Por: Cesar Sanson | 06 Janeiro 2014
Ele estuda as classes sociais há vinte anos. Mas foi em meados de 2009, já no final do governo Lula, que mergulhou em uma pesquisa sociológica – empírica e teórica, por todo o Brasil – para confrontar a tese de que havia surgido uma “nova classe média” no País. O resultado? O livro Os Batalhadores Brasileiros.
Nele, Jessé de Souza, doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, defende que a tão reverenciada nova classe média é, na verdade, uma “classe trabalhadora precarizada, super explorada e, em grande parte, informal. É aquela que trabalha muito e ganha pouco”.
Em conversa com Thais Arbex do jornal O Estado de S.Paulo, 30-12-2013, diz que tal classe – “que chamo de batalhadores” – “funcionará como o fiel da balança” na disputa eleitoral de 2014. “Ela oscila entre apoiar a classe abaixo dela e assumir um discurso atrelado aos interesses dos privilegiados. Quem conseguir conquistá-la, provavelmente ganha a eleição.”
Eis a entrevista.
Como a questão de classes estará nas eleições de 2014?
A eleição será, sem dúvida, dominada pela luta e pela aliança entre as classes. O Brasil, como outras sociedades modernas desiguais, é dividido entre classes sociais que reproduzem privilégios injustos. De um lado, os endinheirados e a classe média, que ocupam todos os empregos de prestígio. De outro, as classes condenadas a reproduzir sua exclusão e humilhação cotidianas, como a classe trabalhadora precária, chamada erroneamente de nova classe média; e os excluídos, que chamo provocativamente de ralé. O problema é que as relações entre as classes nunca são percebidas.
Como assim?
Se as relações fossem notadas, estariam arruinadas as chances de os privilégios se reproduzirem. Para parecer legítimo, o privilégio tem de ser mascarado como de interesse geral. E é justamente por isso que a ideologia de grande parte da classe média brasileira mais conservadora é o combate à corrupção no Estado – como se não houvesse corrupção no mercado – onde, cotidianamente, a classe média explora o trabalho barato da ralé e a condena à humilhação eterna.
Eduardo Campos tem falado de sua preocupação em conquistar a classe média de Lula e Dilma. É o caminho?
Do ponto de vista do pragmatismo político, ele está mais do que certo. O Brasil é hoje dividido entre uma classe de excluídos – que chega a 30% da população e foi alvo dos programas assistenciais do lulismo (que reduzem o sofrimento, mas que não resgatam essa classe da exclusão) – e uma classe média verdadeira, que é cativa da mensagem moralista dos partidos mais conservadores. A recente classe trabalhadora precária – super explorada, que trabalha muito e ganha pouco, mas que ascendeu socialmente comparativamente com o padrão de vida anterior – funcionará como fiel da balança.
Para qual lado?
Essa classe – que chamo de batalhadores – oscila entre apoiar e se solidarizar com a classe abaixo dela, os excluídos da ralé, e assumir um discurso mais mercantil e atrelado aos interesses das classes privilegiadas. Quem conseguir conquistar essa classe provavelmente ganha a eleição.
E qual é o olhar para compreender as diferentes realidades?
Somos formados por estímulos afetivos, emocionais, morais e cognitivos. Cada classe forma pessoas com disposições e capacidades distintas para a competição social – e não só na busca pelos bens materiais, mas também pelos simbólicos, como prestígio e reconhecimento.
De que maneira?
São as capacidades emocional e cognitiva de autocontrole e concentração que fazem com que, por exemplo, os filhos da classe média cheguem à escola como vencedores aos cinco anos de idade. E com que os filhos dos excluídos, pela carência dos mesmos estímulos, chegam à escola e depois no mercado de trabalho como perdedores. Acabam em trabalhos domésticos, pesados e mal pagos.
Quais são as classes no Brasil?
Vislumbramos quatro classes sociais, com suas subdivisões internas. No topo da hierarquia, temos as pessoas com muito dinheiro e um estilo de vida e compreensão de mundo marcado pelo consumo material. São aqueles que chamamos de endinheirados. Eles somam menos de 1% da população, mas controlam mais de 50% do PIB nacional, sob a forma de juros, lucros e renda de terras. Logo em seguida, vem outra classe privilegiada: a média. Caracterizada por se apropriar de outro capital decisivo na competição social: o cultural.
E do outro lado da balança?
Na parte de baixo da hierarquia social – onde está a maioria da população brasileira – temos uma grande classe trabalhadora. Hoje, em sua maioria, precária, super explorada e, em grande parte, informal. Sem a segurança e estabilidade da antiga classe trabalhadora tradicional. Ainda mais embaixo, estão os excluídos.
Como elas se relacionam?
Os endinheirados dominam a economia, a mídia, o poder judiciário, financiam a política e controlam os recursos naturais. É um capitalismo selvagem, desumano e altamente concentrador em proveito de meia dúzia de pessoas. Quase 70% do PIB brasileiro está com os poucos privilegiados. Ou seja, o que sobra é distribuído entre os outros milhões de brasileiros. Este é o retrato da nossa verdadeira miséria e iniquidade. É por isso que a existência da corrupção estatal é tão boa para os interesses dessa minoria privilegiada.
Em qual sentido?
É uma maneira de desviar a atenção da tão absurda concentração de riquezas e enfraquecer o Estado. Demonizá-lo como ineficiente e corrupto faz com que apenas o mercado – e quem o domina – apareça como materialização de todas as virtudes. Enquanto a ralé está condenada à humilhação eterna, a classe média poupa seu tempo e consegue se dedicar ao estudo e à qualificação. É um privilégio social poder estudar sem ter de trabalhar ao mesmo tempo.
Já que o tempo é um recurso valioso, é possível afirmar que as manifestações foram protagonizadas pela classe média?
Sem dúvida. As manifestações começaram com reivindicações tipicamente populares por melhores serviços públicos. Lá estavam os filhos da classe trabalhadora, que passaram a estudar em universidades e a acreditar que são mesmo de classe média. Exigiam, portanto, serviços de classe média. Mas, pouco tempo depois, o movimento foi apropriado pela fração da classe média mais conservadora e tradicional, com suas bandeiras típicas do moralismo – que reduz a política ao nível das telenovelas, entre o bem e o mal.
Como cada classe se relaciona com a religião?
Como existe grande quantidade de excluídos, abre-se espaço para a mensagem religiosa. É ela que tenta transformar a humilhação cotidiana em autoconfiança. Pela promessa de que ninguém menos do que Jesus está do seu lado. Mas o lado sombrio deste fenômeno é o conservadorismo cultural e a homofobia absurda.
Os batalhadores estarão nos jogos da Copa?
Certamente não. O futebol está produzindo um fenômeno estranho e o povo está sendo obrigado a ver de fora sua maior paixão. A Copa é um retrato do Brasil: quem ganha são os endinheirados. Quem paga a festa é a classe média explorada por serviços de preço exorbitante. E o povo apenas assiste de fora a festa alheia.
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“A classe trabalhadora precarizada e super explorada vai decidir a eleição” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU