18 Março 2014
O exemplo do Papa Francisco, de humildade, simplicidade, despojamento, abertura, irá significar uma verdadeira crise. Esta, como um crisol, servirá para purificar as pessoas.
A opinião é do teólogo Leonardo Boff, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 16-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Um papa que, vindo da periferia do mundo, de fora da velha cristandade europeia, para a surpresa geral, escolhe o nome de Francisco; quer dar só com o nome uma mensagem a todos. A mensagem é: de agora em diante, vai se experimentar um novo modo de exercer o papado, despojado dos títulos e dos símbolos de poder, e se dará destaque a uma Igreja inspirada na vida e no exemplo de São Francisco de Assis: na pobreza, na simplicidade, na humildade, na fraternidade entre todos, incluindo as criaturas da natureza e a própria "Irmã Mãe Terra".
É um projeto corajoso, mas necessário, já que corresponde melhor à Tradição de Jesus e às exigências do Evangelho, e responde às demandas de um mundo globalizado em que a Igreja terá que encontrar, humildemente e sem privilégios, o seu lugar ao lado e junto com outras Igrejas, religiões e caminhos espirituais.
As reflexões que se seguem, neste livro, tentando aproximar duas figuras que se revelam extraordinárias: Francisco de Assis e Francisco de Roma. Certamente, a Igreja Católica Romana nunca mais será a mesma. É muito provável que o Papa Francisco esteja inaugurando uma nova série de papas provenientes das novas Igrejas da África, Ásia e América Latina. Até hoje, elas foram Igrejas-espelho das europeias. Com o tempo, se transformarão em Igrejas-fonte com um modo próprio de viver a fé, fruto do diálogo e da encarnação nas culturas locais.
No fim das contas, apenas 24% dos católicos vivem na Europa; os outros, a grande maioria, vivem no chamado Terceiro ou Quarto Mundo. Hoje, o cristianismo é uma religião do Terceiro Mundo, embora no passado tenha nascido no Primeiro. (...)
A palavra ruptura é a mais adequada para entender a novidade que o Papa Francisco representa. Tal palavra não foi bem acolhida pelos papas anteriores, que, ao contrário, a evitavam e até a combateram, enfatizando, ao invés, a continuidade do magistério pontifício entre o Concílio Vaticano I (1869-1870) e o Concílio Vaticano II (1962-1965).
É preciso reconhecer, porém, que tal insistência não se justifica diante de fatos que todos possam verificar. É claro que a imagem da Igreja de João XXIII (1881-1963), chamado de "o papa bom", aberta ao diálogo sem restrições de tipo religioso ou ideológico, era muito diferente da de Pio IX (1792-1878) com as suas condenações contra a democracia (chamada de "delírio da mente") e das liberdades modernas (veja-se o Syllabus e Quanta cura) e a ausência de qualquer abertura à modernidade.
De repente, quase como em um passe de mágica, na cena da história irrompe o Papa Francisco, que vem da Argentina, um país na periferia do mundo, longe das tensões da Igreja romana e eurocêntrica. Ele não assume os hábitos convencionais do papado, ao contrário, intencionalmente os afasta. Inaugura o ''inédito viável" do qual Paulo Freire muitas vezes falou e instaura uma ruptura portadora de novidades.
A Igreja não se sente uma fortaleza cercada de inimigos por todos os lados, mas sim uma casa com janelas e portas abertas para acolher a todos. Francisco afirma com grande coragem: "Que aqueles que se aproximam da Igreja encontrem as portas abertas, e não controladores da fé"; "Prefiro uma Igreja acidentada a uma Igreja doente pelo seu fechamento".
Ele quer uma Igreja de todos e para todos, de modo particular para aqueles que vivem nas "periferias existenciais", ou seja, os vulneráveis e os crucificados da história. Para avaliar essa surpreendente, necessária e providencial mudança de direção, não há nada melhor do que traçar brevemente os limites do modelo anterior de Igreja, em grande parte ainda em vigor.
O exemplo do Papa Francisco, de humildade, simplicidade, despojamento, abertura, irá significar uma verdadeira crise. Esta, como um crisol, servirá para purificar as pessoas, começando pelos cardeais, bispos, padres, religiosos e religiosas, movimentos eclesiais e leigos, homens e mulheres que se sentem atraídos pelo carisma do novo papa e desafiados a seguir o seu exemplo.
Uma crise em que fala claro a Tradição de Jesus, mais original do que aquelas menores que subiram no barco de Pedro e a impediram de se mover no mar agitado do mundo. A liberdade de espírito que Francisco demonstra, soprará nas velas abertas do barco do pescador da Galileia para enfrentar as tempestades que ameaçam se abater sobre a humanidade e favorecer, ao invés, uma navegação segura e feliz.
Aplicam-se bem à Igreja atual os versos de Camões nos Lusíadas: "Depois de procelosa tempestade / Noturna sombra e sibilante vento / Traz a manhã serena claridade / Esperança de porto e salvamento".
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A ruptura de Francisco. Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU