10 Março 2014
Há muitos aspectos extremamente interessantes na conferência ao consistório do cardeal Kasper, publicado pela jornal Il Foglio no último sábado, diz Alberto Melloni, historiador da Igreja e do Vaticano II. "A primeira diz respeito ao método e é, em muitos aspectos, uma novidade. Kasper não procede da comparação estática entre o 'o que acontece no mundo' e a resposta doutrinal que deve descender daí. Ao invés, ele parte das perguntas que a realidade faz à Igreja". Outra coisa notável da palestra de Kasper "é que o problema são os párocos, não os divorciados".
A reportagem é do jornal Il Foglio, 04-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Isso é paradoxal, professor. Em que sentido você diz isso?
No sentido de que o problema é corretamente colocado não como busca de solução a ser aplicada a pecadores, mas sim de dar uma legitimação canônica a uma prática de acolhida e perdão que qualquer pároco, removidos os casos de grave escândalo, aplica desde sempre. O problema do acesso à Eucaristia por parte dos divorciados é acima de tudo eclesial, não moral. Não é por acaso que um dos textos de referência para a conferência do teólogo Kasper – teólogo, especialista em eclesiologia e não em moral – foi escolhido pelo Papa Francisco, é um livro de Giovanni Cereti: Divorzio, nuove nozze e penitenza nella chiesa primitiva [Divórcio, novas núpcias e penitência na Igreja primitiva]. Cereti é um teólogo que fez um trabalho profundo redescobrindo e reavaliando aspectos fundamentais. Por exemplo, que a tradição antiga considerava o adultério como um dos pecados mais graves, mas também que era um pecado que a Igreja tinha a faculdade de perdoar.
Nesse sentido, você defende que se trata de uma questão eclesial?
Sim. O que está em jogo é a reivindicação de que a Igreja tem o poder de perdoar até mesmo esse pecado. Portanto, o primeiro ponto é o que a Igreja afirma sobre si mesma e oferece ao homem. Ou a Igreja é impotente diante do divórcio?
Sim, esse é justamente o tema do debate.
Que Kasper não resolve. E eu também acho isso muito bem feito: ele reitera que a Igreja não é obrigada para resolver um tema tão complexo em dez minutos. Ao contrário, é uma crítica implícita justamente àqueles que dizem, ou estão tentando dizer, que "não há nada para discutir".
Você concorda com aqueles que defendem que o documento de Kasper marca, já agora, uma mudança de paradigma, que até mesmo o Sínodo sobre a família pode se tornar um Vaticano III?
Eu diria que sim. Não esqueçamos que o parágrafo mais importante de todo o primeiro ano de Bergoglio é a passagem da Evangelii gaudium em que se diz que as Conferências Episcopais devem ter a própria capacidade e autonomia doutrinal. Isso significa que, dentro do debate sobre a família, pode-se colocar em marcha um mecanismo de sinodalidade. A mudança de paradigma, além disso, está também nos conteúdos. Significa não estar mais lá com os controladores, estáticos, medindo o quanto se difere da norma. No centro, está a compreensão que a Igreja tem de si mesma e da sua faculdade de perdoar.
Com relação à Familiaris consortio, é inegável alguma diferença, portanto.
Lá, a perspectiva era: "Infelizmente, não se pode fazer nada". Mas não é assim, e a sugestão oferecida por Kasper é que o problema não é o de se deslocar para a esquerda, porque sempre há alguém mais à esquerda do que você, mas sim ser realista na teologia. O realismo teológico: é preciso partir do fato de que essas pessoas divorciadas querem fazer parte da Igreja. Como você responde? Mesmo sobre o tema da ruptura do sacramento ("não se pode fazer nada"), não é verdade que as coisas são assim. Há uma tradição antiga e oriental que, no primeiro milênio, quando a Igreja não tinha assumido sobre si a hipoteca da proteção da Christianitas, elaborou uma compreensão diferente das coisas. Daí se pode partir.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
''O problema são os párocos, não os divorciados''. Entrevista com Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU