letais pesticidas que estão matando o solo, envenenando fontes hídricas, e removendo os pequenos agricultores do campo para os casebres urbanos da América Latina.
O presidente equatoriano Rafael Correa defendeu fortemente o meio ambiente em seu país, mediante a aprovação de uma constituição, em 2008, que outorgou direitos à natureza e pela iniciativa, em 2007, de manter sob a terra o petróleo no Parque Yasuní do Equador. Em troca de não perfurar em busca de petróleo, nessa rica região em biodiversidade, o plano solicitava que doadores internacionais contribuíssem com 3,6 bilhões de dólares (a metade do valor do petróleo) ao Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas para programas globais de atenção à saúde, educação e outras áreas. Em agosto passado, com doações de apenas 13 milhões de dólares e promessas de outros 116 milhões, Correa anunciou que a iniciativa havia fracassado, e que a extração de petróleo começará em Yasuní. Em um discurso televisionado, o presidente disse: “O mundo falhou conosco”.
No entanto, ao mesmo tempo em que Correa falou corretamente das obrigações das nações mais ricas em contribuir para solucionar os dilemas da crise climática global, dentro do país expandiu a indústria mineira e criminalizou os movimentos indígenas que protestaram contra indústrias extrativas em seus territórios. Sob sua administração, numerosos dirigentes indígenas que se organizavam contra a mineração e as medidas de privatização da água e a extração de hidrocarbonetos foram encarcerados por seu ativismo.
No Peru, a criminalização de ativistas indígenas que lutavam contra a mineração também se tornou a norma nessa nação rica em minerais. Sob a presidência de Ollanta Humala, a mineração prosperou, e com ela os conflitos por meio dos quais as comunidades locais lutam para defender os direitos a terra e água.
Na Bolívia, o presidente Evo Morales falou amplamente em respeitar a Pachamama, lutar contra a crise climática do mundo, e utilizar filosofias indígenas como o “Bem Viver” para viver em harmonia com a terra. Seu governo promulgou políticas progressistas em termos de criar mais ingressos para o governo mediante a administração estatal da extração de recursos naturais, e utilizar esses ingressos para aumentos salariais, programas sociais nacionais em atenção à saúde, aposentadorias, educação e desenvolvimento de infraestrutura. O governo de Morales e seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS), já realizaram mudanças constitucionais e leis que protegem o meio ambiente, empoderam comunidades indígenas, e convertem em um direito o acesso aos serviços e recursos básicos. No entanto, a retórica e a promessa de muitas dessas mudanças contradizem a maneira como as políticas do MAS se realizaram na prática.
O governo promoveu um plano para construir uma grande estrada através do território indígena e parque nacional TIPNIS. Protestos contra os planos do governo impulsionaram um movimento pelos direitos indígenas e a proteção do meio ambiente. Como reação, o governo desatou uma brutal repressão contra famílias que marchavam em protesto pela estrada, em 2011. A violência governamental causou 70 feridos. As vítimas, suas famílias e aliados continuam buscando justiça.
Recentemente, a promessa do MAS de respeitar a Mãe Terra, os direitos indígenas e dos pequenos agricultores entrou em conflito com outro de seus planos: a Lei de Mineração, que foi aprovada pelo congresso, controlado pelo MAS, em fins de março, e estava a caminho do Senado, quando protestos contra a lei obrigaram o governo a suspender sua aprovação até ter mais comentários dos críticos. Apesar de grupos mineiros corporativistas privados, notórios por sua falta de preocupação pelo meio ambiente e com as comunidades locais atingidas pela mineração, protestassem contra a lei, porque não tinham o direito de vender seus recursos para entidades estrangeiras e privadas sem suficiente supervisão governamental, outros grupos com demandas diferentes apresentaram suas críticas. Separados dos mineiros cooperativistas, esses críticos do movimento de agricultores e indígenas estão mais preocupados por temas como o acesso a água e o direito a protestar.
A Lei de Mineração dá à indústria mineira o direito de utilizar água pública para sua operação tóxica e com uso intensivo de água, enquanto se omite o direito a mesma água para as comunidades rurais e agrícolas. Além disso, a lei criminaliza o protesto contra operações mineiras, abandonando as comunidades que carregam o peso principal da contaminação e da remoção causada pela indústria, sem nenhum recurso legal para defender suas casas. Como reação à lei, uma quantidade de organizações indígenas e de pequenos agricultores saiu às ruas para protestar.
Falei com a dirigente indígena do CONAMAQ, Mama Nilda Rojas, sobre seu ponto de vista a respeito da Lei Mineira. “O governo [de Morales] dizia, ‘eu vou governar considerando as bases, as leis virão de baixo para cima’, mas ahhh, lamentavelmente não é assim no caso da Lei Mineira”, disse Rojas. “A Lei Mineira... é uma lei que vai contra a própria Constituição Política do Estado e criminaliza o direito ao protesto, já não poderemos impedir, não poderemos marchar, [contra a mineração]”, explica Rojas. “Bom, sabemos que sempre com as marchas, com os bloqueios, o próprio Evo Morales era um dos que marchava, bloqueava, então, como nos pode cortar esse direito ao protesto?”
“Lamentavelmente este governo faz um falso discurso político, em nível internacional, que defende a Pachamama, que defende a Mãe Terra, mas é uma real mentira”, explica Rojas.
Enquanto isso, fora da América Latina, governos, ativistas e movimentos sociais olham para lugares como a Bolívia e o Equador como exemplos de superação do capitalismo e de oposição à mudança climática. O modelo de Yasuní e do respeito aos direitos da natureza pode e deve ter impacto fora desses países, e as nações mais ricas e seus consumidores e indústrias, baseadas no norte global, devem assumir responsabilidades para enfrentar os desafios da crise climática.
De muitas formas, grande parte da esquerda da América Latina representa consideráveis melhoras em relação a seus predecessores neoliberais, e ajudou a forjar um caminho estimulante para alternativas que serviram de inspiração em todo o mundo. Em geral, tiraram países da sombra do Fundo Monetário Internacional e de ditaduras respaldadas pelos Estados Unidos, para uma posição de autodeterminação.
Pensando nessas novas direções, é de se esperar que a direita neoliberal não recupere o poder em um futuro previsível, e que Washington não possa intervir ainda mais em uma América Latina crescentemente independente.
No entanto, enquanto a marcha para o progresso continua de muitas formas, e os anos eleitorais vão e vêm, os perdedores da nova esquerda da América Latina são muitas vezes os mesmos que antes – as comunidades rurais despossuídas e movimentos indígenas que ajudaram a preparar o caminho para essas eleições presidenciais. Em nome do progresso, da Mãe Terra, do Bem Viver e do Socialismo do Século XXI, esses governos estão ajudando a envenenar os rios e a terra, e a remover, encarcerar e matar ativistas contra a extração. A solidariedade que não considere esta contradição pode prejudicar diversos movimentos da base que lutam por um mundo melhor.
É preciso ter êxito um modelo alternativo que coloque verdadeiramente a qualidade de vida e o respeito pelo ambiente acima do aumento do Produto Interno Bruto e da expansão do consumismo, que coloque a sustentabilidade acima da dependência da extração de matérias-primas finitas, que coloque os direitos da agricultura em pequena escala e a autonomia territorial indígena acima da mineração e das companhias produtoras de soja. É provável que provenha desses movimentos da base. Se este modelo há de transformar as tendências progressistas mais amplas da região, esses espaços de dissenso e debate em movimentos indígenas, ecológicos e de agricultores devem ser respeitados e ampliados, não esmagados e silenciados.
“Estamos sempre aí de pé, manifestando-nos contra o extrativismo”, disse Rojas. “A Mãe Terra já está cansada”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A extração de recursos naturais contra os direitos dos indígenas e do meio ambiente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU