07 Fevereiro 2014
O raio da ONU cai sobre o Vaticano e ilumina violentamente culpas, omissões, atrasos na combate contra os abusos sexuais do clero. Ao mesmo tempo, força a Santa Sé a prestar contas do que ainda não está fazendo para trazer à tona os crimes cometidos e assegurar à justiça os padres delinquentes. Há passagens no relatório do Comitê sobre os Direitos da Criança que parecem ter sido escritos antes de 2010, quando Bento XVI fez publicamente um mea culpa (na sua carta aos católicos da Irlanda) pelos silêncios da Igreja, por não ter ouvido as vítimas, pela não aplicação das normas canônicas que puniam o crime, pela ausência de intervenção dos bispos e – textualmente – pela "preocupação inoportuna pelo bom nome da Igreja e para evitar os escândalos".
A reportagem é de Marco Politi, publicada no jornal Il Fatto Quotidiano, 06-02-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
À época e depois, Bento XVI reiterou várias vezes que os padres culpados deviam se submeter à justiça civil. Tanto Ratzinger quanto Bergoglio endureceram a normativa do código canônico, e – ao contrário da justiça civil – os crimes caem agora em prescrição apenas 20 anos depois.
Da temporada anterior faz parte uma cadeia de comando que não funcionou. A grande massa dos bispos tratou o problema protegendo geralmente os culpados. Exemplar é o caso do cardeal Bernard Francis Law, arcebispo de Boston, transferido para Roma, para a Basílica de Santa Maria Maior, por João Paulo II, para lhe evitar desventuras com a justiça norte-americana.
Não funcionou o controle da Congregação do Clero. Vergonhosa foi a carta que o prefeito da Congregação, o cardeal Castrillón Hoyos, escreveu em 2001 ao bispo francês Pican para felicitá-lo por não ter denunciado à magistratura um padre, depois condenado pelo abuso de 11 menores.
Não funcionou, nos anos do pontificado de João Paulo II, a Congregação para a Doutrina da Fé, liderada pelo então cardeal Ratzinger: congregação lenta demais, legalista demais ao reagir a uma série de casos gravíssimos que depois vieram à tona na imprensa internacional, silenciosa demais sobre os crimes do fundador dos Legionários de Cristo.
Não funcionou a Secretaria de Estado, dirigida pelo cardeal Sodano, justamente no impactante caso de Marcial Maciel Degollado: o governo central da Igreja não deu nenhuma sequência a cartas oficiais recebidas mediante os núncios e a denúncias públicas na imprensa.
O Papa Francisco, no seu primeiro encontro com o atual prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, reiterou o compromisso da Igreja para combater a pedofilia nos seus próprios quadros. O relatório da ONU, refazendo toda a história, no entanto, joga luz sobre tudo o que hoje ainda não funciona. Pouco vale a objeção da parte eclesiástica de que a Igreja não é uma multinacional, e de que o Vaticano não seria o seu quartel general. Porque o papa certamente não pode saber o que um padre faz na Amazônia; cabe ao bispo vigiar.
Mas cabe aos papas e ao seu governo vigiar que todo o organismo respeite e aplique as leis, que a própria Igreja se deu. Ainda mais que o catolicismo goza – único entre as religiões – de uma fisionomia estatal. E, então, o centro deve prestar contas do funcionamento das suas normas na periferia. Há muita coisa para fazer.
Bento XVI encarregou as conferências episcopais a se dotarem de diretrizes para combater o fenômeno. Há conferências episcopais que se dotaram de estruturas nacionais e diocesanas sérias, e há conferências episcopais – dentre as quais a italiana desponta – que até agora se recusaram de todos os modos a assumir a responsabilidade em fazer aplicar as normas eclesiásticas. É uma atitude de fuga, que não pode continuar.
Depois do relatório do Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança, é claro que devem vir do Vaticano indicações vinculantes para todos – com a criação de estruturas eclesiais locais e nacionais para desvendar os crimes – se a Santa Sé não quiser se encontrar, novamente, em três anos, no banco dos réus.
Além disso, não é tolerável ficar no meio do caminho no que diz respeito ao dever de denunciar à magistratura. Em coerência com os desejos de Bento XVI, o Vaticano deve declará-la obrigatória. Se a pedofilia é um crime, como lembrou o Papa Francisco aos jornalistas voltando do Brasil, o silêncio de um bispo não é sustentável.
Dizer, por exemplo, como faz a Conferência Episcopal Italiana, que na Itália o bispo não é um funcionário público oficial é ridículo. Por quê? Se eu, cidadão privado, vejo que, pela rua, massacram uma velhinha, o que eu faço? Sigo em frente calado porque não sou um funcionário público? O trabalho do Comitê de Genebra está se revelando precioso.
Graças às audiências, as quais foram chamados os representantes vaticanos, veio à tona que Bento XVI, em dois anos, expulsou 384 padres indignos. Bom. O respeito às vítimas exige que sejam abertas investigações em todos os países, para que venham à tona os crimes escondidos e envoltos no silêncio.
O Papa Francisco sabe disso pela experiência que fizeram os seus compatriotas na Argentina. Quando está em jogo a violação dos direitos humanos, não há uma transparência pela metade. Não é possível fazer as pazes com o passado, se antes não se traz à tona toda a verdade. Esclarecendo quem foi culpado e quem foi cúmplice.
O comitê também tocou em um ponto delicado, que até agora sempre tinha sido removido: o destino dos filhos dos padres. Não há dúvida de que tudo isso representa um desafio para o pontificado de Francisco. Mas a Igreja não pode evitá-lo.
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Pedofilia: uma cadeia de comando ocultou tudo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU