07 Fevereiro 2014
O relatório do Comitê sobre os Direitos das Crianças pode levar uma parte da Igreja Católica a avançar contra as barricadas. Diante do relatório, alguns, na Igreja, poderão se sentir sob ataque e se declarar prisioneiros das forças do secularismo antirreligioso.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Saint Paul, nos EUA. O artigo foi publicado no jornal Europa, 06-02-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O relatório do Comitê sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas traz novamente sobre a mesa o dossiê da pedofilia na Igreja Católica, justamente a poucos dias do aniversário do anúncio da renúncia de Bento XVI. Duas semanas depois da audiência dos especialistas vaticanos na Suíça, o relatório anunciado por Genebra no dia 5 de fevereiro parece repetir o que já se sabia sobre as responsabilidades de certas políticas de ocultamento por parte da instituição a fim de proteger o clero das investigações da justiça secular, mas também das próprias responsabilidades morais com relação às vítimas.
O documento acrescenta outros elementos de crítica como corolário das acusações sobre o comportamento da instituição por ocasião dos escândalos. Em particular, critica o ensino da Igreja sobre a sexualidade como fonte de sentimentos homofóbicos, o ensino sobre o aborto e contracepção como perigosos para a saúde das mulheres, e a prática (agora menos frequente do que antigamente) de confiar meninos a seminários religiosos, que assim eram separados das famílias.
O relatório do comitê das Nações Unidas, ao mesmo tempo, é inócuo e preocupação para a Igreja. É inócuo, porque mostra que está atrasado com relação ao estado dos conhecimentos da Igreja (e do mundo inteiro) sobre os fatos em questão. O relatório McAleese sobre as Magdalen Laundries, na Irlanda, e o do John Jay College sobre clero e pedofilia, nos Estados Unidos, são exemplares de uma Igreja que foi forçada a fazer as contas com a questão: o fato é que a Igreja Católica é a única grande organização internacional que tem uma política sobre a matéria.
Outras organizações (como os Boy Scouts of America, as escolas rabínicas, o mundo do esporte escolar e universitário) ainda são "supostos inocentes" diante da corte da opinião pública, embora inúmeros casos de abuso sexual foram provados. A Igreja Católica ainda está sob processo, mas iniciou um processo de reforma que requer tempo, mas que não deixou a situação inalterada.
Nesse sentido, a relação é inócua para os defensores do status quo, porque desloca o centro da atenção da questão da proteção dos menores para questões mais amplas, como a contracepção e o aborto, sobre as quais a Igreja tem toda a facilidade e o direito de se mostrar ciumenta da sua autonomia. Mas o relatório publicado no dia 5 de fevereiro é preocupante, porque mostra que, graças ao cavalo de Troia do escândalo dos abusos sexuais, o nível do confronto entre o catolicismo e o mundo secular, especialmente em torno das questões da relação entre visão moral e visão médica da sexualidade, se elevou.
É uma Igreja na defensiva: em certo sentido, a partir do marco zero da diocese de Boston em 2002, começou o segundo tempo, do ponto de vista cultural, da partida que começou em 1968 com a encíclica de Paulo VI Humanae vitae, que definia a imoralidade da contracepção.
O escândalo dos abusos sexuais cometidos pelo clero católico é uma das figuras, senão a figura, da imagem pública da Igreja do início do século XXI. Tendo-se propagado na última década em boa parte do mundo ocidental, com revelações que falam de uma certa porcentagem de padres culpados e de bispos coniventes, o escândalo fez emergir a existência de uma subcultura católica pior do que as hipocrisias pequeno-burguesas cantadas por Fabrizio de André: uma subcultura feita não só de versões oficiais e verdades conhecidas a muitos e ditas sem convicção, mas também, em certos casos, de um verdadeiro sistema de ocultamento das responsabilidades dos culpados diante da justiça, do restante da Igreja e das vítimas.
Alguns, nos Estados Unidos, falaram do escândalo dos abusos sexuais como a segunda brecha de Porta Pia na história da Igreja. Do outro lado da barricada, diante desse relatório das Nações Unidas, alguns, na Igreja, se sentirão no direito, como fez Pio IX em 1870, de se sentirem sob ataque e de se declararem prisioneiros das forças do secularismo antirreligioso.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
ONU, Vaticano e padres pedófilos: uma nova Porta Pia? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU