01 Abril 2014
Francisco é doce e manso como o seu Jesus Cristo, mas, como Ele, quando é necessário, empunha o bastão e bate. Mas o bastão que ele empunha diz respeito ao pecado do mundo, o único verdadeiro pecado que coloca o mundo fora da graça e do bem.
A opinião é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 30-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O governador do Banco da Itália, lembrando Guido Carli na Libera Università Internazionale degli Studi Sociali, citou uma das frases que ele repetia muito frequentemente: "Devemos nos libertar das pequenas e grandes armadilhas que freiam o desenvolvimento da economia italiana".
Fui muito amigo de Carli e eu também me lembro dessa frase; as pequenas e grandes armadilhas designavam os instrumentos de que se serviam as corporações, as confrarias do poder, os lobbies, os interesses particulares que muitas vezes levavam a melhor sobre o interesse geral e que subsistiam na Itália mesmo depois do nascimento do mercado comum europeu.
A economia da Itália, em grande parte, era configurada pela existência de um sistema de oligopólio, que criava uma série de obstáculos à livre concorrência, no centro do qual quem dava as cartas era a Fiat e a indústria elétrica. Com o início da centro-esquerda, a verdadeira ou, melhor, a única novidade dos socialistas e principalmente do líder da esquerda Riccardo Lombardi foi a nacionalização da indústria elétrica, despedaçando deste modo o monopólio mais importante, enquanto a Europa se abria também ao mercado internacional.
O sindicato operário daquela época não fazia parte em nada da lista dos lobbies; ele representava a classe operária, os seus interesses e os seus valores, mas eles não eram, de fato, contrários aos do Estado. Luciano Lama, nos momentos de dificuldade econômica, geria uma política de moderação salarial, e a mesma política foi também a de Berlinguer e de Giorgio Amendola. A moderação salarial dos sindicatos foi reconhecida várias vezes nas conferências dos governadores do Banco da Itália, começando até por Menichella e depois por Carli, Baffi e Ciampi.
As pequenas e grandes armadilhas de hoje existem em um mundo cuja estrutura econômica e social mudou profundamente: a população envelheceu, os jovens entre 16 e 29 anos representam menos de um terço da população, quase todas as empresas de grandes dimensões desapareceram, as médias empresas têm que enfrentar mercados em que o custo do trabalho é muito mais baixo do que na Itália, a deslocalização tornou-se uma prática, as pequenas empresas sofrem de um crédito em contínua diminuição e com altas taxas de juros, há 30 anos os empresários investem sempre menos, empregando capital e dividendos principalmente nas finanças e cada vez menos na indústria.
Consequentemente, a base ocupacional se restringiu, e a produtividade diminuiu fortemente, o sindicato representa principalmente os pensionistas, a classe operária como aristocracia do trabalho não existe mais, porque os contratos se tornaram individuais ou de pequenas categorias diferentes entre si.
Essas são as condições pelas quais as pequenas e grandes armadilhas da época de Carli não existem mais e mudaram de natureza. Talvez Ignazio Visco teria que ter explicado isso para a plateia que o ouvia.
As pequenas e grandes armadilhas de hoje são principalmente a mistura entre finanças privadas e política, a falta de inovação nas manufaturas, a escassez de crédito, a corrupção e a evasão fiscal, e, por fim, não por último, as máfias.
Os contratos empresariais são uma forma idônea para redespertar as manufaturas e as empresas de pequeno e médio porte, mas o sindicato continua sendo uma tarefa essencial: vigiar pelos direitos dos trabalhadores que não devem ser lesados, mas no mínimo fortalecidos e ampliados até mesmo nas empresas de pequeno e médio porte. E ao sindicato cabe também a tarefa e o papel de contrapartida em relação ao novo "welfare" e os novos amortizadores sociais.
O governo italiano parece voltado a realizar esses objetivos, mas não reconhece ao sindicato o papel decisivo que recém-indicamos. É um grave erro, e bastaria olhar para a função dos sindicatos na Alemanha para se dar conta disso.
"Yes, we can", disse Renzi no seu recente encontro com Obama, assumindo o slogan com o qual o senador de Chicago venceu a sua batalha para se tornar presidente dos Estados Unidos. "Yes,we can", mas o que exatamente? Agora, se aplicará o decreto de Enrico Letta sobre o teto a ser posto às retribuições dos dirigentes de empresas públicas.
Em relação à ocupação juvenil, a lei de Letta já produziu novos postos de trabalho para 14 mil jovens, e, em 2015, a projeção estatística prevê um resultado que chegará a 60-90 mil. Renzi não o diz, mas até agora os resultados concretos provêm das iniciativas do seu antecessor. Agora, esperamos as iniciativas que Renzi promete, que são boas e concretas. Do you can? Olharemos com atenção, mas devemos esperar um bom tempo, porque nem mesmo Renzi tem uma varinha mágica.
* * *
No entanto, mesmo que eu tenha começado pelo "We can" renziano, não é esse o tema principal deste artigo. O tema é Jesus, que toma o bastão e bate, expulsando do templo os escribas e os fariseus que interpretam muito mal a lei de Deus e os corruptos que geriram os seus negócios sujos até mesmo nos lugares sagrados do povo de Israel.
O Jesus que bate voltou à atualidade novamente às 7 horas do dia em que Obama chegou a Roma para a sua breve, mas intensa, visita ao Vaticano, ao Quirinal e à Villa Madama com Renzi. Às 7 horas, o Papa Francisco tinha convocado para a missa em São Pedro 500 membros do Parlamento italiano e todos os ministros do governo e os maltratou com santa razão. Não os abraçou, não os perdoou, não os saudou. Apenas bateu neles.
O circuito midiático jornalístico e televisivo, com a exceção de pouquíssimos jornais e de Enrico Mentana, subestimaram essa missa muito particular do Papa Francisco. Eu acho que o motivo foi que as palavras do papa podiam ser consideradas semelhantes ao slogans de Grillo, mas não é assim.
Grillo fala muito contra casta, mas faz parte dela substancialmente, especialmente quando se compromete a abolir a liberdade de mandato dos parlamentares para melhor mantê-los sob controle, impedindo justamente a eles a liberdade de opinião.
O papa, ao invés, falava aos políticos italianos de uma batalha que ele, por sua vez, está combatendo no Vaticano contra todas as formas de temporalismo.
O poder temporal, assim pensa o papa, desfigurou a Igreja por séculos e séculos, se não até por mais de um milênio.
Francisco considera que a Igreja não deve ser sujada e deformada por esse pecado capital. Eis a revolução que, há um ano, ele está conduzindo e que também deveria ocorrer no país que é a sede do papado. Daí a sua invectiva de quinta-feira passada.
Os meios de comunicação privilegiaram Obama, mas se equivocaram. O presidente dos EUA esteve em Roma pouco mais do que 36 horas, viu Napolitano por um longo tempo, o Papa Francisco por um longo tempo, um pouco menos o presidente do Conselho, viu o Coliseu e, na escada do avião, o prefeito Marino, com uma grande faixa tricolor.
Mas Francisco permanece aqui, para a nossa sorte. Ele é doce e manso como o seu Jesus Cristo, mas, como Ele, quando é necessário, empunha o bastão e bate. Ele faz isso no Vaticano, em São Pedro, com a Cúria e também com o Parlamento do país na cidade da qual ele é bispo. Mas o bastão que ele empunha diz respeito ao pecado do mundo, o único verdadeiro pecado que coloca o mundo fora da graça e do bem.
Esse é o seu ensinamento e essa é a sua revolução.
* * *
Eu me encontrei com o Papa Francisco há alguns dias, era o dia 18 de março passado. Eu lhe pedira esse encontro, como já aconteceu outras vezes, não para escrever a respeito, relatando o que nos tínhamos dito, mas para continuar o diálogo entre ele e um não crente como eu.
Depois, escrevi contando esse diálogo, mas apenas para mim, para me lembrar dos pensamentos que nos trocamos. Mas eu quero referir aqui um desses pensamentos, porque é estritamente pertinente com o que ele disse na missa de quinta-feira passada.
Ele disse: "Em todas as decisões que cada pessoa toma, existe o risco de que as suas conveniências pessoais e de grupo prevaleçam sobre considerações mais altas. Lembro estes versos de Dante: 'Ah, Constantino, de quanto mal foste mãe...' Esses versos lembram o édito do imperador Constantino que, em 313 d.C., fez uma doação à Igreja e autorizou o seu culto ou, melhor, fê-lo justamente inserindo a cruz nos seus estandartes. O pecado do mundo é a injustiça e a prevaricação. Eu a chamo de concupiscência, cobiça do poder, desejo de posse. Esse é o pecado do mundo que nós combatemos a partir de duas margens diferentes".
Esse pensamento é o mesmo que inspirou o papa na alocução feita em São Pedro aos membros do Parlamento italiano e provavelmente a Obama, que ele encontrou poucas horas depois. Obama também sabe que, no seu país, ele combateu e combate essa batalha.
Se todos os detentores do poder o usassem para realizar essa finalidade, o mundo enfrentaria aquela que Berlinguer chamou de a questão moral. Há dois domingos, evocando Berlinguer, eu escrevi que, entre ele e Francisco, existem muitos pontos em comum, e é verdade.
Pensem nisso, pensem nisso por um longo tempo e não se esqueçam disso, vocês que têm o poder. É verdade, "You can", mas Jesus às vezes pega o bastão. Mesmo quem não crê, conhece essa verdade, compartilha-a e não se esquece dela.
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''Yes, we can'': mas Jesus também pegou o bastão. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU