16 Novembro 2013
No primeiro dos cinco volumes que compõem o Periphyseon, em português: Sobre as naturezas do universo – a obra mais ousada do pensamento medieval antes de Tomás de Aquino, escrita no século IX e não como um tratado teológico, mas como um relato imaginário, pelo irlandês João Escoto Erígena, tradutor do grego e do latim, mestre da corte carolíngia de Carlos, o Calvo – lemos que, com o termo Natureza, entende-se "o nome geral de todas as coisas que existem e de todas aquelas que não existem".
A análise é do escritor e crítico literário italiano Giorgio Montefoschi, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 10-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A natureza – explica Erígena, alimentado por Platão e pelo neoplatonismo, assim como por Basílio, Gregório de Nissa e Máximo, o Confessor – é Tudo. Tudo está na natureza, incluindo Deus que é o seu criador, incluindo o nada. De fato, existe uma natureza que cria e não é criada, vem antes do espaço e do tempo, e é Deus; uma natureza que é criada e cria (isto é: as causas primordiais, muito semelhantes às ideias platônicas); uma natureza que é criada (pelas causas primordiais) e não cria (isto é: as coisas, os seres vivos, os animais, as árvores, a terra, o mar, em suma, os efeitos temporais); e, por fim, o que não é criado e não cria (isto é: o nada, escondido, como as trevas, na luz de Deus).
Deus, portanto, está no mundo, é o mundo que conhecemos, que admiramos pela sua milagrosa ordem e pela sua beleza, que percorremos com o nosso movimento no período limitado de tempo que vai do nosso nascimento até a nossa morte? Certamente ele o é, porque é o artífice do universo, a causa de todos os lugares e de todos os tempos. Certamente ele o é, porque, como sumo Bem, inunda e faz participar em si a natureza humana que é divinizada pelo seu inexaurível fluxo criativo e amoroso (embora permanecendo ela mesma), do mesmo modo pelo qual o ar, iluminado pelo sol, não parece ser outra coisa do que luz, e o ferro liquefeito pelo fogo não parece ser outra coisa do que fogo.
Mas, na realidade, não o é: porque está além do ser, está além do tempo, além do espaço, além do movimento, e na sua verdadeira essência nós não o podemos conhecemos – podemos conhecê-lo somente metaforicamente, somente através das suas manifestações, das suas teofanias –, e muito menos podemos defini-lo com as nossas palavras humanas: pálidas aproximações de um mistério incognoscível e inefável, de uma essência que é sempre mais do que aquilo que nos apressamos a nomear.
Tudo o que é delimitado por comprimento, largura, quantidade – diz Erígena, citando um dos seus seis autores favoritos: Dionísio, o Areopagita – é corpo e é finito: Deus é incorpóreo e infinito. No entanto, na sua imensa bondade, no seu infinito amor, assim como ele se separou de si mesmo, cindindo-se, cindindo no universo, mostrando-se nas suas teofanias, Deus fará com que o universo volte para si. No fim do mundo, a carne afligida pelas tentações, mortificada pela precariedade e pelo limite, se transformará, e todo ser natural, todo elemento da natureza (incluindo o mal) será acolhido no seio de Deus, se confundirá com Deus. Será Deus: assim como Deus esteve no universo. No centro desse projeto clamoroso, e para nós inacessível, se prescindimos do amor e confiamos nas forças da mente, estão Cristo, o Filho de Deus encarnado, e o ser humano.
Esse é o grande tema de todo o Periphyseon e, em particular, do segundo volume recém-publicado na coleção Mondadori-Fondazione Lorenzo Valla (com a edição de Peter Dronke e a tradução de Michela Pereira, LII-328 páginas). A raça dos mortais – diz Eriugena – vem por último: a sua aparição é o cume do processo cosmogônico. "O ser humano – escreve Dronke – contém em si toda a criação. É introduzido por último entre todas as coisas que existem por causa da sua capacidade única de mediar entre elas e conjugá-las. É a oficina em que o retorno de todas as coisas à sua origem divina pode ser elaborado, reintegrando progressivamente o que havia sido dividido, para chegar novamente no fim à origem na sua completa unidade".
No início – defende Erígena, seguindo o Simpósio e o predileto Máximo, o Confessor –, o ser humano criado por Deus era indivisível: não havia o macho e a fêmea no Paraíso terrestre. A divisão nos dois sexos ocorreu depois da queda. A reunificação será possível, porque o Filho de Deus (o Princípio em que todas as coisas são criadas), fazendo-se homem, "recapitulou, reunindo, todas as coisas que estão no céu e na terra", ressurgindo da morte. O mesmo vai acontecer para nós.
Assim, quando a humanidade do ser humano for renovada, o orbe terrestre será imediatamente reunido no Paraíso. As suas diversas partes serão unificadas, espiritualizadas, no ser humano. Que se tornará semelhante aos anjos e conjugará a realidade sensível com a inteligível.
A ideia – nunca antes expressada por nenhum platônico, pagão ou cristão – de que o Paraíso consiste na integridade da natureza humana, de que o Paraíso seremos nós ressuscitados como Cristo ressuscitado, é a inédita proposta de João Escoto Erígena: articulada em páginas de uma beleza impressionante. E ele faz perguntas igualmente impressionante (por exemplo: como será superada a divisão dos sexos? Reconhecer-nos-emos? Seremos corpo ou espírito?), as quais Erígena não dá respostas claras, tratando-se de um evento milagroso. Mas tudo o que – no limite das palavras humanas – ele diz a propósito da ressurreição de Cristo, aquele que, na ressurreição, nos precedeu, é de uma força persuasiva que deixa o leitor desorientado, como se nunca tivesse lido nada sobre a ressurreição.
Cristo, de fato – diz Erígena, assim como São Paulo – não ressuscitou dos mortos no seu sexo corpóreo, mas no ser humano simplesmente. Quando voltou dos mortos ao Paraíso e se entreteve com os seus discípulos, ele não mostrou nada mais do que isto: que o Paraíso é a glória da ressurreição. De fato, o Paraíso não se distingue da terra por uma localização espacial, mas pela diversidade da vida que se leva e pela diferença da felicidade.
"De fato, no mesmo momento – ainda Erígena –, ele estava no Paraíso e habitava nesta terra com os seus discípulos. Não se deve acreditar que ele vinha de outro lugar para aparecer aos seus discípulos e que ia embora para outro lugar quando se mostrava a eles, mas, em um único e idêntico espaço, às vezes ele aparecia a eles com o aspecto que tinha durante a paixão, para alimentar a sua fé, e, transcorrido o espaço da aparição momentânea, ele voltava à potência intelectual do corpo espiritual que ultrapassa todo tempo e todo espaço. Cristo, portanto, estava simultaneamente no Paraíso e no mundo, mostrando que uma e uma só é a razão do mundo e do Paraíso, e reunificando em si mesmo o mundo e o Paraíso".
Erígena sabe como propor um mistério (aquele em que os cristãos devem acreditar, no fim das contas), que dificilmente pode ser acolhido pelo intelecto humano; e que a verdadeira sabedoria de Deus é a ignorância de Deus. Por isso, no fim do segundo livro, ele volta sobre a incognoscibilidade de Deus e da Verdade. Mas, com uma imagem maravilhosa, ele descreve a nossa labuta, destinada a durar tanto quanto a nossa vida. Ele nos compara aos anjos que a sagrada teologia representa, em proximidade de Deus, com asas que cobrem os seus pés e os seus rostos.
Essas asas são o símbolo do temor que as potências angélicas sentem ao se aproximarem do mistério. As asas representam também as especulações que os anjos, e os homens, fazem sobre o mistério. O seu desejo – freado pelo temor – é superar essas especulações. Buscam o infinito e tremem. Mas permanecem próximos de Deus, porque é em Deus que anseiam lançar o olhar.
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Erígena: o Paraíso é o ser humano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU