18 Dezembro 2013
Ex-presidente da Fiocruz cita dengue entre 'moléstias negligenciadas' e diz que vacina não deve sair antes de 2020. O alerta oficial é de que a dengue deve bater mais forte neste verão, agravando os índices de 1,4 milhão de casos notificados e as 573 mortes verificadas entre janeiro e novembro últimos.
Para complicar, o sanitarista britânico Simon Hay, da Universidade de Oxford, declarou à revista Nature que o País pode se tornar "foco global de transmissão" em 2014, em função da Copa.
Preocupa-se com o intenso tráfego humano em capitais onde criadouros de mosquito já são ameaça (Salvador, Fortaleza e Natal) e pede ações preventivas já. Entre elas, a fumigação no entorno dos estádios e campanhas de informação aos turistas. Avisa que torcedores podem trazer novos tipos de dengue ao Brasil.
Para o médico e cientista brasileiro Carlos Medicis Morel, há muito "achismo" no comentário de Hay e certa tendência "de explicar o certo aos colegas do Terceiro Mundo". Aponta erro "crasso" quando Hay fala em novos tipos de dengue entrando no País: "Aqui já circulam as quatro variedades responsáveis por infecções humanas". Nesta entrevista exclusiva, o ex-presidente da Fiocruz e ex-diretor do Programa de Doenças Tropicais da Organização Mundial de Saúde (OMS) desvenda a complexidade do combate às chamadas "doenças negligenciadas" - expressão criada nos anos 1980 por Ken Warren, da Fundação Rockefeller. A expressão refere-se a moléstias historicamente carentes de recursos para a pesquisa biomédica: além da dengue, hanseníase, tuberculose, esquistossomose, leishmaniose e malária, entre outras.
A entrevista é de Laura Greenhalgh, publicada no jornal Estado de São Paulo, 15-12-2013.
Eis a entrevista.
Outra estação da dengue, com os alertas de sempre: filme que se repete?
A dengue é uma doença que se espalhou, ameaçando vários países. O Brasil tinha ficado fora disso até os anos 1940, mas com a urbanização, a proliferação de lixo nas cidades, a acumulação de água, enfim, a dengue se instalou. E vai ser duro eliminá-la. Um colega meu diz que "cada governo tem a dengue que merece", pois precisa lidar com o problema, dispondo de poucas intervenções possíveis. O que temos na mira é o desenvolvimento de uma vacina. Há grandes instituições no mundo trabalhando nisso, entre elas, a Fiocruz. Mas não será fácil. A vacina da Sanofi trazia esperança, mas quando fizeram o ensaio clínico, ela imunizou bem o dengue 1, 3 e 4, deixando de fora o dengue 2. A meu ver, a vacina não sairá antes de 2020.
Por que tanto tempo pela frente?
Você pode identificar três fracassos no combate de uma doença: a falha da ciência, por não se chegar às intervenções eficazes; a falha do mercado, quando há intervenções, mas a um custo elevado, caso dos retrovirais na África; e a falha da saúde pública, quando existem as intervenções, elas têm baixo custo, porém o acesso é limitado. Caso da vacina de poliomielite. Na dengue, o que existe é falha da ciência, não chegamos à vacina perfeita. E não por falta de dinheiro, mas porque não sabemos como fazer. A Fiocruz trabalha no desenvolvimento de uma vacina inativada, ou seja, a partir de vírus que não estão vivos. Outros institutos, como o Butantã, desenvolvem a vacina com vírus vivos, aquela que provoca infecção para curar. Enquanto isso, o jeito é persistir na prevenção - limpeza de ruas, acabar com poças d'água e fazer diagnóstico antes que o doente entre na síndrome de febre hemorrágica.
O que se quer é chegar, com a dengue, ao patamar da febre amarela?
Isso. Hoje ninguém mais fala em febre amarela, doença para a qual existe vacina eficiente. Só falamos quando surge uma pequena epidemia, logo controlada. Há outras falhas de ciência por aí: recentemente, houve problemas com vacinas para malária. Feitos os testes clínicos, viu-se que elas protegiam 20%, 30%, ou seja, não alcançavam patamar desejável.
No caso da malária, houve mais recursos para pesquisa, certo?
Sim, inclusive vindos da Fundação Gates. Também houve sucesso, na África em particular, com a utilização de estratégias além-vacina, caso dos mosquiteiros impregnados. O fato é que a malária na África é um problema mais sério que no Brasil. Lá temos um parasito bem agressivo, o Plasmodium falciparum, enquanto na Amazônia legal brasileira, encontramos o Plasmodium vivax. O falciparum mata mais, ao passo que o vivax mata menos, porém, pode ficar dormindo no organismo. Você pensa que está curada e, lá na frente, tem um novo episódio. E já se comprovou a perda de rendimento escolar entre crianças com malária na Amazônia. Isso consta de belo trabalho científico.
Pode-se dizer que as doenças negligenciadas dão um baile na ciência?
Gosto da expressão. Dão baile porque sempre se investiu menos nelas. São doenças de pobre, e as companhias farmacêuticas não esperam fazer dinheiro com elas. Essas empresas só entram em campo quando estimuladas por fator externo ou quando alguém chega com o dinheiro para a pesquisa. Aparece uma nova febre hemorrágica na África e ninguém presta atenção. Mas, quando aparece uma doença como a SARS, em 2003, no Canadá, daí o mundo fica em polvorosa. A dengue teve mais recursos quando passou a afetar o turismo de certos países. Tailândia, por exemplo.
Como o senhor definiria a transição epidemiológica brasileira?
O Brasil passou por ela de maneira até rápida. Hoje em dia, as doenças prevalentes no País já não são as associadas à pobreza. Passou a ser câncer, diabete, obesidade, doenças coronarianas e certas moléstias crônicas. Diante disso, as moléstias negligenciadas tendem a ficar mais negligenciadas porque já não provocam aquele impacto todo no perfil epidemiológico. Só que, em saúde pública, é preciso cuidar da doença do rico e do pobre. Tomemos a obesidade. O prefeito de Nova York tentou regulamentar o tamanho daqueles copões para refrigerante. E não conseguiu. O americano se revoltou, defendendo o direito de comprar a quantidade que quiser de Coca-Cola. Eis um novo problema de saúde pública, que começa a afetar o nosso perfil epidemiológico.
Uma doença pode ser negligenciada pelo baixo número de afetados?
Muita gente diz "essas doenças não contam mais" porque atingem 5% a 10% das pessoas. Não contam até você pegar, certo? O Brasil tem um dos altos índices de hanseníase do mundo, doença que afeta poucos. É preocupante? Sim, porque o paciente vive um drama para si mesmo, para a família, para quem o cerca. Presido o comitê de avaliação de um instituto suíço, onde encontrei um pesquisador com um trabalho sobre uma doença que você nunca ouviu falar: a úlcera de buruli. Costuma aparecer na África central. É rara, porém terrível: vem de uma bactéria cuja infecção come a carne humana, destrói a pele... Poucos são os afetados. Mas, quem passa por isso, conhece o horror.
Lembra leishmaniose.
Mas não é. Vou contar uma história. Quando fiz Medicina, em Pernambuco, os alunos mais antigos diziam aos mais novos: "Ô, calouro, vou facilitar a sua vida: se chegar algum doente de Jacobina, na Bahia, você já pode marcar na ficha que ele tem leishmaniose". Tal era a prevalência da doença na região. Melhoramos muito, mas ainda não há vacina, o diagnóstico e o tratamento são complicados, as drogas dão reação adversa. É uma das doenças que têm tido alta prioridade no Brasil, porém, não superamos a falha da ciência. No campo das vacinas, a busca é constante e é preciso estar sempre preparado. Todo ano, a Fiocruz, que exporta para mais de 80 países, produz vacina de febre amarela para o nosso consumo e termina jogando fora. Você poderia dizer: 'Ah, isso é desperdício'. Mas seria muito pior não ter estoque à mão.
E a tuberculose? Por que o combate ainda é tão difícil?
Eis uma ameaça milenar. Neste mês, participo de uma reunião em Nova York para discutir novos regimes terapêuticos, já que o regime clássico começou a ser ameaçado pela tuberculose "resistente a drogas", a "multirresistente a drogas" e a "totalmente resistente a drogas". São três níveis de problema. Se alguém tiver a má sorte de pegar um tipo "totalmente resistente", terá assinado um atestado de óbito prematuro. Não há como curar. Aqui, também, a tentativa é de superar a falha da ciência. Depois virá a falha de mercado, pois as drogas novas não serão baratas. O problema é que o tratamento atual é demoradíssimo. Seis a nove meses, tempo em que o doente toma dezenas de pílulas por dia. Depois dos primeiros meses, ele não quer saber mais, joga os remédios fora. A tuberculose precisa de tratamento diretamente observado. Outro problema: apesar de barato, o tratamento pode demandar uma infraestrutura custosa.
Como assim?
Vi como fazem a prevenção e o tratamento nos Estados Unidos. Chegamos cedo a um salão de beleza em Newark, região rica, num carro com médica, enfermeira e auxiliar. Pelo telefone, uma manicure com tuberculose foi chamada pela equipe. Saiu do salão para tomar as drogas diante do médico. E por que fora do salão? Para não ser estigmatizada. Daí recebeu dois vouchers da US$ 5 cada, para gastar no supermercado. Some tudo: remédios, carro, médica, enfermeira, auxiliar, vouchers, para uma paciente! É uma abordagem cara. Agora imagine a tuberculose que se espalha numa prisão lotada, em país pobre...
O governo aposta no Mais Médicos para alcançar a população que vive afastada dos centros. Isso beneficia o combate às doenças negligenciadas?
O problema da saúde no Brasil é imenso e exige ações em diferentes níveis, com muito dinheiro e muita gestão. Ou a gente se conscientiza disso ou nada feito. Há bons hospitais por aqui, bons serviços, mas são ilhas. Queremos continente! O Brasil precisa urgentemente de um pacto na saúde. E a solução não virá deste ou daquele presidente. Virá de um compromisso que deixe ideologia e partidos de lado.
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"O Brasil precisa urgentemente de um pacto na saúde" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU