12 Março 2014
Uma revolução em Roma? Se existe uma revolução, ela é liderada por um homem normal no trono de Pedro, em cujo pontificado a Igreja está assumindo um perfil especial.
A opinião é do historiador da Igreja italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 06-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A entrevista do Corriere della Sera com o Papa Francisco é realmente um olhar abrangente de como ele governou a Igreja desde a sua eleição há um ano atrás. Hoje, Jorge Bergoglio já não é uma surpresa, mas sim um interlocutor familiar a todos, católicos e não católicos. Seu carisma não foi, no entanto, consumido por uma forte exposição pessoal e midiática? O papa diz claramente na entrevista com o diretor Ferruccio de Bortoli que não quer se parecer a um homem extraordinário: ele não gosta de "uma certa mitologia do Papa Francisco". Alude ao boato de que ele sai à noite para ajudar os sem-teto: "Pintar o papa como uma espécie de super-homem, uma espécie de estrela, parece-me ofensivo". Afirma "ofensivo". No entanto, há uma sede do "extraordinário" que se projeta sobre o papa, que pede a cada dia algo novo. Lembra-nos a lista de "primeiros" do Papa João Paulo II, um homem fora do comum.
Francisco resiste serenamente às exigências da mídia. Ele não quer ser o super-homem em um tempo de culto (efêmero) do líder e da carência de classes dirigentes: "O papa é um homem que ri, chora, dorme tranquilo e tem amigos. Uma pessoa normal". Não são apenas expressões de humildade. É a chave de uma história: um homem normal "no trono de Pedro". No entanto, o clima da Igreja mudou bastante e também do mundo em relação a ela, em um mundo nem sempre benevolente. Um papa que fala da sua eleição tão normalmente como se fosse uma "transferência de diocese" ("exaltação ao pontificado", como dizia o velho linguajar da Cúria). Ele não esperava isso, e é verdade. Ele começou a trabalhar com paixão e seriedade, começando cada dia com a oração, a Bíblia, as missas da manhã na Casa Santa Marta. Um homem comum no trono de Pedro, que leva a sério os protagonistas da Igreja: "Comecei a governar tentando colocar em prática o que havia emergido do debate entre os cardeais".
Não há um "projeto" reformador, como o Papa Montini, formado ao longo de muitos anos de Cúria. Entretanto, se engana quem pensa que Bergoglio não tem convicções fundamentais e orientativas, amadurecidas em uma megalópole como Buenos Aires, investida em profundidade pela globalização.
Por exemplo, quando fala de ecumenismo, ele lembra da sua experiência na Argentina, afirmando que é preciso viver antes de teorizar: "É importante que nós caminhemos juntos". Outra crença firme toca o tema candente dos valores inegociáveis: "Eu nunca compreendi a expressão "valores inegociáveis". Os valores são valores, e basta, não posso dizer que entre os dedos de uma mão haja um menos útil do que os outros". Finalmente, uma revelação na entrevista: há uma troca de cartas com o presidente da China, Xi Jinping. Podemos ter a certeza de que o papa jesuíta está à procura de novas maneiras de contato com o "continente" chinês: "É um povo grande ao qual eu quero bem".
Uma revolução em Roma? Se se trata de uma revolução (como alguns lamentam), é a de um homem normal no trono de Pedro. Ele sabe, no entanto, que é preciso envolver os vários componentes da Igreja. Ferruccio de Bortoli levanta uma questão que circula no mundo vaticano: o papa decide sozinho sem compartilhar as escolhas? Responde Francisco: "Seria um homem sozinho se decidisse sem ouvir ou fingindo ouvir. Mas há um momento, quando se trata de decidir, de colocar uma assinatura, em que está sozinho apenas com o seu senso de responsabilidade".
Conversar com outras pessoas e ouvir (quantos são recebidos por ele) não é desistir da responsabilidade. Paulo VI escreveu em 1963, após a eleição: "Eu devo acentuar esta solidão: não devo ter medo, não devo buscar apoio exterior que me exonere do meu dever". Francisco tem uma visão menos dramática do que Montini: gosta de ouvir, falar, conhecer pessoas. Mas ele sabe decidir. Ele também decidiu discutir. Vimos isso no consistório recente, que não foi unânime sobre a conferência de Kasper, "belíssima e profunda apresentação", de acordo com o papa, mas não para todos os cardeais.
Francisco disse: "Eu ficaria preocupado se no consistório não tivesse havido um debate intenso, ele não teria servido para nada". Os cardeais sabiam que podiam dizer o que quisessem. Francisco não tem um modelo a ser imposto, mas abre caminho para repensar processos - como sobre a família – a fim de resolver questões de um modo complexo e "profundo" (conceito recorrente): "Os confrontos abertos e fraternos fazem crescer o pensamento teológico e pastoral".
Há um pensamento que precisa crescer na Igreja, ainda muito anquilosado: precisamos não repetir a casuística, ir para a realidade, compreender e ser criativos: "A questão não é a de mudar a doutrina, mas sim de ir fundo e fazer com que a pastoral leve em conta as situações e o que é possível fazer pelas pessoas" (ele se refere ao controle de natalidade, mas tem um valor geral).
Isso não leva a se adaptar ao mundo ou, pior, à banalidade: não ao neomalthusianismo, ao domínio das finanças, reivindicações do que Bento XVI e a Igreja fizeram para limpar os graves escândalos de pedofilia ("Ninguém mais fez mais. No entanto, a Igreja é a única a ser atacada"). Domina uma grande ambição, ou, melhor, o papa diria, uma utopia: fazer com que a Igreja seja uma comunidade de crentes mais humana, evangélica e extrovertida no mundo.
Esse homem normal, muito argentino, afeiçoado à irmã doente em Buenos Aires, sabe viver o desapego e a disciplina que uma grande missão e um grande sonho requerem: "Gostaria de vê-la, mas isso não justifica uma viagem à Argentina (...). Não penso em ir antes de 2016, porque na América Latina eu já fui ao Rio". Ele diz isso para De Bortoli com simplicidade. Mas sua revolução está apenas começando. A de um homem normal, em cujo pontificado a Igreja está assumindo um perfil especial.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A normalidade ''excepcional'' de Francisco. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU