24 Março 2014
As palavras pronunciadas pelo papa são palavras definitivas. Ressoam fortes não em São Pedro, onde teriam sido naturais, até mesmo óbvias. Ressoam epocais em Locri, Casal di Principe, Natile di Careri, San Luca, Secondigliano, Gela.
A reportagem é de Roberto Saviano, publicada no jornal La Repubblica, 22-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
E naquelas terras onde a ação mafiosa sempre foi acompanhada por atitudes religiosas ostentadas em público. Quem não conhece as relações entre gangues e Igreja poderá acreditar que é evidente a contradição entre a palavra de Cristo e o poder mafioso.
Não é assim. Para os chefes das organizações criminosas, o seu comportamento é cristão, e cristã é a ação dos filiados. Em nome de Cristo e de Nossa Senhora, desdobra-se a sua vida, e a Santa Igreja Romana é a referência da organização.
Por mais absurdo que possa parecer, o boss [o chefe de uma família criminosa] – como eu já escrevi várias vezes – considera a sua ação comparável ao calvário de Cristo, porque assume sobre a sua consciência a dor e a culpa do pecado pelo bem-estar dos homens aos quais comanda.
O "bem" é obtido quando as decisões do boss são em benefício de todos os filiados do território que ele comanda. O poder é expressão de uma ordem providencial: até mesmo matar torna-se um ato justo e necessário, que Deus irá perdoar, se a vítima colocava em risco a tranquilidade, a paz e a segurança da "família".
Há toda uma ritualidade distorcida de origem religiosa que regula a cultura das gangues. A filiação à 'Ndrangheta ocorre através da "santinha", a efígie de um santo de papel, com uma oração. São Miguel Arcanjo é o santo que protege as 'ndrine: sobre a sua figura, cola-se o sangue do filiado no rito da iniciação. Padre Pio é o santo cujo ícone está em cada célula dos camorristas, em cada casa de um camorrista, em cada carteira de um filiado.
Nicola, ex-pertencente do clã Cesarano, contou: "Eu me salvei uma vez, quando era jovem, porque uma bala foi desviada. Os médicos me disseram que foi uma costela que evitou que o golpe fosse fatal. Mas eu não acredito nisso. Quem atirou em mim atirou no coração. Não foi a costela, foi Nossa Senhora".
Nossa Senhora, objeto de orações: é a ela que eles se voltam para vigiar sobre os homicídios. Como mulher e mãe de Cristo, ela suporta a dor do sangue e perdoa. Rosetta Cutolo foi encontrada na igreja durante as horas das matanças ordenadas por Don Raffaele: ela rezava à Nossa Senhora para que intercedesse junto a Cristo para fazer com que se compreendesse que a condenação à morte e a violência eram necessárias.
Em Pignataro Maggiore, existe a "Nossa Senhora da Camorra", que o falecido boss Raffaele Lubrano, morto em uma emboscada em 2002, fez com que fosse restaurada às suas próprias custas, na sala Moscati, ao lado da igreja-mãe.
João Paulo II também tinha proferido – no dia 9 de maio de 1993, em Agrigento – um ataque duríssimo contra a máfia: "Convertei-vos. Um dia chegará o juízo de Deus". Dois meses depois, os corleoneses colocaram uma bomba em São João de Latrão.
Mas Francisco não fala só a quem atira: ele abraçou os parentes das vítimas da máfia, abraçou o padre Luigi Ciotti, um sacerdote que nunca tinha sido acolhido por um pontífice no Vaticano e que, com a Libera, tornou-se o emblema de uma Igreja de estrada, que se compromete contra o poder criminoso. A igreja do padre Diana, que foi deixado sozinho combatendo a sua batalha.
Hoje, Francisco convida a estar ao lado dos padres Diana. As suas palavras rompem a ambiguidade em que vivem aquelas partes da Igreja que sempre fingiram não ver, que são condescendentes com as máfias e que se justificam em o nome de uma "proximidade às almas perdidas".
Os filiados não temem o inferno prometido pelo papa: conhecem-no em vida. Ao invés, temem uma Igreja que se torna práxis antimafiosa. As palavras de Francisco poderão mudar alguma coisa realmente se a burguesia mafiosa for posta em crise por essa tomada de posição, se a obra pastoral da Igreja realmente começar a isolar o dinheiro criminoso, o poder político condicionado pelos seus votos.
Em suma, se toda a Igreja – e não só poucos corajosos sacerdotes – realmente for parte ativa na luta contra os capitais criminosos. Depois dessas palavras, ou será assim, ou não será mais Igreja.
Nota da IHU On-Line:
- O discurso de Luigi Ciotti, em italiano, pode ser ouvido aqui.
- O discurso de Papa Francisco, em italiano, pode ser ouvido aqui.
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Os padres e os poderosos chefões - Instituto Humanitas Unisinos - IHU