17 Março 2014
"Independentemente do que as pessoas achem que o papa Francisco está oferecendo, ele não é mágico. Não pode alterar o curso da história secular, ou pôr fim às divisões ideológicas que se aprofundam, simplesmente reafirmando os poderes (na verdade, um tanto anêmicos) do papado. Nessa perspectiva, a excessiva atenção dada ao papa, embora talvez boa para os negócios, não o é para a Igreja. E por que não? Porque ela estimula a ilusão de que os males da Igreja podem ser curados por um homem, especialmente por um novo homem", escreve Paul Baumann, editor do jornal americano Commonweal, de católicos leigos, em artigo publicado pela revista online Slate, e reproduzido pelo jornal O Estado de S. Paulo, 16-03-2014.
Segundo ele, "teologicamente o papa deveria simbolizar a unidade da Igreja, mas nas últimas décadas ele tem simbolizado principalmente as esperanças e apreensões conflitantes dos católicos em lados opostos da divisão religiosa e cultural da Igreja. João Paulo II e Bento XVI tentaram disciplinar as tropas desregradas nos seminários, presbitérios, universidades e paróquias. Católicos liberais procuraram manter distância e aguardar - e hoje, cansados de décadas de reprimendas dos autoproclamados católicos "ortodoxos", começam a recuperar seu espaço, encorajados por Francisco e pelo que parece ser uma mudança de atitude (não de política) em Roma. Mas Francisco, apesar de seu evidente charme e estilo pastoral veemente, não terá muito mais sorte do que os predecessores teologicamente mais ansiosos em atenuar os conflitos ideológicos da Igreja. Como seus admiradores descobrirão, mesmo a mais cativante liderança papal - e o encanto está muito mais nos olhos do observador - não consegue resolver as divisões do catolicismo"
Eis o artigo.
Para que servem os papas? Nestes 25 anos que venho escrevendo sobre catolicismo, aprendi que são bons para os "papa-razzi" e para dar um toque de exotismo nos noticiários noturnos da TV. Ocasionalmente, claro, também servem para produzir páginas e páginas na imprensa: "Homem do Ano" da Times; capa da revista Rolling Stone; dez mil palavras de defesa acusatória na New Yorker sob o título "O Primeiro Ano de um Papa Radical". Aparentemente, há qualquer coisa com os papas que a mídia popular, normalmente indiferente à autoridade religiosa, considera quase irresistível - e, por isso, de tempos em tempos os papas têm até me levado à televisão para comentar essa ou aquela ação ou declaração papal.
Os papas modernos também ajudam a criar empregos para historiadores e biógrafo. A cada semana surge um fato na vida de Jorge Mario Bergoglio, ou uma coletânea de seus bate-papos. Senão, como saberíamos que o papa Francisco já foi leão de chácara (qualificação essencial, presume-se, para um guardião da ortodoxia...)?
Neste primeiro aniversário da elevação de Bergoglio ao trono de Pedro, choverão congratulações e elegias. Até certo ponto não é difícil compreender a atração - afinal não sobraram muitos celibatários ou monarcas absolutistas, menos ainda um que pode se vangloriar de ter bilhões de fiéis. Mas há algo de estranho no flerte entre o vigário de Cristo e a mídia obcecada por celebridades. E não há como não se admirar com o fascínio secular pelo papado que esse namoro sugere. Num mundo de opções ilimitadas contrabalançadas por conflitos aparentemente insolúveis, eis um homem e uma crença que pregam a renúncia às coisas mundanas e prometem justiça extraterrena! Estaria o papa oferecendo simplesmente uma fuga da carga que as responsabilidades da liberdade moderna acarretam ou propõe ele uma alternativa real? Para muitos católicos, essa questão continua importante. Que o digam as igrejas não tão vazias como os rumores fazem crer.
Independentemente do que as pessoas achem que o papa Francisco está oferecendo, ele não é mágico. Não pode alterar o curso da história secular, ou pôr fim às divisões ideológicas que se aprofundam, simplesmente reafirmando os poderes (na verdade, um tanto anêmicos) do papado. Nessa perspectiva, a excessiva atenção dada ao papa, embora talvez boa para os negócios, não o é para a Igreja. E por que não? Porque ela estimula a ilusão de que os males da Igreja podem ser curados por um homem, especialmente por um novo homem.
De fato, nenhum papa tem esse poder, graças a Deus! Lembremos que o primeiro deles era um homem de uma fraqueza lendária, que negou seu Deus três vezes antes de o galo cantar. E o papa mais recente, Bento XVI, de um intelecto superior e devoção inspiradora, ainda que obsoleta, saiu de cena subjugado pelas intrigas palacianas do Vaticano. João Paulo II, sem dúvida, foi um superastro da mídia e podemos dizer que teve um papel histórico no colapso da União Soviética. Mas mesmo ele não conseguiu lidar efetivamente com o maior desafio enfrentado por sua Igreja: o escândalo dos abusos sexuais no clero.
A verdade é que, quanto mais o mundo exalta a Igreja Católica com os olhos centrados no papado - e mais a conversa entre católicos é monopolizada por especulações sobre as intenções de um homem -, menor a probabilidade de a Igreja ir além das confusões e conflitos que a têm preocupado desde o Concílio Vaticano II (1962-1965). A Igreja precisa desesperadamente recuperar seu equilíbrio cultural e espiritual, encontrar a solidez e a grandeza de sua missão e culto. E precisa ainda de uma renovada presença pública, que transcenda, e muito, a mera lealdade ao papa. Sem esse equilíbrio e autodomínio, a Igreja não encontrará sua verdadeira voz. Mas, na busca dessa voz os católicos terão de se voltar não para Roma, mas um para o outro - pois é aí que estão os problemas e as soluções.
A fixação no papado banaliza a fé dos católicos, cuja vasta maioria, ao longo da história, teve pouco conhecimento, e nenhum contato, com algum papa. Tradicionalmente o papado era o tribunal de última instância na decisão sobre desacordos entre os fiéis. Mas no século passado ele se transformou na via de primeira instância, determinado a se imiscuir em todas as disputas teológicas ou eclesiásticas. Se freiras americanas estão flertando com novos estilos de ministério, o Vaticano interfere; se traduções de textos litúrgicos têm uma linguagem um pouco inclusiva, ele censura. Essa ingerência infantiliza os bispos, que parecem mudar de tom (e de traje) em resposta a cada novo modismo papal. E os bispos, por seu lado, exigem deferência do clero e dos leigos. As consequências são muito claras: como em qualquer organização vertical, as iniciativas locais não têm base de apoio ou fracassam por falta de liderança, e a apatia domina os bancos das igrejas. O impasse e a paralisia institucionais são a regra. Os seminários estão vazios e a vocação clerical é escassa.
Teologicamente o papa deveria simbolizar a unidade da Igreja, mas nas últimas décadas ele tem simbolizado principalmente as esperanças e apreensões conflitantes dos católicos em lados opostos da divisão religiosa e cultural da Igreja. João Paulo II e Bento XVI tentaram disciplinar as tropas desregradas nos seminários, presbitérios, universidades e paróquias. Católicos liberais procuraram manter distância e aguardar - e hoje, cansados de décadas de reprimendas dos autoproclamados católicos "ortodoxos", começam a recuperar seu espaço, encorajados por Francisco e pelo que parece ser uma mudança de atitude (não de política) em Roma. Mas Francisco, apesar de seu evidente charme e estilo pastoral veemente, não terá muito mais sorte do que os predecessores teologicamente mais ansiosos em atenuar os conflitos ideológicos da Igreja. Como seus admiradores descobrirão, mesmo a mais cativante liderança papal - e o encanto está muito mais nos olhos do observador - não consegue resolver as divisões do catolicismo.
Essas divisões, e as disputas que provocam, são incomodamente familiares. O que um católico "praticante" pensa do controle artificial da natalidade, da homossexualidade e do casamento entre pessoas do mesmo sexo; do divórcio; do sacerdócio exclusivamente masculino e do celibato dos padres; da laicidade, especialmente das mulheres, no processo decisório da Igreja; da relação entre papas e bispos; do pluralismo religioso; e do abuso sexual por parte de clérigos e a irresponsabilidade da hierarquia? Essas e outras perguntas estão no âmago do autoconhecimento católico. Entretanto essa Igreja, conhecida por valorizar a disciplina e a unanimidade, permanece profundamente dividida em todas elas. Em cada uma dessas questões, católicos de ambos os lados afirmam ser os reais herdeiros do Concílio Vaticano II. Todos concordam que o Vaticano II promulgou a mais abalizada interpretação dos ensinamentos da Igreja. Mas leem os documentos do concílio de maneira diametralmente oposta.
Como isso é possível? A resposta está nos próprios documentos. De um lado, as proclamações do Vaticano II abriram novas e surpreendentes possibilidades de os católicos se relacionarem entre si e com aqueles que estão fora da Igreja. "As alegrias e esperanças, aflições e angústias dos homens nesta era, especialmente os pobres ou os que estão de alguma maneira atormentados, também são as alegrias e esperanças, as aflições e angústias dos seguidores de Cristo", insistiram os bispos no Vaticano II, num espírito sem precedentes de ecumenismo. Ao mesmo tempo, porém, o concílio reafirmou definitivamente o absolutismo católico do passado. O eminente teólogo luterano George Lindbeck, observador protestante oficial no Vaticano II, descreveu o dilema que foi criado afirmando que "ambiguidades fundamentais e extremas nas mais abalizadas declarações do Concílio - sobre a infalibilidade papal, as relações com outros cristãos e o desafio de reconciliar a tradição católica com a Bíblia - permitiram às pessoas em lados diferentes no tocante a cada tema nevrálgico encontrarem um amplo apoio textual para suas interpretações. "Quando a lei suprema da terra autoriza diretamente posições rivais, talvez contraditórias, e não oferece nenhuma maneira de solucionar as disputas, o conflito é inevitável, e insolúvel se mudanças não forem realizadas na lei suprema", concluiu Lindbeck com autêntico pesar.
Pouco mudou nos quase 40 anos desde que o teólogo luterano fez essa avaliação. Mas ele também advertiu que uma tentativa precipitada para resolver as ambiguidades do Vaticano II seria um grave erro, fosse em nome dos reformadores da Igreja ou dos tradicionalistas. Na opinião de Lindbeck, uma solução estava muito distante. A crise não poderia terminar pela ação de um único papa, e ainda hoje não pode. Neste momento os católicos conservadores estão em busca de portos seguros, determinados a não serem prejudicados pelo reinado reputadamente "progressista" de Francisco. Como seus rivais liberais durante os últimos papados, os conservadores estarão lá, ávidos para retomar seu "merecido" lugar na frente da fila da comunhão quando o papa que desdenham sair de cena.
A persistência de tais divisões nos lembra que os católicos precisam encontrar uma maneira de viver com e sobreviver a suas contínuas disputas e, mais importante, conviver com o próximo. Talvez seja exatamente isso que o papa Francisco esteja tentando dizer ao rebanho com seu empenho em mudar o enfoque - afastando-se de Roma e voltando os olhos para os pobres e aflitos; deixando a questão sobre quem vive nos apartamentos papais para olhar para quem está dividindo o pão em ambientes mais modestos; e sair - o que é mais cativante - do papamóvel para usar um Renault usado.
Lex orandi, lex credendi é um dos mais veneráveis ensinamentos da Igreja. Numa tradução aproximada, significa que o culto da Igreja determina sua teologia, ou, como ensina o catecismo, "a lei da oração é a lei da fé: a Igreja crê quando ora". Sejam quais forem seus desacordos ideológicos, os católicos encontrarão a unidade e um relacionamento menos anacrônico com o papado se praticarem juntos sua fé - ou não a encontrarão definitivamente. E isso significa que o casal do mesmo sexo a seu lado no banco da Igreja poderá dar um exemplo mais fiel de testemunho cristão do que você imaginaria possível. Ou talvez a ardente devoção de um entusiasta da missa em latim o leve a reavaliar algumas tradições da Igreja que há muito tempo você descartou como irrelevantes e estéreis. Seja como for, a unidade e a vitalidade renovada da Igreja será - e deve ser - uma dádiva que os fiéis oferecem ao papa, não o inverso.