15 Novembro 2013
Uma vez, quando Dom Oscar Romero voou de volta para El Salvador, um funcionário da imigração ao vê-lo passar, disse em voz alta: "Lá vai a verdade". Qual era a verdade perturbadora que ele pregava? Como podemos testemunhar essa mesma verdade hoje?
Publicamos aqui a palestra do padre dominicano Timothy Radcliffe, na Abadia de Westminster, na Inglaterra, proferida no dia 29 de outubro passado, sobre Oscar Romero e o seu legado. A palestra foi intitulada “A verdade perturbadora: a Igreja, os pobres e Oscar Romero” e também foi proferida em Manchester, no dia 31 de outubro, e em Edimburgo, no último dia 1º de novembro.
O artigo foi publicado na revista católica britânica The Tablet, 04-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Muito obrigado pelo convite de dar essa palestra. Esta é uma de uma série de palestras na abadia na qual políticos, acadêmicos, dentre outros, falam sobre como dizer a verdade nos dias de hoje. É também a palestra anual em honra a Oscar Romero, e então, obviamente, eu tenho que falar sobre Romero como um homem da verdade.
Quando eu aceitei dar essa palestra, eu não fazia ideia de quão desafiador isso seria para mim. Se você se sentir colocado em uma posição um pouco desconfortável por esse homem extraordinário, saiba que eu também sinto isso. Isso me recorda, como várias vezes antes, de um dos meus irmãos que deu uma palestra em Chicago. Quando ele se sentou, os aplausos não eram muito entusiasmados. Ele virou-se para o homem que estava ao seu lado e disse: "Espero que não tenha sido assim tão ruim". E o homem respondeu: "Ah, a culpa não é sua, mas sim da pessoa que lhe convidou para falar".
O arcebispo Oscar Romero foi assassinado enquanto celebrava a Eucaristia em San Salvador, em 24 de março de 1980. Ele foi morto por ser um defensor dos pobres. Isso pode soar como se ele fosse um revolucionário selvagem, um Che Guevara episcopal. Mas em muitos aspectos, ele era um clérigo romano tradicional. Até mesmo seu nome era apropriado: Romero significa "um peregrino em Roma". Ele chamava Roma de "minha mãe, minha mestra e minha terra natal". Seu lema era Sentir con la Iglesia, pensar ou sentir com a Igreja. Ele era um tanto tímido, até mesmo nervoso. A estátua em frente à Abadia de Westminster lhe caracteriza bem. Ela mostra ele nos olhando timidamente através de seus óculos de lentes grossas. Como esse clérigo tímido, até mesmo nervoso, chegou a ser assassinado? Foi porque ele falou a verdade.
Seus sermões eram transmitidos na estação de rádio diocesana. Toda a nação parava para escutar. Você podia caminhar por um vilarejo no interior e ouvir cada palavra, pois todos estavam reunidos ao redor do rádio. O governo tentou parar sua pregação explodindo a estação de rádio. Mas a Cafod [agência católica de ajuda externa da Inglaterra e do País de Gales] conseguiu os fundos para colocar a estação de volta no ar. Foram tomadas medidas para que o Papa João Paulo II o retirasse, mas o papa se manteve ao seu lado. Então, no fim, eles tiveram que matá-lo para parar a sua pregação.
Muitos de nós tivemos vontade de matar um pregador por que eles seguem em frente sem parar. Anthony Trollope lamenta: "Não há, talvez, maior sofrimento, no momento, infligido sobre a humanidade em países civilizados e livres do que a necessidade de ouvir sermões". E Romero pregava, muito frequentemente, por mais de duas horas. Mas ele morreu porque disse a verdade. Isso era intolerável para as pessoas que dirigiam El Salvador. Um agricultor uma vez comparou o fato de ouvir seus sermões com colocar a mão em uma vasilha de água salgada: "Se a mão está saudável, não faz mal algum. Mas se há um pequeno corte, em seguida, ai! Dói!".
Uma vez, quando ele voou de volta para El Salvador, um funcionário da imigração ao vê-lo passar, disse em voz alta: "Lá vai a verdade". Qual era a verdade perturbadora que ele pregava? Como podemos testemunhar essa mesma verdade na Grã-Bretanha hoje?
Para Romero, em primeiro lugar, era a verdade da Palavra de Deus. O regime militar salvadorenho chegou a temer a Bíblia. Muitos camponeses enterraram suas Bíblias no chão apenas porque o fato de ter uma Bíblia poderia conduzir à sua prisão e assassinato. Pouco antes de ele também ter sido martirizado, o amigo jesuíta de Romero, Rutilio Grande, disse: ''Eu tenho muito medo de que em breve a Bíblia e o Evangelho não serão capazes de atravessar nossas fronteiras. Nós só vamos conseguir as capas dos livros, porque todas as páginas são subversivas".
Por que a Palavra de Deus era tão ameaçadora? Muitas vezes as pessoas pensam que a Bíblia está preenchida com mensagens obscuras de Deus. Você estuda a Bíblia de modo a obter as suas instruções do céu: "Bem, hoje é melhor eu ir e matar alguns amalequitas, devo evitar cozinhar o cabrito no leite de sua mãe. E seria bom ter algumas pedras no bolso para o caso de me deparar com alguém que cometa adultério". Grande parte da violência no mundo de hoje se deve a pessoas que aparentemente receberam instruções conflitantes de suas escrituras sagradas: judeus, cristãos, muçulmanos e hindus. É como se os crentes estivessem sintonizando em diferentes estações de rádio celestes.
Não era assim como Romero compreendia a verdade da Bíblia. Ela não contém instruções do chefe invisível. Escutar a Palavra de Deus é entrar em conversa com Deus que nos transforma em Seus amigos. Pelo menos metade da Bíblia judaica e cristã não é sobre Deus falando conosco, mas sobre amigos de Deus falando com Deus, argumentando com Deus, ficando irritados com Ele, pedindo-lhe coisas, resmungando, elogiando-o. Para Romero ler a Bíblia era falar com um amigo: "Háblame, Señor", escreveu ele em seu caderno ainda quando era um jovem seminarista: fale comigo.
As crianças crescem ouvindo as palavras de seus pais. Nós não falamos com as crianças para comunicar informações, mas para abrir um espaço em que elas possam florescer e tornar-se humanas. A criança aprende que ela é amada e pode amar. Fazer parte da conversa é mais transformador do que informativo. E assim era para Romero, quando ele sentava-se à noite para meditar sobre o evangelho. Ele não estava sintonizando em instruções, mas crescendo em amizade com Deus e o seu povo. A Palavra de Deus era a sua casa.
É por isso que a verdade cristã não pode ser comunicada batendo na cabeça das pessoas com a Bíblia, mas somente através de uma conversa agradável. É assim que nós compartilhamos a vida de Deus, uno e trino, o amor eterno, conversa igual entre o Pai, Filho e Espírito Santo. Ser batizado é encontrar-se nessa conversa, sem saber como ela vai nos modificar. Eu me lembro de uma história de um antigo dominicano, o cardeal Michael Browne, que havia sido mestre da Ordem e teólogo papal. Quando ele voltou para a sua terra natal, para a Irlanda, ele queria se encontrar com uma freira muito antiga e agradecê-la por tê-lo batizado ainda bebê quando ele estava em perigo de morte. Por fim, ele a encontrou. Ela disse: "Oh, Vossa Eminência. Foi uma honra tê-lo batizado em nome de... Jesus, Maria e José".
Para Romero, a escolha moral fundamental era entre o diálogo e a violência. Ele recusou-se a aparecer em público com o governo, mas ele iria dialogar com qualquer um. Ele citava o Papa Pio XI que disse que iria até mesmo dialogar com o diabo se fosse necessário. Diálogo não é fazer concessões. Não se trata de negociação, mas de transformação. As verdades mais profundas só são atingíveis através de uma troca paciente, construindo amizade, transformando nossos corações e mentes. É o oposto da violência.
Então, esse é o primeiro desafio que Romero coloca diante dos cristãos na Grã-Bretanha hoje. Muitas vezes, somos tentados a buscar nas Escrituras evidências de que Deus concorda comigo! Há alguns tópicos disputados: o casamento gay ou a ordenação de mulheres como bispas. As pessoas pegam a Bíblia para ter munição. Deus tem que ser inteligente, ele está do meu lado. Mas, para Romero, a meditação da Palavra de Deus envolve uma experiência muito mais perturbadora. Ela destrói meus pequenos preconceitos. Ela subverte a minha identidade estreita e me liberta para a amizade com Deus e com as pessoas mais inesperadas. Romero disse: "Eu sempre quis seguir o evangelho, mas eu não sabia aonde ele iria me levar".
A Grã-Bretanha geralmente é considerada como um lugar muito tolerante. Somos livres para falar sobre qualquer coisa. Mas a maior parte do que chamamos de "debate", seja nas ruas, no Parlamento, na TV ou na internet não é isso. Ele consiste em demolir a oposição, ridicularizar os adversários, destruir os seus pontos de vista. Confrontada com a escolha entre a conversa e a violência, muitas vezes, a nossa sociedade escolhe a violência e chama isso de "troca de opiniões". Ainda não chegamos ao ponto de nos matarmos uns aos outros. Mas o ar está cheio de palavras violentas que acusam e denigrem os outros. O duque de Edimburgo gritou para um grupo de jornalistas de tabloides que estavam importunando a família real: "Vocês são todos uma escória". E alguém respondeu: "Senhor, nós podemos ser escória, mas nós somos a nata da escória!".
Então esse é o primeiro desafio que Romero nos oferece: ouvir a Palavra de Deus que nos refaz como Seus amigos e amigos uns dos outros. Isso o levou à segunda verdade, sobre a qual eu quero falar, que é a terrível violência sofrida pelos amigos íntimos de Deus, os mais pobres. Em 12 de março de 1977, um jesuíta, amigo próximo de Romero, Rutilio Grande, sofreu uma emboscada quando estava a caminho para celebrar a Missa em uma aldeia. O jesuíta Jon Sobrino disse que, quando Romero olhou para o corpo mutilado, as escamas caíram de seus olhos. Ele viu a violência que assolava a sua terra. Ele também viu que não poderia escapar e que um dia iriam matá-lo.
Romero foi assassinado porque a cada semana ele contava a verdade sobre a violência sofrida pelos mais pobres: aqueles que tinham sido presos, que tinham desaparecido, que tinham sido assassinados, as ameaças feitas. Em El Salvador, a violência era onipresente, mas escondida. As pessoas simplesmente desapareciam, e depois seus corpos eram encontrados jogados na beira da estrada. A pregação de Romero colocava em palavras a violência incessante sofrida pelos pobres. Ele disse: "Estas homilias tentam ser a voz deste povo. Elas tentam ser a voz dos que não têm voz. E assim, sem dúvida, elas desagradam aqueles que têm muita voz. Esta voz pobre vai encontrar eco naqueles que amam a verdade e que verdadeiramente amam o nosso querido povo" (29 de julho de 1979). É por isso que ele foi morto.
Romero nos confronta com uma segunda pergunta: o que é a violência sofrida pelos pobres em nosso país? Qual é a verdade sobre os mais pobres, que permanece em grande parte silenciosa? Confrontado com essa questão, sinto-me profundamente consciente da minha própria ignorância. Um amigo me perguntou algumas semanas atrás: "Mas, Timothy, você já foi pobre?". Além de algumas semanas de fome, quando eu era estudante na Alemanha, eu nunca fui pobre. Mas, como um de meus irmãos disse, "a ignorância nunca o impediu de falar antes, Timothy". Ela quase conseguiu desta vez.
Porém, quando eu era capelão universitário, costumava ir todas as semanas distribuir sopa aos sem-teto no centro de Londres. Então, nós ficávamos mais meia hora com eles para conversar. Uma vez, outra instituição de caridade chegou com a sopa deles, de qualidade inferior. Quando me ofereceram um pouco, eu educadamente recusei e fui repreendido: "Não seja orgulhoso, jovem! Você precisa de ajuda, então aceite-a". Isso me rendeu um pouco de credibilidade nas ruas!
Claro que existem muitos tipos de pobreza: a pobreza no exterior e a pobreza na Grã-Bretanha, a pobreza urbana e a pobreza rural, a pobreza dos destituídos e das pessoas que não são pagas o suficiente, que não têm segurança no emprego e estão sobrecarregadas com dívidas. Há a pobreza econômica e uma terrível pobreza de espírito. Para falar sobre todas essas formas de pobreza eu teria que palestrar ao menos o mesmo tempo que Romero costumava pregar, e eu duvido que muitos de vocês tenham a paciência de um campesino salvadorenho.
Então me perdoem por ser muito simplista. Os pobres sofrem violência em nossa sociedade também. Em todos os lugares, bancos de alimentos estão sendo abertos, porque cada vez mais pessoas na Grã-Bretanha (o sexto país mais rico do mundo) simplesmente não podem se dar ao luxo de comer. Crianças chegam com fome na escola todas as manhãs. Milhões de pessoas, especialmente os jovens, não enxergam um futuro, estão sem esperança. Cathy Corcoran, do Centro Cardeal Hume, disse-me: "Se você é um sem-teto de longo prazo no Reino Unido, sua expectativa de vida é de 40 e poucos anos no máximo. Se você tem um problema de drogas também, então essa média cai para 30 e poucos anos". Pessoas desapareciam das ruas de San Salvador, porque eram assassinadas por esquadrões da morte. Elas desaparecem das nossas ruas porque morrem. Nosso país é atingido por uma vasta e oculta violência contra os mais pobres. Se não abrirmos os olhos para ela e agirmos, então ela certamente irá entrar em erupção e destruir a nossa sociedade antes do tempo.
Nossa cegueira a essa violência não se deve apenas à ignorância. A maneira que vemos o mundo filtra os dramas das vidas dessas pessoas. O antropólogo francês Pierre Bourdieu diz que toda a sociedade tem um mapa cognitivo que silencia algumas pessoas. Elas desaparecem no que ele chama de "silêncios sociais".
Isso acontece ao menos por duas razões. No nosso mundo tudo é quantificado, medido, administrado. David Graeber escreve que é "a capacidade do dinheiro para transformar a moral em uma questão de aritmética impessoal" que justifica "as coisas que poderiam parecer chocantes ou obscenas". Eu sou um grande fã do admirável Escritório Nacional de Estatísticas. Ele faz com que os políticos continuem sendo confiáveis. Mas se os números moldam o nosso mapa cognitivo, então o pobre vai desaparecer e nós não registraremos a violência que eles sofrem.
De acordo com Lucas, Jesus nasceu durante um censo do Império Romano. Todos deveriam ser contados de modo que pudessem ser tributados. Mas o verdadeiro governante do mundo é reconhecido por inúmeros anjos do céu e revelado aos pastores que eram muito desprezíveis e sem importância para aparecer em qualquer rolo de papiro. Ele é revelado pelos incontáveis para aqueles que não são contados. Os amigos e arautos de Deus não aparecem em qualquer censo. Em segundo lugar, os pobres são muitas vezes denegridos. No El Salvador de Romero, a linguagem da "segurança nacional" foi usada para esmagar qualquer um que se opusesse aos interesses da oligarquia. Quem se levantava pelos pobres devia ser comunista e, portanto, merecia a morte.
Um esquadrão da morte de direita circulava panfletos que diziam: "Seja patriota, mate um padre".
Na Grã-Bretanha moderna, o desprezo pelos pobres muitas vezes toma a forma de contraste entre os chamados pobres bons, trabalhadores, e a multidão imaginada de preguiçosos, parasitas devoradores de benefícios. Existem essas pessoas, mas a grande maioria das pessoas pobres deste país trabalham, mas simplesmente não são pagas o suficiente. Owen Jones mostrou como os membros das classes trabalhadoras "são demonizados pelos tabloides e pelos programas populares de televisão como irresponsáveis, viciados em bem-estar, que bebem demais, fumam demais, comem muito, procriam muito e são péssimos pais. Eles se tornaram motivo de piadas regulares no teatro da crueldade da mídia".
Romero teve que ser assassinado porque ele se recusou a conspirar no mito da maldade dos pobres. Ele adaptou uma frase de Santo Irineu, bispo de Lyon do século II: Gloria Dei vivens pauper: "A glória de Deus é o pobre vivo". Como nós as tratamos?
Pouco mais de uma semana atrás, eu estava em Rouen para uma jornada organizada pela arquidiocese. Dez mil pessoas vieram. Quem disse que a Igreja está morta na França? O primeiro evento do programa foi uma mesa redonda sobre a insegurança e a pobreza. Eu disse: "Eu quero ir nela. Isso pode me ajudar com a palestra que eu devo dar na próxima semana sobre Romero". A resposta: "É bom que você queira ir, já que, segundo o programa, você deve falar!". Três mulheres – Valerie, Benedicte e Corinne – compartilharam suas experiências de marginalização, da pobreza à prisão. Elas nos contaram sobre como elas voltaram para casa, para a Igreja. Três mil pessoas da diocese ouviram com atenção aguda. Nós escutamos. Lá, elas estavam no centro da vida da Igreja.
Dean Brackley, um jesuíta norte-americano descreveu o que aconteceu quando pessoas ricas norte-americanas de classe média encontraram os pobres em El Salvador: "Aquelas pessoas nos abalaram, porque elas nos fizeram levar para casa as piores coisas do mundo que nem ousávamos imaginar. Mas isso é apenas um lado da história. Se nós as permitimos compartilhar seu sofrimento com a gente, elas comunicam um pouco de suas esperanças também. O sorriso que parece não ter nenhum fundamento nos fatos não é falso, o espírito de festa não é uma fuga, mas sim um reconhecimento de que alguma coisa está acontecendo no mundo além de injustiça e destruição. Os pobres sorriem porque eles suspeitam que isso é mais poderoso do que a injustiça. Quando eles insistem em compartilhar sua tortilla com um visitante 'gringo', nós reconhecemos que há algo acontecendo no mundo que é mais maravilhoso do que ousamos imaginar".
O mundo dos pobres é muitas vezes violento e criminal. Quando eu passei um verão trabalhando com os sem-teto, em Edimburgo, a tarefa que eu mais temia era terminar com as brigas: "Eu digo a vocês, caras, eu fico muito triste em interferir, mas eu seria tremendamente grato se vocês pudessem parar de se bater por um momento.” Eles sempre paravam! Sem querer ter um olhar pretensioso e sentimental sobre os pobres, este é também um mundo de generosidade, compaixão e humanidade.
Jean Vanier fundou as comunidades L'Arche para oferecer às pessoas com deficiência um lar e uma amizade. Jean disse: "Quando eu fundei a L'Arche era para 'ser bom' e para ‘fazer o bem' para pessoas com deficiência. Eu não tinha ideia de como essas pessoas iriam fazer o bem para mim!". Um bispo me disse uma vez : "Vocês na L'Arche são responsáveis por uma revolução copernicana: até agora, nós costumávamos dizer que devemos fazer o bem aos pobres. Você está dizendo que os pobres estão fazendo o bem para você!". As pessoas que estamos curando estão de fato nos curando, mesmo que elas não percebam isso. Elas nos chamam a amar e a despertar dentro de nós o que há de mais precioso: a compaixão.
Essa é a revolução copernicana de que precisamos. Chega de uma linguagem difamadora, desvalorizadora sobre os pobres. Claro que existem pessoas que enganam o sistema e só querem os benefícios: assim como há deputados, banqueiros e provavelmente até mesmo clérigos que fazem isso. Mais radicalmente, precisamos de testemunhas da bondade e da dignidade dos mais marginalizados, da sua coragem e generosidade. O nosso florescimento é inseparável deles. Lila Watson, uma aborígene australiana, disse a uma freira: "Se você veio para me ajudar, você está perdendo seu tempo. Mas se você veio porque a sua libertação está ligada à minha, então vamos trabalhar juntas".
Como podemos abrir os olhos da Grã-Bretanha para a grande violência sofrida pelos pobres na Grã-Bretanha? Quando Oscar Romero olhou para o corpo mutilado de seu amigo Rutilio, ele tomou uma decisão que chocou o El Salvador. Ele decidiu que, no próximo domingo, só haveria uma Missa celebrada em toda a diocese, em sua memória. Isso ficou conhecido como la misa unica, a Missa única. O governo, a oligarquia e até mesmo os outros bispos ficaram furiosos. No dia 20 de março, 100 mil pessoas se reuniram em frente à Catedral, com 150 sacerdotes, para la misa unica.
Essa é a verdade perturbadora da Eucaristia. Em Cristo, somos um só corpo, e vivemos e morremos juntos. A mais antiga referência à Eucaristia está na primeira carta de Paulo aos Coríntios. Ele os condena pelas celebrações da Ceia do Senhor, na qual os ricos se fartam com comida e bebida, e os pobres são deixados humilhados e com fome. Isso é compartilhar o corpo e sangue de Jesus indignamente: "Aquele que come e bebe sem discernir o Corpo come e bebe a própria condenação" (1Coríntios 11, 29). Se os pobres são excluídos ou humilhados, não discernimos o corpo de Cristo.
Em 1850, quando a hierarquia católica foi restabelecida, o cardeal Wiseman, arcebispo de Westminster, fez uma declaração mal julgada sobre como ele havia sido nomeado para governar o sul da Inglaterra. As pessoas ficaram furiosas; perguntas foram feitas ao Parlamento. Então ele fez uma declaração extraordinária, que resume a natureza da comunidade cristã: "Perto do subsolo da Abadia de Westminster, existem labirintos ocultos de pistas e quadras, e becos e favelas, ninhos de ignorância, vícios, depravação, e criminalidade, assim como de sujeira, miséria e doença, cuja atmosfera é tifo, cuja ventilação é cólera; na qual se move uma enorme e quase incontável população, em grande medida, ao menos nominalmente, católica; essa é a parte de Westminster que sozinho eu cobiço e que vou ser feliz em solicitar, e em visitar, como uma pastagem bem-aventurada na qual ovelhas da santa Igreja devem ser cuidadas, em que o trabalho divino de um bispo tem que ser feito, de consolar, converter e preservar".
Como cristãos devemos, é claro, fazer campanha pela justiça. Nós devemos nos candidatar para a eleição e nos envolvermos na política. Devemos tomar posições em favor de um sistema de tributação que favorece o bem comum; devemos nos opor à crescente desigualdade que está destruindo o nosso país. Mas também temos de encontrar maneiras de tocar o imaginário comum. Precisamos de grandes gestos, como a misa unica, algo que acorde as pessoas. A verdade do cristianismo é sacramental.
A primeira viagem do Papa Francisco fora de Roma foi profundamente simbólica. Ele foi até a pequena ilha de Lampedusa e celebrou a missa em um pequeno barco, em memória de todas as pessoas que continuam morrendo tentando chegar à Europa. Ele disse: "Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por estas pessoas que vinham no barco? Pelas mães jovens que traziam os seus filhos? Por estes homens cujo desejo era conseguir qualquer coisa para sustentar as próprias famílias? Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de 'padecer com': a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar!".
Em 1996, eu participei em Paris da Missa de Natal para os sem-teto, presidida por um dominicano espanhol, Pedro Meca. Ele passou anos dormindo ao relento na calçada com a sua congregação de fiéis. Uma vez por ano, uma grande tenda é erguida no centro de Paris, e Pedro celebra a Missa para os sem-teto, em um altar feito de papelão, que lembra as caixas de papelão em que esses nossos irmãos e irmãs vivem. Mil pessoas vieram e celebraram o nascimento de nosso irmão e salvador. Que grandes gestos podemos fazer que irão incendiar a imaginação dos nossos contemporâneos?
O ultimo testemunho de Romero à verdade foi a sua aceitação da própria morte. A partir do momento em que ele olhou para o corpo mutilado de seu amigo Rutilio, ele sabia que isso era o que o esperava. Quando eles removeram as suas roupas após o seu assassinato, havia uma espessa camada de sal. Essa, pensa-se, foi resultado do suor no último momento, enquanto ele olhava para o homem que estava prestes a matá-lo.
"Mártir" é a palavra grega para "testemunha". Cerca de 100 mil cristãos ainda são mortos pela sua fé a cada ano. Houve mais mártires no século XX do que em toda a história cristã anterior. Já faz um bom tempo desde que cristãos morreram pela sua fé neste país. Será que é porque a Grã-Bretanha é tão tolerante ou porque somos tão inócuos? Talvez um pouco de ambos. Nós temos horários marcados para fazer arranjos de flores e para fazer a limpeza da igreja. É difícil imaginar um horário para ser baleado. "Nós ainda temos um lugar livre no horário de martírio para sexta-feira. Alguém disponível?"
Eu preguei sobre o martírio em uma das nossas grandes catedrais neste verão. Caiu como uma bola de chumbo. Talvez, se nós nos tornarmos insistentes, testemunhas pertinazes da violência sofrida pelos pobres em nosso país hoje, nós também possamos tornar-nos impopulares. Ou se fôssemos mostrar como a nossa prosperidade é, por vezes, o fruto do sofrimento de pessoas em todo o mundo, que morrem prematuramente por causa da poluição, em fábricas, sobrecarregadas e subnutridas. William Cavanaugh apontou o quão perto o seu próprio país, os EUA, estava envolvido na morte de Romero: "A bala que atingiu o peito de Oscar Romero foi feita nos EUA, assim como o rifle que atirou nele. Ambos foram pagos pelos nossos impostos; nós também pagamos para treinar dois dos três funcionários responsáveis pelo assassinato no Exército da Escola das Américas, em Fort Benning, Geórgia. Quando eu assisto o filme Romero, eu quero desesperadamente que Romero e o salvadorenho pobre possam ser 'nós'. A verdade é, no entanto, que eu sou 'eles' tanto quanto eu sou 'nós'".
Qual é a verdade que os mártires testemunham? A vida de Romero estava enraizada na Palavra de Deus, uma palavra de amizade. Ela convida a nos desenrolarmos, a nos libertarmos da autoobsessão. Ela nos chama a florescer e a encontrar a felicidade em um amor que não conhece limites. O cristianismo não é uma espiritualidade inofensiva: acenda uma vela e veja onde você está na tabela Myers Briggs [1]. Não é um acessório de estilo de vida ou uma espécie de cola social. É a loucura maluca de ser tomado por um amor que é infinito. Ou não é nada.
Às vezes, isso exige um doar-se dramático e radical, como acontece com os mártires na frente oeste da Abadia. Quando eu era uma criança, com oito anos de idade, eu imaginava inimigos caindo de paraquedas exigindo que renunciássemos à nossa fé. O jovem Radcliffe iria recusar e morrer heroicamente com uma chuva de balas, de forma indolor, mas universalmente admirada.
Mas, geralmente, o nosso testemunho não é dramático e é despercebido. Podem ser pais que saem de uma bela cama quente para alimentar uma criança mal-humorada, ou cuidar de alguém que se esqueceu de quem você é, perdido na doença de Alzheimer. Pode ser um professor que fica acordado até tarde para preparar aulas para o dia seguinte, ou apenas por se preocupar em sorrir para alguém quando se está exausto. Pode ser dizer o que se realmente pensa, quando isso pode arruinar a sua carreira e você perde o seu emprego.
Pierre Claverie era um dominicano, bispo de Oran, na Argélia. Ele foi martirizado em 1996, logo depois dos monges trapistas do filme Homens e deuses. Ele sabia que eles viriam atrás dele também. Mas pouco antes de morrer, ele disse que o que realmente importava era o que ele chamava de "martírio branco": "O martírio branco, que é o que se tenta viver cada dia, o dom de sua vida gota a gota em um olhar amoroso, em estar com alguém, um sorriso, cuidar de alguém, um trabalho, em todas essas coisas que fazem com que um pouco da nossa vida seja compartilhada, dada, entregue. Não podemos nos apegar à nossa própria vida".
A sua vida é um dom a ser dado. "Este é o meu corpo, entregue por vós". Então talvez essa seja a última palavra de Romero para nós. Não nos apeguemos às nossas vidas. Se o fizermos, vamos murchar. Não tenhamos medo de dá-las enquanto podemos. Jesus disse: "Não se vendem dois pardais por alguns trocados? No entanto, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do Pai de vocês. Quanto a vocês, até os cabelos da cabeça estão todos contados. Não tenham medo! Vocês valem mais do que muitos pardais" (Mateus 10, 29-31).
Nota:
1. A classificação tipológica de Myers Briggs (do inglês Myers-Briggs Type Indicator – MBTI) é um instrumento utilizado para identificar características e preferências pessoais.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
''Uma vasta e oculta violência contra os mais pobres pode aflorar e destruir a nossa sociedade''. Artigo de Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU