28 Janeiro 2014
Sob a personalidade ditatorial do fundador dos Legionários de Cristo, Pe. Marcial Maciel Degollado, e durante as décadas de acusação dos abusos de seminaristas, encontram-se quatro padres irlandeses, agora em seus 60 e 70 anos, entre os seus confidentes mais próximos. Os quatro sacerdotes atraíam doadores ricos, levavam a cabo as ordens do Pe. Maciel e minimizavam problemas quando estes apareciam.
A reportagem é de Jason Berry, publicada no sítio National Catholic Reporter - NCR, 22-01-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Os padres Anthony Bannon, Owen Kearns, Raymond Cosgrave e John Devlin se tornaram homens poderosos na ordem que Maciel fundou no México.
Bannon era o principal angariador de doações nos EUA. Kearns liderava o ataque midiático contra as vítimas de pedofilia do fundador. Devlin foi secretário de Maciel durante décadas, um guardião dos segredos para o qual nenhum detalhe era irrelevante, de acordo com ex-membros da ordem.
Cosgrave foi o principal homem do Pe. Maciel para estabelecer, no Chile, a ordem durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
Estes sacerdotes reforçariam as defesas de Maciel, de acordo com um ex-legionário crítico do Vaticano, por estar ajudando a ordem a se reerguer desde as revelações de 2009 em que Maciel, além de abusar de jovens seminaristas, tinha três filhos com duas mulheres.
Os quatro irlandeses permanecem sendo importantes pelo que eles sabem das operações da ordem e pela influência que continuam a exercer nela após a morte do fundador, em 2008, e pela decisão de pôr a ordem sob o controle do Vaticano no ano seguinte.
De acordo com relatórios publicados, Kearns e Bannon eram membros do comitê que redigia uma nova constituição para a ordem.
Cosgrave, que por vezes foi usado por Maciel como uma espécie de solucionador de problemas em diferentes locais, permanece como superior da ordem no Chile. De acordo com fontes que não quiseram se identificar, ele era querido entre os grandes doadores de dinheiro. Seu trabalho no Chile era se assegurar que os legionários fossem rentáveis e cimentar laços com Dom Ângelo Sodano, o núncio papal e apoiador de Pinochet. Dom Sodano mais tarde se tornaria cardeal secretário de Estado sob o papado de João Paulo II e um dos maiores apoiadores do Pe. Maciel nos círculos vaticanos.
Por trás das carreiras destes quatro sacerdotes residem questões mais amplas sobre as operações da ordem.
Como Maciel conseguiu os milhões gastos para sustentar duas famílias, enquanto viajava entre Roma, Nova Inglaterra (EUA) e Cidade do México durante décadas?
Por quanto tempo o seu círculo de amizade sabia de sua vida secreta, já que cultivavam doadores para manter o orçamento anual de 650 milhões de dólares da ordem?
Os padrões de duplicidade que causaram os contínuos escândalos na ordem se evaporaram de repente?
Uma história surreal está emergindo à medida que autoridades do Vaticano, sem se importar com os avisos feitos por ex-legionários, estão propondo ao Papa Francisco tomar responsabilidade pela ordem. É o papa que terá de aprovar a nova constituição assim como os novos líderes eleitos da ordem. Ele também vai ter que decidir se os Legionários de Cristo precisam de supervisão continuada.
Uma cultura de mentiras
Maciel criou uma cultura de falsidade, mentiras estruturais, para se proteger – uma cultura que permeou a ordem, que continuou por si mesma após sua morte e que ainda está presente. O cardeal Velasio De Paolis, o canonista que o Papa Bento XVI nomeou em 2010 como delegado, supervisor da ordem, evitou um confronto direto com a cultura interna, de acordo com ex-membros legionários.
Em uma missa no dia 08-01-2014 para os Legionários de Cristo, De Paolis disse que as revisões canônicas “deveriam ser acompanhadas de um processo de análise da vida (...) e de uma renovação espiritual”, segundo o serviço de notícias do Vaticano, incluindo uma “missão comum, um caminho comum para a cura”.
Não se sabe como tais sentimentos se enquadram com realidades em curso na ordem. Por exemplo, dois processos judiciais no estado de Rhode Island, no quais Bannon é figura central, alegam que os legionários defraudaram doadores idosos. Estes casos, e entrevistas com membros do presente e do passado da ordem, deixam claro o papel dos quatro sacerdotes irlandeses como facilitadores dos projetos do Pe. Maciel.
Um dos legionários que deixou a ordem e que agora está denunciando é o também padre irlandês Peter Byrne, que falou ao site National Catholic Reporter – NCR direto de sua casa em Dublin numa longa entrevista por telefone. Ele diz estar entre os 61 legionários que recentemente saíram da ordem.
Ele contou ao NCR que um grupo de reformadores tentou persuadir De Paolis a conduzir uma investigação séria, mas não tiveram sucesso. A seguir, apelaram para o então secretário de Estado, o cardeal Tarcicio Bertone, que também os rejeitou, de acordo com Byrne.
De Paolis, de 78 anos, em breve entregará o cargo. Bertone se aposentou como secretário de Estado após um período de serviço ao Papa Francisco.
“Tentamos”, disse Byrne ao NCR. “Muitos destes homens eram moderados e falaram ao cardeal De Paolis. Subscrevemos uma carta pedindo por uma investigação completa, porém De Paolis nunca permitiu que isso acontecesse”.
“Fizemos uma petição a ele para criar uma comissão da verdade e reconciliação, mas estas coisas nunca aconteceram. Pedimos que fosse dado atendimento psicológico a um grupo de legionários para ajudá-los neste período com diretores espirituais externos. Sabíamos que isso seria muito difícil. Também nunca recebemos alguma resposta positiva quanto a isso. (...) Enviamos cartas ao cardeal Bertone. Vários membros de nosso grupo falaram pessoalmente com ele. Mesmo assim os superiores foram mantidos. Tentamos desafiar a cultura dos Legionários de Cristo que havia sido moldada por Maciel”.
Byrne criticou os padres Luis Garza, ex-vigário geral, e Álavaro Corcuera, que sucedeu Maciel em 2004 como diretor geral, por bloquearem reformas internas.
“Estes homens estiveram ao lado de Maciel quando ele morreu, quando o Vaticano lhe deu claras instruções de ‘oração e penitência’”, disse Byrne em referência aos dias bizarros do fundador em uma casa luxuosa em Jacksonville, no estado da Flórida, comprada pela ordem religiosa. Devlin, o seu secretário de longa data, estava lá. O mesmo fazia a filha de 23 anos de Maciel, Normita, e sua mãe, Norma Hilda Baños. Mulheres consagradas do grupo leigo Regnum Christi, Garza e Corcuera (descendentes de famílias proeminentes mexicanas) e vários outros legionários completavam o inusitado círculo de assistência quando ele estava morrendo.
Os segredos dos legionários
“John Devlin era muito próximo a Maciel”, contou ao NCR Paul Lennon, um terapeuta familiar em Alexandria, no estado de Virgínia, e ex-padre da ordem dos Legionários de Cristo.
“John e eu entramos na Legião, em Dublin, no mesmo ano, em 1961. Ele gostava do trabalho clerical e esteve com o Pe. Maciel como secretário pessoal durante as décadas de 1970, 1980 e 1990. Ele administrava sua agenda e compromissos com bispos, doadores, suas correspondências e viagens. Ele era o braço direito do fundador. Faria qualquer coisa por ele”.
Lennon deixou a ordem em 1985, enquanto era missionário no México, após um impetuoso confronto com Maciel sobre a punição dada a dois homens que questionaram suas ordens e sobre sua política de proibir os legionários de falar com qualquer um que tenha deixado a ordem. Maciel os denunciava como traidores. Poucos legionários percebiam que alguns dos que deixavam a ordem foram vítimas dos abusos sexuais do líder.
Devlin estava em Jacksonville porque ele deveria ficar próximo a Maciel, custe o que custar. Mas foi Garza, o vigário geral mexicano, que acabou sendo rebaixado, de acordo com Byrne.
“De Paolis tirou Garza da função de vigário geral e o fez diretor territorial nos EUA, um movimento muito estranho”, informou Byrne ao NCR.
“Garza era o cérebro financeiro e alguns de nós pensávamos que ele não poderia ser removido. Ele tinha as chaves, os números para a combinação, como alguém disse certa vez. Contaram para nós que os padres nos Estados Unidos pediram-lhe para ser diretor territorial, mas isso é tão improvável quanto a Irlanda vencer a Copa do Mundo”.
“Por que De Paolis não se livrou dele logo? Obviamente, De Paolis ficou frustrado, mas não o suficiente para mandá-lo de volta à vida comunitária.
Nicholas Cafardi, um canonista e reitor emérito da Universidade de Duquesne, em Pittsburgh (EUA), conheceu De Paolis pelo seu trabalho sobre questões legais em Roma. Membro do Comitê Nacional de Revisão nomeado pelos bispos americanos para fornecer recomendações quanto à crise dos abusos sexuais, Cafardi contou ao NCR que De Paolis trabalhou para cumprir o mandado de Bento XVI para pagar indenizações às vítimas do Pe. Maciel.
“Sei por outras fontes que os pagamentos dos Legionários de Cristo foram em média 30 mil e 50 mil euros”, disse Cafardi. Os advogados das vítimas nos EUA e em países que têm base comum no direito inglês, muitas vezes garantiram acordos de 6 e 7 dígitos; a maior parte das vítimas do Pe. Maciel vive na Espanha e no México, onde os casos expiraram e as indenizações foram bem menores.
Atraindo viúvas ricas
Já que Maciel construiu a base financeira da ordem cultivando viúvas ricas e doadores importantes no México durante as décadas de 1950 e 1960, Bannon emulou o “Nuestro Padre” – como os membros da ordem chamavam Maciel – ao assegurar a generosidade de Gabriele Mee para a expansão dos legionários em Nova York, como se vê em documentos divulgados em litígio no estado de Rhode Island. A ação judicial busca tirar 30 milhões de dólares da ordem. Mee morreu poucos meses depois de Maciel em 2008, sem saber que o Vaticano o havia banido de seu ministério em 2006.
Bannon tinha a procuração de Mee e transferiu 400 mil dólares da conta pessoal dela para uma conta dos legionários enquanto a doadora de 96 anos estava morrendo.
Mesmo sendo forçado a testemunhar em Rhode Island, Bannon atuou no comitê de De Paolis durante a reescrita do estatuto social da ordem.
“Eu e outros fomos contra que Bannon e outros legionários estivessem naquela comissão por causa da proximidade que tinham com Maciel”, contou Lennon ao NCR.
Bannon figura em um segundo processo judicial em Rhode Island, perpetrado pelo filho de James Boa-Teh Chu, um professor aposentado e membro do Regnum Christi, que morreu logo após Gabrielle Mee. O processo acusa que as visitas feitas pelos legionários a Chu foram um “completo abandono de seus deveres fiduciários como conselheiro espiritual”.
Membros da ordem se aproximaram de Chi “não para fornecer ajuda espiritual ou bem-estar, mas para o usufruto da Legião de Cristo (...) e de suas entidades inter-relacionadas que levam a cabo suas atividades ilícitas de arrecadação de fundos”, alegou o advogado John Flanagan. “As doações e as verbas são canalizadas através de organizações controladas pelos Legionários de Cristo, incluindo uma entidade mexicana estrangeira conhecida como Grupo Integer”.
O Grupo Integer foi criado por Maciel, Garza e outros como uma empresa gestora dentro da ordem religiosa, que tinha um orçamento de 650 milhões de dólares em 2006.
A lei americana dá isenção fiscal para instituições religiosas de caridade; o papel exato do Grupo Integer é o mistério financeiro no centro da Legião.
A ordem Legionários de Cristo é legalmente uma instituição religiosa de caridade. No caso de Mee, o advogado sustenta que a instituição é responsável criminalmente por comportamento predador.
Atacando os acusadores
Kearns, um membro da ordem muito leal a Maciel, viajava com Bannon em missões para captação de recursos. Trabalhavam em equipe. O papel mais estratégico de Kearns era ir aos meios de comunicação, juntamente com o padre Thomas Williams, participar em campanhas de descrédito de ex-legionários que acusavam Maciel de abusá-los enquanto seminaristas.
Williams se casaria com a filha da ex-embaixadora dos EUA no Vaticano Mary Ann Glendon, chamada Elizabeth Lev, nove anos depois que eles tiveram uma criança. O caso de excomunhão do Pe. Maciel foi arquivado em 1998 no tribunal do cardeal Joseph Ratzinger. Glendon, em 2002, zombou das acusações.
Kearns usou um site especial na internet, o LegionaryFacts.org, lançado em 1997, para montar um ataque contra os acusadores de Maciel. Nos anos subsequentes, como editor da revista National Catholic Register, Kearns continuou a atacar as oito vítimas que, já adultos e ex-membros dos Legionários de Cristo, por primeiro acusaram Maciel de abusos sexuais. Kearns os acusou de fomentar uma conspiração contra o fundador após o arquivamento das queixas em 1998 no Vaticano. O site (LegionaryFacts.org) foi tirado da rede em 2006, quando Maciel foi banido do ministério.
Kearns, destacou Juan Vaca – cujos abusos se iniciaram quando tinha 12 anos de idade num seminário na Espanha, e em 1976 registrou queixas contra Maciel no Vaticano –, era um “homem orgulhoso, irritado e decepcionado por causa de seus fracassos pessoais”.
Kearns acusou Juan de querer “um poder maior dentro da ordem”, apesar da renúncia deste em 1976 e de uma carta a Maciel, catalogando os abusos sexuais dele e de outros 20 casos.
No entanto, a campanha pela desinformação contra os supostos inimigos da Legião não pararam em 2006.
Sob a perda de controle do simpático De Paolis, os legionários lutaram para se reagrupar em uma cultura interna balcanizada: alguns dos homens leais a Maciel como vítimas do Vaticano; outros buscando a purificação da verdade; outros lutando para se defenderem e para alimentar a máquina de fazer dinheiro; e jovens legionários atraídos pela imagem ultraortodoxa da ordem.
“Esta é uma operação de controle dos danos”, disse Juan em relação ao Capítulo Geral em curso em Roma. Hoje Juan Vaca é professor de psicologia na Mercy College, em Nova York.
Nascido em 1937 no México, Juan deixou a ordem em 1976, filiando-se à diocese de Rockville Center, em Nova York. Uma década depois ele deixaria o sacerdócio.
“A eleição de novos superiores e a promulgação de uma nova constituição não irão mudar a corrupção internalizada”, disse, destacando os quatro legionários irlandeses como sintomáticos dos problemas.
Em sua homilia para os legionários no início do Capítulo Geral, em 08-01-2014, De Paolis disse que o seu primeiro dever era “preservar e promover o carisma da ordem (...) no espírito do Evangelho e na fidelidade às leis da Igreja”.
“Como ordem religiosa, os legionários não têm um carisma”, respondeu Juan.
“Eles estão tentando se definir com generalidades, tal como fidelidade ao papa. Maciel definiu o carisma como trabalho com a ‘elite da sociedade’. Isso não provém de Deus. Veio de um homem com patologias sexuais sobrepostas e transtornos graves de personalidade. Eu não ficaria surpreso se saíssem de lá com uma nova definição do seu carisma. Todavia, não devemos esquecer que carisma é considerado uma graça de Deus”.
“Aqueles que estão mantendo a mesma corrupção institucionalizada dessa organização, do tipo seita, aprenderam com Maciel”, continuou Juan, cujo relato dos abusos feitos por Maciel enviados ao Vaticano em 1976, 1978 e 1989 o fez testemunha central na investigação ordenada pelo então cardeal Joseph Ratzinger.
“Eles fingem que tudo nos Legionários de Cristo está sob controle”, afirma Juan. “Os superiores atuais, incluindo o cardeal de Paolis, estão tentando salvar um barco irrecuperável”.
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"Estão querendo salvar um barco irrecuperável", avalia ex-legionário - Instituto Humanitas Unisinos - IHU