10 Março 2014
O “relatório Kasper” fala de modo particularmente direto à cultura norte-americana toda quando aborda o problema das "expectativas excessivas" como causa do fracasso de muitos casamentos.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no jornal Il Foglio, 07-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O “relatório Kasper” aos cardeais reunidos no consistório de fevereiro de 2014 está destinado a ter uma grande difusão nos Estados Unidos e um impacto que vai se somar à magnitude do Francis effect no país das "guerras culturais" que caracterizaram o debate religioso e moral dos últimos 40 anos.
O cardeal Kasper fez importantes turnês acadêmicas nos Estados Unidos: as universidades católicas mais importantes (Notre Dame, na primavera passada; Fordham no próximo mês de maio) dedicaram congressos e jornadas de estudo (e a editora Paulist Press, que está prestes a anunciar a publicação das obras completas de Kasper em inglês, nestes dias, está traduzindo a conferência aos cardeais para o público anglófono).
Kasper tinha se tornado um símbolo da resistência à linha oficial nos tempos do debate eclesiológico com Ratzinger sobre Igreja universal-local entre 1999 e 2002. Com grande desapontamento dos ratzingerianos, o Papa Francisco fez de Kasper o seu teólogo de referência: a reviravolta do pontificado está se consolidando e encontrou o teólogo à altura das expectativas naquele extremo Ocidente que são os EUA.
O relatório Kasper diz algumas coisas específicas à Igreja e à teologia norte-americanas. Na passagem em que afirma que, sobre a questão dos divorciados em segunda união, não se deve buscar "uma adaptação liberal ao status quo, mas sim uma posição radical", Kasper interpela duas almas particularmente ativas no catolicismo nos EUA: a teologia liberal, por um lado, e a teologia radical pós-moderna, por outro.
Esta última consiste em duas escolas de pensamento muito presentes na teologia anglófona: a "radical orthodoxy", do teólogo britânico John Milbank, e os muitos e ativíssimos discípulos católicos norte-americanos do teólogo metodista norte-americano Stanley Hauerwas, que tendem a rejeitar a modernidade e a ver o futuro do catolicismo na pós-modernidade apenas como "comunidade" – um comunitarismo católico de forte intensidade interna e renunciatário em relação à esfera pública.
A teologia da Francisco (e a de Kasper) rejeita ambos os paradigmas, seja o liberal, seja o antimoderno pós-moderno. O debate sobre o casamento tem um papel central nesses ambientes teológicos, especialmente no da "radical orthodoxy", que tende a ver na visão moral católica (do matrimônio e, portanto, do divórcio) uma das chaves interpretativas da relação entre cristianismo e desafio da modernidade.
Mas o relatório Kasper fala de modo particularmente direto à cultura norte-americana toda quando aborda o problema das "expectativas excessivas" como causa do fracasso de muitos casamentos. A cultura norte-americana em geral ressente-se da idolatria pelo matrimônio (um filme como Missão Madrinha de Casamento não exagera muito). O casar-se (ou seja, encontrar alguém para se casar ou que lhe despose) ainda é visto como uma das maiores metas, parte integrantes do "make it", do virar-se: "College, marriage, children, job" [Faculdade, casamento, filhos, trabalho].
A norte-americana é uma nação e uma cultura que sempre premiou o lado "natural", tanto da questão casamento-família-filhos, quanto de outros aspectos típicos do americanismo (darwinismo social, pena de morte). A cultura norte-americana (também católica) dominante tende a não se interrogar demais sobre a relação entre instintualidade e moralidade de muitas instituições e costumes típicos dos EUA, ou seja, tende a moralizar os instintos (o de se reproduzir, assim como à violência), sem fazer perguntas radicais sobre a consistência teológica daquelas codificações morais (como a moral do patriotismo e do excepcionalismo norte-americano).
A relação entre tradição teológica e casamento é delicada para um catolicismo que se formou nos EUA em um movimento seja de distinção da cultura protestante (o culto do latim), seja de imitação dela (mais uma vez, o excepcionalismo da nação norte-americana). Nesse sentido, outro ponto-chave do relatório Kasper é o que se refere ao direito natural: "O direito natural permanece genérico e, quando se trata de questões concretas, ambíguo".
Em uma cultura legalista como a norte-americana, o lugar do direito natural é levado muito mais a sério do que em outros lugares: não só em uma tradição intelectual católica (basta pensar nos estudos dos últimos 50 anos, de Brian Tierney a John Finnis) ainda ancorada no binômio Agostinho-Tomás. Não é segredo que a expressão "valores inegociáveis" teve um papel particular na retórica das culture wars norte-americanas sobre o aborto, mas também sobre o matrimônio.
É evidente que a reproposição por parte de Kasper da imagem usada por Francisco na entrevista a La Civiltà Cattolica da Igreja como "hospital de campanha" tem o valor nos EUA de repropor aos católicos feridos no campo de batalha das culture wars uma ideia de Igreja acolhedora e aberta àquele número estatisticamente altíssimo de famílias atípicas, em um país onde são muito atípicos também os percursos religiosos individuais (uma percentagem relevante de norte-americanos muda de Igreja ao longo da própria vida, e o grupo religioso mais relevante dos EUA, depois dos protestantes, são os ex-católicos).
A ideia de uma Igreja acolhedora fala de modo particularmente claro aos católicos e aos bispos de um catolicismo em que, nos últimos anos seguidos da época Wojtyla-Ratzinger, haviam se tornado evidentes as tendências para introduzir elementos calvinistas (ou seja, sectários) na experiência das paróquias e das escolas católicas (com inúmeros casos de exclusão de católicos abertamente gays e de filhos adotados por casais gays, não só dos sacramentos, mas também da vida comunitária).
O ponto nevrálgico das aberturas de Kasper e de Francisco sobre a questão do matrimônio e do divórcio, mas, mais em geral, o ponto realmente crítico da relação entre o pontificado e a cultura norte-americana, concerne à questão do gênero. A teologia católica norte-americana pós-conciliar assumiu a distinção entre sexo e gênero.
Os teólogos e especialmente as teólogas norte-americanos que esperavam por uma nova primavera na Igreja apreciam o Papa Francisco: mas usaram palavras claras ao julgar negativamente a linguagem bergogliana sobre a questão da mulher na Igreja e na teologia. É uma questão de tradução em inglês, mas não só, e o relatório Kasper, nisso, é fiel mensageiro da brecha mais significativa entre cultura teológica norte-americana e a do resto do mundo.
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As ''expectativas excessivas'' dos norte-americanos sobre valores e casamento: a prova de Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU