13 Fevereiro 2014
"Talvez, a presença de um papa que veio do 'fim do mundo' e do 'mundo dos pobres', possa favorecer", escreve Sérgio Ricardo Coutinho, professor do curso de pós-graduação em História do Cristianismo Antigo na UnB e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (Cehila-Brasil). [1]
Eis o artigo.
Neste início de novo ano de 2014, a Igreja no Brasil revelou toda a sua dinâmica em vários eventos significativos. No entanto, se faz necessário uma pequena reflexão sobre o que todos estes fatos querem dizer e que caminhos apontam.
13º Intereclesial: a sinodalidade “de base”
No início de janeiro, as CEBs realizaram seu 13º Encontro Intereclesial, em Juazeiro do Norte, na Diocese de Crato (CE). Arriscaria-me afirmar, com pouca margem de erro, que estavam presentes ali 4 mil delegados(as) (leigos, leigas, jovens, religiosas e padres) representando aproximadamente 85% das dioceses do Brasil. Além do mais, contamos com a presença de 72 bispos (entre arcebispos, bispos, auxiliares e eméritos) vindos de todos os Regionais da CNBB.
De fato, o Intereclesial, e este em especial, confirma bem uma das grandes contribuições do Concílio Vaticano II: a colegialidade entre as Igrejas locais e uma espécie de sinodalidade “de base”. E para confirmar ainda mais esta colegialidade, muitos bispos que não puderam participar, fizeram questão de celebrar missas de envio, acompanhar seus delegados(as) ao aeroporto ou rodoviária, ou então enviaram Cartas, como fez o presidente da CNBB, Dom Raymundo Damasceno Assis. E uma destas cartas foi, sem dúvida, muito especial: a do Bispo de Roma, papa Francisco.
Pela primeira vez na história dos Intereclesiais, uma carta vinda do bispo de Roma. E em sua mensagem, Francisco confirma a caminhada das CEBs citando o nº 178 do Documento de Aparecida, além de corroborar com sua eclesiologia missionária afirmando que “todos devemos ser romeiros, no campo e na cidade, levando a alegria do Evangelho a cada homem e a cada mulher” e “anunciando e testemunhando com os pobres a profecia dos ‘novos céus e da nova terra’”.
Também cita o nº 29 de sua Exortação Evangelii Gaudium, mas alguns viram nesta citação o ponto fraco da mensagem, como que o papa quisesse paroquializar as CEBs e não vendo-a como uma “célula de estruturação eclesial” como diz Medellín. De fato, seria esperar demais que um papa valorizasse mais uma estrutura não-canônica que a canônica como é a paróquia. Agora, este nº 29 não pode ser lido isoladamente. Ele deve ser lido no conjunto de orientações que a Evangelii Gaudium dá sobre a “conversão pastoral” das estruturas eclesiais (entre elas a paróquia) para poder colocar a Igreja e seus agentes em uma atitude de “saída” (nº 27). Neste sentido, as CEBs podem ajudar muito neste processo, mas para isso não podem se isolar da realidade paroquial por mais problemática que ainda seja.
Por outro lado, também precisamos vincular esta carta com o pronunciamento feito por Francisco aos membros do CELAM no Rio de Janeiro durante a JMJ. Ali, ele colocava como antídoto contra a tentação de todo clericalismo aquelas estruturas participativas que há muitos anos têm sido fundamentais na ação pastoral no Brasil: os Grupos Bíblicos, as próprias CEBs e os Conselhos Pastorais. Se se quer uma conversão das paróquias, elas deveriam se organizar neste tripé. É neste outro sentido mais lato que devemos ler a mensagem do papa. Ele acredita na CEBs como espaço de “crescimento da maturidade laical”.
De certa forma, este Intereclesial acabou também por ir ao encontro de uma visão que o papa Francisco tem dos leigos: o católico como povo. Existe em nosso continente, segundo ele, uma forma de liberdade laical através das experiências do povo, aquela autonomia dos leigos e leigas “que se expressa fundamentalmente na piedade popular”. E foi o que se viu em Juazeiro do Norte. O povo das CEBs não só debateu e celebrou suas lutas proféticas, a serviço da vida e por justiça no campo e na cidade, mas também se fez romaria ao espaço sagrado da “piedade popular”: dos beatos e das beatas, dos benditos e das rezas, de Pe. Cícero, de Zé Lourenço e de Maria de Araújo.
Ampliada Nacional da PJ: 40 anos construindo uma Igreja Jovem.
Um dos pontos altos deste último Intereclesial foi a presença maciça da juventude, especialmente aquela organizada nas chamadas Pastorais da Juventude (de modo particular na Pastoral da Juventude no Meio Popular e na Pastoral da Juventude).
Por sinal, a Pastoral da Juventude que comemora seus 40 anos de existência, viveu um momento de tomada de decisões em sua última Ampliada Nacional, realizada também em janeiro deste ano, em Ribeirão das Neves (MG). Sua história se confunde muito com a própria caminhada das CEBs e das Pastorais Sociais, onde formou um sem número de jovens que ajudaram a compor os muitos quadros de agentes no campo das lutas sociais e políticas nos últimos anos.
Em 1985 foi criada, a partir da CNBB, a Pastoral da Juventude no Brasil (PJB) como o espaço de articulação de todas as PJs no país (Pastoral da Juventude Estudantil – PJE; Pastoral da Juventude Rural – PJR; Pastoral da Juventude no Meio Popular – PJMP e Pastoral da Juventude – PJ). No entanto, esta hegemonia começa a ser refutada a partir de 2007 quando a própria CNBB começou a optar por um “Setor Juventude” para incluir outras organizações juvenis, vindas dos Movimentos eclesiais e das Novas Comunidades, com outra perspectiva eclesiológica e outra perspectiva evangelizadora da juventude. Para isso, a CNBB lança o Documento nº 85 que apresentava esta nova forma de organização da ação pastoral “de” Juventude com a oficialização do “Setor Juventude” nas dioceses. Apesar disso, o documento acabava por assumir também diversos princípios das PJs tais como o método Ver-Julgar-Agir, o olhar sobre a realidade sócio-política e econômica, e as opções pedagógicas (formação integral, assessoria etc.). Em 2011, a CNBB dá mais um passo neste processo ao criar a Comissão Episcopal para a Juventude e retira o Setor Juventude da Comissão do Laicato. Com a organização da JMJ este processo se acelerou muito rapidamente quando os jovens dos movimentos eclesiais e das Novas Comunidades praticamente estabeleceram sua hegemonia no Setor Juventude.
Durante a ANPJ esta situação que para alguns seria vista como uma crise foi debatida. Parece-nos que, com o objetivo de se defender e manter firme sua identidade, a PJ acabou por encerrar-se sobre si mesma, procurando resistir a uma investida dura, principalmente pelo movimento de retomada da “identidade católica” que sempre acusou as PJs (e também as CEBs e as Pastorais Sociais) de serem “politizadas demais”. Em outras palavras, a acusação que perpassa muitos grupos e membros do clero é que a PJ representa uma Igreja por demais aberta e inserida no mundo, correndo o risco de “secularização”. Por outro lado, em um levantamento feito pelos próprios jovens, verificou-se a existência de pelo menos 9 mil grupos de PJ organizados nas paróquias de todo o Brasil revelando sua força.
A saída para esta situação de perda de hegemonia será a PJ encontrar um caminho não do confronto contra o “sistema eclesiástico”, mas um diálogo com as outras diversas expressões juvenis bem como na integração mais profunda ainda nas CEBs, nos Grupos Bíblicos, nos diversos Conselhos Pastorais em todos os níveis, e para ser “Igreja Jovem” precisa “sentir com a Igreja”, em comunhão eclesial, sem perder de vista sua missão fundamental que é a de evangelizar o jovem a partir de uma visão crítica da realidade, articulando sempre fé e vida.
O profetismo dos Bispos do Maranhão
Já é uma tradição de muitos anos a Reunião dos Bispos do Regional Nordeste 5 (Maranhão). Talvez um dos Regionais com uma sólida colegialidade afetiva e efetiva que temos na Igreja do Brasil hoje, e construída ainda antes mesmo do Concílio Vaticano II, quando os bispos do Maranhão participaram juntos dos dois Encontros dos Bispos do Nordeste de 1956 e 1959.
Ao término de cada uma destas reuniões, os bispos enviam uma “Mensagem ao Povo de Deus”. São textos sempre muito proféticos, denunciando as injustiças e as violências causadas pelas oligarquias locais e pelo avanço contínuo da chamada “frente de expansão” sobre a “fronteira” ainda não desbravada do Cerrado e da Amazônia maranhense.
Desta vez a mensagem, segundo relatos, causou furor na atual governadora do Estado Roseana Sarney. Os bispos denunciam o aumento da violência em todo o Estado e que apareceu de forma mais evidente nas mortes já cotidianas no Presídio Estadual de Pedrinhas. Segundo eles, “essa violência é resultado de um modelo econômico-social que está sendo construído” e que transparece na “expulsão do homem do campo; na concentração das terras nas mãos de poucos; nos despejos em bairros pobres e periferias de nossas cidades; nos altos índices de trabalhadores que vivem em situações de exploração extrema, no trabalho escravo; no extermínio dos jovens; na auto-destruição pelas drogas; na prostituição e exploração sexual; no desrespeito aos territórios de indígenas e quilombolas; no uso predatório da natureza”. O resultado desta cultura da violência, somada à morosidade da Justiça e da ausência de Políticas Públicas, são “cárceres cheios de jovens, em sua maioria negros e pobres”. E arrematam de forma irônica: “Vivemos num Estado que erradicou a febre aftosa do gado, mas que não é capaz de eliminar doenças tão antigas como a hanseníase, a tuberculose e a leishmaniose”.
Como gesto concreto de denúncia, os bispos convocaram todos os fiéis e pessoas de boa vontade a realizarem em todas as comunidades, no dia 02/02 último, no dia da Festa da Apresentação do Senhor e de Nossa Senhora das Candeias, “uma caminhada silenciosa à luz de velas, por ocasião da celebração”.
Talvez, a presença de um papa que veio do “fim do mundo” e do “mundo dos pobres”, possa favorecer mais que os bispos de outros Regionais da CNBB possam também, de forma colegial, “não deixar cair a profecia” como disse D. Helder Camara antes de morrer.
23º Curso para Bispos: o Vaticano II em continuidade com a Tradição
Enquanto os bispos do Maranhão agem em conformidade com os princípios da Gaudium et Spes, numa abertura crítica ao mundo, outro conjunto de bispos opta por uma visão mais distanciada.
Idealizado há 24 anos pelo falecido cardeal Dom Eugênio Sales, arcebispo do Rio de Janeiro, e organizado por seu bispo auxiliar, Dom Karl Josef Romer, este curso surgiu em vista daquele processo de “reforma” do episcopado brasileiro para a contenção da Teologia da Libertação. Na verdade, visava consolidar aquele projeto eclesial que o saudoso teólogo jesuíta Pe. João Batista Libanio, morto recentemente, chamou de a “volta à grande disciplina” por meio da “retomada da identidade católica”.
Agora, sob a promoção de Dom Orani Tempesta, nesta edição, que contou com a participação de uns 70 bispos, o tema de estudo continua o mesmo desde 2012: os 50 anos do Concílio Vaticano II. E a abordagem assumida é a de ver o Vaticano II não como ruptura, mas com uma “justa hermenêutica”, conforme propunha o papa Bento XVI. Não custa lembrar que o organizador destes cursos, Dom Romer, foi membro de muitos anos da Comissão para a Doutrina da Fé da CNBB, como também presidiu a seção brasileira da Revista de Teologia Communio. Como bem nos lembra o historiador Massimo Faggioli, em recente livro publicado no Brasil (Vaticano II: a luta pelo sentido. SP: Paulinas, 2013), a leitura teológica predominante do Vaticano II feita pela Communio é numa visão “neoagostiniana”, ou seja, cética, contrária a qualquer aggiornamento e a qualquer “otimismo ingênuo” de abertura para o mundo.
Além da presença de dois cardeais da Cúria Romana – Dom Fernando Filoni que falou sobre “O Concílio Vaticano II e a dimensão missionária da Igreja” e de Dom João Braz de Avis que abordou “Cinquenta Anos do Decreto Conciliar ‘Perfectae Caritatis’: sobre a atuação dos religiosos” – também teve a presença do ex-bispo de Petrópolis e agora arcebispo de Taranto na Itália, Dom Fillipo Santoro, que abordou o tema “Papado e Episcopado no Concílio Vaticano II”.
O que podemos observar aqui é que a ala “wojtiliana-ratzingeriana” da Igreja não abandonou seu projeto histórico de olhar o Vaticano II como uma “renovação na continuidade do único sujeito-Igreja” em rejeição a qualquer “hermenêutica da descontinuidade”. Em tempos de papa Francisco que deseja uma “Igreja acidentada”, o modelo de uma Igreja “autorreferencial”, isto é, “uma ilha de graça num mundo entregue ao pecado” (Avery Dulles) demorará a desaparecer no Brasil.
A Igreja do Brasil na Cúria Romana: entre o Cardinalato e o Pontifício Conselho para os Leigos
Também nestes dias foi anunciado o novo Consistório (o primeiro) do papa Francisco para a nomeação de 19 novos cardeais. Alguns analistas já veem aqui a preparação do papa Francisco em fazer seu sucessor. As escolhas foram por nomes que tinham algum zelo pastoral e de “cheiro de ovelhas” vindos preferencialmente do sul do globo.
No Brasil ficou a dúvida da escolha: pelo arcebispo da Igreja Primaz do Brasil (Salvador) ou pelo arcebispo da primeira sede cardinalícia da América Latina (Rio de Janeiro). Mais do que levar em conta estas duas tradições, o que pesou foi mesmo o aspecto pastoral. A escolha recaiu sobre Dom Orani Tempesta e não em Dom Murilo Krieger.
Sem dúvida que a organização da JMJ e toda a recepção do papa Francisco no Rio de Janeiro contaram muito. Fez lembrar também a nomeação de Dom Odilo Scherer em 2007, após a acolhida ao papa Bento XVI para a canonização de Frei Galvão e da abertura da Vª Conferência de Aparecida. Este, por sinal, acabou sendo afastado da Comissão que auditava o Banco do Vaticano e assim chega ao fim o grupo que estava próximo do ex-secretário de Estado Tarcísio Bertone.
De fato, o perfil pastoral de Dom Orani é bastante diferente dos seus antecessores. Só para exemplificar, Dom Orani presidiu a missa de envio dos delegados(as) do Regional Leste 1 para o 13º Intereclesial das CEBs. Penso que este fato já seja o suficiente para demonstrar a descontinuidade com os arcebispos anteriores, especialmente Dom Eugênio Sales. Entretanto, como apresentamos acima, continua promovendo o Curso para Bispos e é bastante simpático aos movimentos e novas comunidades. Isto explica também sua nomeação para o Pontifício Conselho para os Leigos.
De fato, no início de fevereiro, o papa Francisco fez novas nomeações para a composição deste Dicastério. Nomeou 3 brasileiros: além de Dom Orani Tempesta, também o cardeal Dom João Braz de Avis e Dom Alberto Taveira, arcebispo de Belém.
A meu ver, isto significa ainda a manutenção da hegemonia neste Dicastério dos Movimentos e das Novas Comunidades. Dom João Braz é um conhecido membro do Movimento Focolares, Dom Alberto Taveira sempre foi o bispo referencial da Renovação Carismática Católica (RCC) no Brasil e da seção brasileira da Catholic Fraternity (Fraternidade Católica) das Novas Comunidades (atualmente presidida por um brasileiro, Gilberto Gomes Barbosa fundador da Comunidade “Obra de Maria”) e Dom Orani como um dos incentivadores da Nova Comunidade “Mar a Dentro” desde quando era bispo em São José do Rio Preto (SP) e, ao se transferir tanto para Belém como para o Rio de janeiro, ajudou na expansão desta comunidade. Vindo também do Brasil está frei Hans Stapel, fundador e presidente da Associação Internacional de Fiéis – Família da Esperança (ele substitui Moysés Azevedo, fundador da Comunidade Shalom de Fortaleza). O carisma básico é o trabalho com os dependentes químicos e os portadores de HIV e seus membros vivem e trabalham nas chamadas Fazendas da Esperança.
Além deles temos o já citado ex-bispo de Petrópolis Dom Filippo Santoro. Juntamente com Angelo Scola, Cardeal arcebispo de Milão (que por sinal também foi nomeado para este mesmo dicastério), Filippo Santoro é membro do Movimento Comunhão e Libertação, célebre defensor da linha “wojtiliana-ratzingeriana” no Rio de Janeiro, escudeiro fiel de Dom Eugênio Sales e que parece manter seu trânsito ainda muito livre dentro das estruturas Curiais.
Desta forma, nenhum nome dos indicados do Brasil está ligado ao Conselho Nacional dos Leigos do Brasil (CNLB) ou mesmo vindo de alguma Pastoral Social, das CEBs e das PJs.
Enfim, o início deste ano de 2014 revela uma Igreja bastante dinâmica nas suas ações. Acho ainda prematuro afirmar, como fez recentemente uma matéria da revista Carta Capital e reproduzida pelo site Religión Digital, que o papa Francisco tenha já mudado o rosto da Igreja no Brasil. Para que isso aconteça de fato, como nos lembra Antonio Gramsci, será necessário quebrar o poder de um determinado “bloco hegemônico” desarticulando suas práticas de coerção e consenso em torno do projeto de “volta à grande disciplina”. Ainda temos um longo caminho pela frente, mas sinais e gestos de uma Igreja inspirada nos ensinamentos do Concílio Vaticano II, que ainda quer correr os riscos de “sofrer acidentes”, continuam mais evidentes do que nunca e este ano poderemos testemunhar ainda mais fatos desta decisiva opção pastoral.
NOTAS:
[1] Agradeço a leitura e os comentários críticos de minha amiga Solange Rodrigues do Iser-Assessoria.
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"Quo vadis" Igreja no Brasil? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU