28 Fevereiro 2014
As nuvens que pairam sobre a Floresta Amazônica possuem características similares às das nuvens existentes em regiões de alto mar. Como há muita umidade na atmosfera e baixíssima concentração de material particulado – que oferece superfície para condensação do vapor d’água – as gotas aumentam de tamanho rapidamente e logo adquirem massa suficiente para precipitar.
A reportagem é de Karina Toledo, publicada pela Agência Fapesp, 27-02-2014.
Essa particularidade da floresta tropical foi descrita pela primeira vez em 2004, em um artigo publicado na revista Science por cientistas que participavam do Large-Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia (LBA) – um programa de cooperação internacional liderado pelo Brasil. A descoberta rendeu à Amazônia a alcunha de “oceano verde” (green ocean).
O mesmo estudo sugeriu, porém, que a eficiência amazônica na produção de chuva estaria ameaçada pela crescente poluição resultante da urbanização e da queima de biomassa. Isso porque o aumento de material particulado (partículas de aerossóis) na atmosfera criaria uma quantidade maior de núcleos de condensação da água e, consequentemente, reduziria o tamanho das gotas e retardaria todo o processo de precipitação.
“Se a poluição estiver, de fato, alterando as características das nuvens na Amazônia, a consequência será uma mudança significativa no regime de chuvas. E alterar o equilíbrio hidrológico de uma região gigantesca, responsável por controlar o transporte de umidade para o sul do país, pode trazer impactos importantes nas regiões Sudeste e Centro-Oeste”, afirmou Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e coautor do artigo publicado na Science.
Para testar a hipótese do efeito da poluição sobre as nuvens e avançar no conhecimento sobre os processos de formação de chuva e a dinâmica da interação entre a biosfera amazônica e a atmosfera, teve início em janeiro deste ano a campanha científica Green Ocean Amazon (GOAmazon), que reúne pesquisadores de diversas universidades e institutos brasileiros e norte-americanos e conta com financiamento do Departamento de Energia dos Estados Unidos (DoE, na sigla em inglês), da FAPESP e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), entre outros parceiros.
“O uso dos recursos naturais pelos seres humanos se acelerou nos últimos 30 ou 40 anos. A pergunta que estamos tentando responder com este experimento é: até que ponto podemos poluir, arrancar árvores e mudar o clima? Até quando a Terra vai suportar?”, disse Scot Martin – professor da Harvard University, nos Estados Unidos, e idealizador do GOAmazon ao lado de Artaxo – durante o lançamento oficial do programa no Amazonas, no dia 18 de fevereiro.
De acordo com Martin, a cidade de Manaus e seu entorno configuram o laboratório ideal para esse tipo de investigação. Isso porque a capital amazonense – com várias usinas termelétricas, quase 2 milhões de habitantes e 600 mil carros – está rodeada por 2 mil quilômetros (km) de floresta. Na época das chuvas, a região chega a ter níveis de material particulado tão baixos quanto os existentes na era pré-industrial.
Em 2010, Martin submeteu ao DoE uma proposta para trazer ao Brasil a infraestrutura do Atmospheric Radiation Measurement (ARM) Facility – um conjunto móvel de equipamentos terrestres e aéreos desenvolvido para estudos climáticos, principalmente sobre o processo de formação de nuvens e de transferência de radiação.
Com o projeto aprovado, uma parceria entre DoE, FAPESP e Fapeam foi articulada para potencializar o uso do observatório móvel por cientistas do Brasil e dos Estados Unidos. O resultado foi uma chamada conjunta de propostas lançada em 2013 com financiamento total de R$ 24 milhões.
Seis projetos foram aprovados e se somaram a outros já em andamento, como o Temático “Processos de nuvens associados aos principais sistemas precipitantes no Brasil: uma contribuição à modelagem da escala de nuvens e ao GPM (Medida Global de Precipitação)”, coordenado por Luiz Augusto Toledo Machado, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e o Temático “GoAmazon: interação da pluma urbana de Manaus com emissões biogênicas da Floresta Amazônica”, coordenado por Artaxo e Maria Assunção Faus da Silva Dias, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP.
Atualmente, a Fapeam está com um edital aberto para pesquisadores amazonenses interessados em se unir à campanha do GOAmazon.
Em janeiro de 2014, o ARM Mobile Facility (AMF) começou a ser instalado na cidade de Manacapuru, a cerca de 100 quilômetros a oeste (vento abaixo) de Manaus. O local foi escolhido porque recebe em pelo menos metade do ano a pluma de poluição da capital trazida pelos ventos alísios, que sopram de leste para oeste. No restante do tempo, a região recebe apenas ar muito limpo, sendo possível comparar as duas situações.
O observatório móvel é composto por 11 contêineres repletos de sensores, radares e outros equipamentos apropriados para coletar e analisar as partículas de aerossóis e os diversos gases presentes na atmosfera, além de medir propriedades de nuvens e parâmetros meteorológicos como temperatura, umidade e velocidade dos ventos. Outros quatro contêineres foram instalados no sítio de pesquisa – batizado de T3 – pelos parceiros brasileiros do GOAmazon.
Foto: Eduardo Cesar / Fapesp |
“O ARM-AMF já esteve em países africanos, como a Nigéria, na Alemanha, na China e na Índia. Mas é no Brasil que ficará pelo período mais longo. É o maior experimento que nós, do DoE, já fizemos”, comentou Wanda Ferrel, diretora do programa ARM.
Sítios complementares
Durante os quase 100 quilômetros que a pluma de poluição de Manaus percorre até Manacapuru, as partículas interagem com os gases da atmosfera e chegam ao destino final bastante modificadas. A localização do sítio T3 tem a vantagem de possibilitar aos cientistas estudar o resultado dessa transformação e seu impacto nas nuvens e no clima local. No entanto, observou-se a necessidade de comparar os dados com medições feitas em locais expostos mais diretamente à poluição manauara.
Com apoio da FAPESP, por meio do projeto Temático coordenado por Artaxo, um contêiner com equipamentos semelhantes aos existentes em Manacapuru foi instalado no município de Iranduba, situado na margem do Rio Negro oposta à cidade de Manaus. O sítio de pesquisa sediado dentro do hotel de selva Tiwa é chamado pelos participantes do GOAmazon de T2.
Foto: Eduardo Cesar / Fapesp |
Em uma primeira análise dos dados que estão sendo coletados desde janeiro, o grupo de Artaxo, formado por 10 pesquisadores, já encontrou resultados impressionantes.
“Observamos no T2, em Iranduba, concentrações significativas de dióxido de enxofre não detectadas no T3, em Manacapuru. Também notamos que em ambos os sítios de pesquisa há forte predominância de aerossóis orgânicos – responsáveis por até 85% da massa das partículas –, mas a composição química muda radicalmente de um local para outro, como resultado dos processos químicos atmosféricos. Observamos ainda, em Manacapuru, níveis duas vezes mais altos de ozônio do que os verificados em Iranduba”, contou Artaxo.
De acordo com o pesquisador, a concentração de ozônio registrada em Manacapuru – algo na ordem de 40 partes por bilhão (ppb) – é alta o suficiente para danificar os estômatos das folhas e, consequentemente, prejudicar o processo de fotossíntese e emissão de vapor d’água.
“Os impactos da poluição atmosférica não são iguais em todos os lugares. Há particularidades nos processos de química atmosférica que aparecem da interação da pluma urbana com os compostos orgânicos voláteis (VOCs, na sigla em inglês) emitidos pela vegetação”, explicou Artaxo.
Os VOCs correspondem a algumas centenas de substâncias – dentre as quais as mais conhecidas são os isoprenos e terpenos – emitidas pela vegetação como resposta ao estresse oxidativo. Um dos objetivos do projeto de Artaxo é descobrir o quanto esse estresse vegetal é intensificado pela poluição, uma vez que os VOCs também podem se transformar em partículas de aerossóis, funcionar como núcleos de condensação de nuvens na atmosfera e interferir nos processos de formação de nuvens e de chuva.
Outro projeto em andamento no âmbito do GOAmazon, sob coordenação de Jeff Chambers, do Lawrence Berkeley National Laboratory, órgão ligado ao DoE, tem como objetivo aprofundar o conhecimento sobre as funções do VOCs na fisiologia das plantas e entender como as emissões mudam de acordo com a quantidade de luz, de chuva e como tudo isso afeta o ecossistema florestal. As medições do grupo de Chambers estão sendo feitas em um conjunto de torres situado 50 km ao norte de Manaus, próximo ao km 34 de uma estrada de terra conhecida como ZF2.
Foto: Eduardo Cesar / Fapesp |
Outro conjunto de torres usado pelo grupo fica na Reserva Biológica de Uatumã, uma área de floresta distante 160 quilômetros a nordeste de Manaus, onde a poluição urbana não chega. No local, chamado de T0, está sendo construída uma torre de observação com 320 metros de altura pertencente ao projeto Torre Alta de Observação da Amazônia (ATTO, na sigla em inglês) – uma parceria do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa) com o Instituto Max Planck de Química, da Alemanha.
O ATTO, cujo objetivo é compreender melhor a interação entre a biosfera e a atmosfera, é liderado por Antonio Ocimar Manzi, pesquisador do Inpa e coordenador-geral do GOAmazon no Brasil.
A infraestrutura para coleta de dados do GOAmazon conta ainda com duas torres instaladas dentro da cidade de Manaus, na sede do Inpa (sítio T1), além de sítios complementares de projetos associados, dois balões meteorológicos capazes de subir até 2 quilômetros de altura e dois aviões de pesquisa.
Uma das aeronaves, pertencente ao laboratório americano Pacific Northwest National Laboratory (PNNL), chegou ao Brasil no dia 16 de fevereiro e deve ficar até o final de março, quando se encerra o período das chuvas. Durante esse período, serão realizados entre 20 e 25 voos com cerca de 4 horas de duração cada. Entre os vários equipamentos existentes no avião, há sensores nas asas capazes de medir o tamanho das gotas presentes nas nuvens.
“Seguiremos a evolução da pluma de poluição até o momento que ela perde sua assinatura, para ver como ocorre esse processo. O experimento foi desenhado com o objetivo de caracterizar a pluma e entender a intensidade e a extensão da perturbação que ela causa na atmosfera da floresta. É um conhecimento que vai muito além do caso específico de Manaus”, disse Karla Longo, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenadora brasileira do projeto Intensive Airbone Research in Amazonia (IARA), parte do GOAmazon.
Foto: Eduardo Cesar / Fapesp |
Uma nova campanha aérea está prevista para ocorrer nos meses de setembro e outubro de 2014, época da seca na Amazônia. Nessa ocasião, as medições serão feitas tanto pela aeronave americana quanto por um avião alemão que voa em altas altitudes. Ambos seguirão o mesmo trajeto, mas em diferentes alturas.
Banco de dados de acesso público
Todas as informações geradas pelos diversos projetos e sítios do GOAmazon estão sendo compartilhadas em um banco de dados de acesso público, com cópias em Manaus, em São Paulo e nos Estados Unidos.
“Somente cerca de 5% dos dados que estão sendo coletados vão ser aproveitados nesse primeiro momento, pois não temos fôlego suficiente para processar toda a informação que está sendo coletada. Mas essa base de dados ficará disponível para qualquer pesquisador e para alunos interessados e será uma material riquíssimo para teses e projetos a serem desenvolvidos pelos próximos 20 anos, pelo menos”, avaliou Artaxo.
Para o pesquisador, no entanto, o ideal seria manter uma estrutura permanente, equivalente à montada em Manacapuru, para acompanhar com dados concretos os impactos das mudanças climáticas na Amazônia e nos demais biomas brasileiros. Estruturas como essa, disse Artaxo, existem em diversos locais dos Estados Unidos, da Europa e até mesmo na China.
“O Brasil precisa ter um sistema avançado de monitoramento de mudanças ambientais que estão ocorrendo e impactando fortemente os ecossistemas brasileiros. Ou convencemos o DoE a manter essas instalações por mais tempo no país ou o governo brasileiro implementa um programa nacional voltado a monitorar propriedades críticas dos ecossistemas brasileiros. O ideal seria ter uma rede com estações de medição na Amazônia, na Mata Atlântica, no Pantanal, na Caatinga, no Cerrado, pois cada bioma tem fragilidades diferentes e é importante entender processos que já estão afetando o funcionamento destes ecossistemas”, disse Artaxo.
Além do custo inicial para a aquisição dos equipamentos, o grande desafio é a manutenção e a operação do complexo sistema. Os instrumentos são frágeis, requerem manutenção constante e uma equipe de cientistas acompanhando em tempo integral. A grande dúvida é como seria financiada a empreitada no longo prazo.
Desdobramento do LBA
A maior parte das instalações usadas no GOAmazon tem origem nas pesquisas realizadas no âmbito do LBA, uma cooperação internacional financiada por Brasil, Estados Unidos e Europa que se articulou no início dos anos 1990 e se intensificou entre os anos de 1998 e 2005. O objetivo do LBA é compreender a influência da Amazônia no clima global e entender como as atividades antrópicas e as mudanças climáticas poderiam afetar esse bioma. Recentemente, o LBA iniciou a execução da Fase II do programa, focado nos próximos 10 anos.
Desde 2005 o governo brasileiro assumiu o Programa LBA, mantido com recursos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), sob coordenação do Inpa.
De acordo com Manzi, o GOAmazon representa uma continuação e um aprofundamento de temas antes investigados no LBA. “Já conhecemos muito sobre microfísica de nuvens, mas ainda há muito a aprender. Isso permitirá aprimorar os algoritmos que representam os processos de formação de nuvens e produção de chuva nos modelos climáticos. Resultará não apenas em previsões meteorológicas mais precisas, como também em projeções de cenários futuros mais confiáveis – o que é extremamente importante para a definição de políticas públicas e para o planejamento de longo prazo”, avaliou Manzi.
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Força-tarefa investiga se ‘oceano verde’ da Amazônia está em risco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU