10 Dezembro 2013
Relatos autobiográficos de mulheres tenazes: verdadeiras "histórias de vida", no sentido mais alto do termo: folheando essas páginas – para usar uma imagem poética rilkiana – os dedos ficam marcados pela poeira de luz do amor, como quando se aferra as asas de uma borboleta.
A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 08-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
Há a foto do último escrito, um cartão postal endereçado a uma jovem professora sua e depois amiga, Christine van Nooten, uma estudiosa de literatura clássica que morreria em 1998: Etty Hillesum, no dia 7 de setembro de 1943, o jogaria do vagão que está levando ela e os seus pais para o campo de concentração de Auschwitz, onde, três semanas depois – no dia 30 de setembro –, ela entraria na câmara de gás.
Ela escrevia: "Abro a Bíblia por acaso e encontro isto: 'O Senhor é a minha fortaleza'. Estou sentada sobre a minha mochila no meio de um vagão lotado. Papai, mamãe e Mischa (seu irmão) estão alguns vagões mais à frente... Deixamos o campo (de Westerbork, onde ela ficou detida primeiro) cantando... Adeus a nós quatro".
Esse "adeus" dilacerante, obviamente, não se cumprirá, e a vida dessa mulher judia holandesa, bonita, extraordinariamente inteligente e dotada de uma alma mística, delicada e forte, seria brutalmente apagada pela bestialidade nazista aos 29 anos apenas. Já apresentamos a reedição da editora Adelphi do seu Diário; agora queremos apenas convidar os nossos leitores a não perder a coleção das Cartas, escritas em em grande parte do campo de concentração de Westerbork, onde Etty (Ester), de sua própria vontade, tinha se autoencerrado para jogar uma semente de amor e uma centelha de luz no "inferno dos outros".
A fé, a Bíblia, a poesia (em particular Rilke), o céu solar, ou com nuvens, ou estrelado serão o coração espiritual daqueles dias, humanamente tenebrosos, que envolviam os internos deixando-os tristes, rancorosos e infelizes.
A imagem pode ser abusada, mas Etty é como um anjo que irradia luz, sem perder, porém, o realismo de uma existência humilhada em um campo fechado dentro de um brejo sobre o qual se abatem rajadas de areia. Um realismo que conhece os pequenos egoísmos das próprias vítimas e a brutalidade dos carcereiros, mas também a alegria de um pacote de víveres, da chegada e do envio de um bilhete ou de uma amizade que floresce.
Todo comentário sobre essas cartas de Hillesum ou a ela endereçadas que não seja o necessário histórico-crítico (oferecido nessa edição) é dissonante e até desventurado. A leitura basta a si mesma.
É por isso que não acrescentamos nada, exceto uma citação entre as muitos possíveis. "A miséria que existe aqui é realmente terrível. No entanto, no fim da tarde, quando o dia declinou atrás de nós, muitas vezes me acontece de caminhar ao longo do arame farpado, e então do meu coração se eleva sempre uma voz – não posso fazer nada, é assim, é de uma força elementar – e essa voz diz: a vida é algo esplêndido e grande, mais tarde teremos que construir um mundo completamente novo".
Em Auschwitz, um ano antes, em 1942, tinha se dirigido para as mesmas câmaras de gás outra mulher de extraordinária inteligência, uma judia alemã que se converteu ao catolicismo, Edith Stein, discípula predileta do filósofo Edmund Husserl. Batizada aos 31 anos, em 1922, entrou no Carmelo de Colônia em 1933, com o nome de Teresa Benedita da Cruz, seria proclamada santa por João Paulo II em 1997.
Na vasta bibliografia dela e sobre ela, se acrescenta agora um retrato espiritual particular desenhado por uma atual "coirmã" dela, a carmelita Cristiana Dobner espiritual, que há muito tempo se dedica ao estudo de Edith-Teresa Benedita. O perfil é traçado segundo três delineamentos, usando muitos testemunhos que estão encrustados em todas as páginas do seu livro.
Acima de tudo, há o relato autobiográfico da mulher com o seu itinerário pessoal, muitas vezes conturbado, marcado por "índices de contrastes" e, no fim, posto sob a insígnia da luz de Cristo e das trevas do Holocausto. Depois, há o fio tanto da reflexão filosófica fenomenologia, a sua primeira pátria ideal (a sua obra maior seria, a esse respeito, Endliches und ewiges, “O Ser finito e eterno”), quanto da experiência espiritual, elaborada através de escritos de apaixonada declaração mística (e aqui brilha a Kreuzeswissenschaft, uma "ciência da cruz", que também é adesão existencial).
Finalmente, nas páginas de Dobner, assomam-se as palavras daqueles que cruzaram a vida de Edith de diferentes maneiras e nas diferentes etapas da sua história pessoal. É sugestivo o testemunho da sobrinha, Susanne Batzdorff-Biberstein: "Quem ela realmente era, como viveu e como morreu permanecerá para sempre o seu segredo". Tudo converge precisamente no mistério da morte, limiar aparentemente obscuro, aberto, na realidade, sobre uma sarça ardente de uma chama divina.
Concluímos esta resenha no feminino com uma verdadeira galeria de retratos de "mulheres tenazes". Há doze, muito diferentes, convocadas por duas jornalistas, a lombarda Alessandra Buzzetti e a siciliana Cristiana Caricato. O que pode unir entre si Clara, a filha do famoso geneticista Lejeune, que subiu até o topo da General Electric France, e a operária de meio turno da Emília Romana Cristina, com três filhos e um marido desempregado? Ou Jocelyne, comandante das milícias femininas do Exército libanês, e Nasreen, missionária franciscana no Paquistão? Ou ainda a jornalista Constanza Miriano com Marcella, voluntária em uma casa de acolhida? Ou Nancy, analista financeira da Walt Disney, e uma jovem mãe romana, Chiara Corbella Petrillo, que morreu de câncer?
Descobre-se a resposta deixando-se conduzir por esses 12 relatos biográficos, verdadeiras "histórias de vida", no sentido mais alto do termo: folheando as páginas desse livro – para usar uma imagem poética rilkiana – os dedos ficam marcados pela poeira de luz do amor, como quando se aferra as asas de uma borboleta.
A ênfase da metáfora é desmitificada, no entanto, pelo realismo desses episódios femininos que se confrontam todos com o sopro de sofrimento, de miséria, de necessidade do próximo, pondo em jogo sucesso pessoal, carreira e a própria vida. E sobre todas parecem ecoar as palavras pronunciadas por Jesus na última noite da vida terrena: "Não há maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos" (João 15, 13).
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Mulheres na luz do amor. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU