Por: André | 31 Março 2014
“As companhias armazenam estes dados e utilizam-nos via marketing para melhorar suas vendas. Assim, conhecem quem consome o que e quando, podendo realizar exaustivos perfis de seus compradores. A partir desse momento, oferecem-nos tudo aquilo de que ‘necessitamos’ e o compramos encantados. Nossa vida privada nas mãos das empresas converte-se em uma nova fonte de negócios. Nós nem tomamos consciência disso.” A reflexão é de Esther Vivas, em artigo publicado no jornal espanhol Público, 29-03-2014. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Nós associamos a compra no supermercado a modernidade, autonomia, livre escolha, mas há poucos lugares no mundo, que fazem parte da nossa vida cotidiana, tão controlados e monitorados quanto estes estabelecimentos. Com a nossa compra, embora não pareça, há muito em jogo. Por isso, em um supermercado nada está por acaso. Tudo é pensado para que compremos, e quanto mais, melhor.
Um laboratório chamado ‘super’
Chegamos ao ‘super’ e cartazes, em geral de cores claras, nos dão as boas-vindas animando-nos a entrar, muitas vezes acompanhados de ofertas que anunciam preços muito baratos. Pegamos o carrinho, tão grande que precisamos muito para enchê-lo para que não pareça vazio, e começamos a busca do que precisamos por inúmeros corredores com estantes abarrotadas de produtos. O carrinho, por mais que ande reto sempre esbarra com a estante e ali você vê, como quem não quer a coisa, um novo artigo que não esperava e o acrescenta à lista de compras.
Tem necessidade de leite e iogurte e precisa atravessar todo o centro comercial para obtê-los. Por que sempre colocam aquilo de que mais necessitamos no fundo do mercado? No caminho, um fio de música ritmada toca. Quase não é possível ouvi-la, mas ela está aí, animando-o para comprar. Você olha preços e nunca entende porque os preços não são redondos, mas sempre terminam com decimais, dificultando a comparação entre uns e outros. Sorte que você se fixa em todos aqueles que acabam em nove, e assim economiza um pouco. Embora, talvez, também não haja tanta diferença entre pagar um centavo a mais ou a menos. Isso sim, o produto parece mais barato.
Às vezes é preciso parar, porque dois carrinhos com pessoas comprando se encontram. E me pergunto: por que fazem os corredores tão estreitos? Enfim. Aproveito para olhar uma estante e outra e ali está esse pacote de batatas fritas que não me convém olhando de frente. Vai, não virá daqui... ao carrinho! Avanço agora buscando o pacote de arroz que preciso, mas já o mudaram outra vez de lugar. Não entendo porque cada x de tempo mudam os produtos de lugar. Quando já sei o caminho de cor, devo, novamente, dar mil voltas antes de encontrar o que procuro. Isso sim, ao reaprender o caminho descubro novos produtos aos quais não havia me antenado antes.
Resta-me apenas pegar o detergente. Na sessão de limpeza e à altura dos olhos vejo essa marca que dizem, na televisão, deixa a roupa tão limpa. Pego uma unidade e, por acaso, olho o preço... que caro! Devolvo a unidade. Observo acima e abaixo na prateleira e ali encontro outra marca menos conhecida, mas mais barata. Abaixo-me e a pego. Por que será que a colocam em um lugar mais difícil para pegar? Chega a hora de passar pelo caixa. Na fila e cansada com a espera vejo chocolates, balas, guloseimas... e a apenas um palmo. Impossível dizer “não”. Vai para a cesta.
Analisando meu “percurso”, me pergunto: quantas coisas comprei e que não necessitava? Adquiri os produtos que me interessavam? Calcula-se que entre 25% e 55% da nossa compra é compulsiva, fruto de estímulos externos. Colocamos no carrinho, mesmo que não nos faça falta. E ao passar por uma prateleira, cerca de 20% compram antes a marca que se encontra na altura dos olhos do que outra qualquer, apenas por comodidade, embora as outras sejam mais baratas. Sem estarmos conscientes, somos porquinhos da índia em um grande laboratório chamado ‘super’.
Sorria, você está sendo filmado
Nossos movimentos em um supermercado nunca passam despercebidos. Uma câmera ou outra, colocada aqui ou ali, registra tudo. Mas, o que é feito com essas imagens? Sabemos quando estamos sendo filmados? Podemos ter acesso a essas imagens? O professor Andrew Clement, da Universidade de Toronto e fundador do Instituto de Identidade, Privacidade e Segurança, assinala a nossa indefesa em relação a estas práticas. Segundo um estudo realizado por sua equipe no Canadá, nenhuma das câmeras colocadas nos maiores centros comerciais canadenses cumpria os requisitos de sinalização obrigatórios por Lei. Aqui, na Europa, a polêmica também está presente. Não temos ideia de que, nem como, nem quando filmam, nem o que fazem com as imagens.
A cadeia de supermercados Lidl protagonizou um dos maiores escândalos quando, em março de 2008, descobriu-se que espiava sistematicamente os seus trabalhadores em vários estabelecimentos na Alemanha com mini-câmeras colocadas em lugares estratégicos. Cada segunda-feira, estas câmeras serviam para controlar os trabalhadores, gravar suas conversas e elaborar perfis pessoais detalhados. Não se trata de um caso isolado. Sua concorrente, a Aldi, foi acusada, em março de 2013, de espiar os seus empregados em vários supermercados na Alemanha e na Suíça com câmeras ocultas, segundo a revista alemã Der Spiegel.
Aqui, a Agência Espanhola de Proteção de Dados abriu um processo sancionador contra a Alcampo por espiar os seus trabalhadores. No final de 2007, a Alcampo instalou secretamente em um hipermercado de Ferrol três câmeras ocultas em espaços reservados aos funcionários. Semanas depois, utilizou o conteúdo destas fitas para demitir um empregado e punir outros onze.
Os consumidores são, também, objeto de voyeurismo. O último foi estreado pela cadeia de supermercados Tesco, no final de 2013, na Grã-Bretanha. A empresa instalou em 450 postos de combustíveis pequenas câmeras com o objetivo de escanear o rosto de seus clientes na fila do estabelecimento com o objetivo de detectar sua idade e sexo e oferecer-lhes a publicidade mais apropriada aos seus perfis. O filme de ficção científica Minority Report de Steve Spielberg tornado realidade, mesmo que os anúncios personalizados a partir da leitura da retina, como aparecia no filme, não precisem, pelo que parece, esperar até 2054.
A nossa vida em um cartão
“Tem cartão de cliente?”, já é um ritual que nos perguntam quando passamos pelo caixa. E se não o tem, oferecem-nos um mar de vantagens, descontos e recompensas após a compra. Deste modo, corremos para preencher o formulário, anotando todos os nossos dados, sem sequer ler o que assinamos, para poder ter acesso o quanto antes a tão fantásticas promoções. No entanto, o que acontece com a informação que damos? Quem a usa? Para que finalidades? Isso é algo que não nos contam na hora de preencher o formulário.
Os supermercados são os reis dos cartões de fidelização. Oferecem-nos presentes, descontos, pontos... se passamos uma e outra e outra e outra vez no caixa. Além de contar com a nossa fidelidade, as empresas da grande distribuição buscam, mediante estes cartões cliente, conhecer tudo, ou quase tudo, sobre a nossa vida privada: quem somos, a nossa idade, estado civil, preferências, hobbies. À margem do que diz a ficha que preenchemos, as compras periódicas que realizamos ficam, a partir de então, registradas para sempre em nosso arquivo: se gostamos ou não de chocolate, se preferimos a carne ao peixe, qual café, massa, bebidas, conservas, verduras... Sabem tudo.
As companhias armazenam estes dados e utilizam-nos via marketing para melhorar suas vendas. Assim, conhecem quem consome o que e quando, podendo realizar exaustivos perfis de seus compradores. A partir desse momento, oferecem-nos tudo aquilo de que “necessitamos” e o compramos encantados. Nossa vida privada nas mãos das empresas converte-se em uma nova fonte de negócios. Nós nem tomamos consciência disso.
O rastro do que compramos
Dizem que comprar no supermercado do futuro será mais prático, cômodo, rápido e não precisaremos fazer fila nem passar pelo caixa. Tudo, graças, entre outras coisas, à tecnologia de identificação por radiofrequência ou etiquetas RFID. Etiquetas que contêm um microchip e que registram informação detalhada sobre a “vida” do produto no qual se encontram. São como um número de série único que armazena e emite, através de antena, dados específicos sobre esse artigo.
Assim, num futuro não tão distante, parece, poderemos entrar em um supermercado, pegar um carrinho de compras “inteligente”, carregar em sua base de dados a lista de compras, deixar que nos guie até os produtos indicados, dar-nos informações sobre os mesmos e indicar o quanto estamos gastamos. E ao sair, não será necessário passar pelo caixa. Pelo fato de cada produto trazer embutido uma destas etiquetas, uma antena receptora fará automaticamente a identificação e o total da compra será debitado diretamente em nossa conta... e sem fazer fila. O que mais podemos pedir?
O problema reside, como assinalaram grupos de consumidores nos Estados Unidos, como o Caspian (Consumidores contra a Invasão da Privacidade dos Supermercados) e o Epic (Centro de Informação sobre Privacidade Eletrônica), no controle que estes sistemas exercem sobre as pessoas. Nada impede, por exemplo, que estas etiquetas possam continuar acumulando informação uma vez fora do supermercado, seguindo cada um dos passos dos produtos e de nós como consumidores.
Hoje, encontramos estas etiquetas RFID em alguns produtos dos supermercados, que convivem com os tradicionais códigos de barra. Seu custo, no entanto, limita no momento e em parte uma maior generalização. Embora, segundo o Instituto Nacional de Tecnologias da Comunicação e a Agência Espanhola de Proteção de Dados cada vez seja mais frequente encontrá-las nas etiquetas de roupas e calçados assim como em sistemas para a identificação de mascotes, cartões de transporte, pagamentos automáticos de pedágios, passaportes, entre outros, colocando em risco a nossa privacidade.
Querem nos fazer crer que os centros comerciais são sinônimos de liberdade. Agora, o Supermercado Caprabo apela, em sua publicidade, ao “livre comprador” que está dentro de nós. “Damos-lhe tudo para que seja livre para escolher o que mais gosta”, disse. No entanto, a liberdade de escolha não está no supermercado, mas fora dele.
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O Grande Irmão no supermercado. Artigo de Esther Vivas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU