13 Novembro 2013
Hayashi, 41, diz ter sido recrutado para um emprego em que teria que monitorar a exposição à radiação dos trabalhadores que saíam da usina, no verão japonês de 2012. Em vez disso, quando se apresentou para o trabalho, foi encaminhado através de uma rede de firmas terceirizadas e alocado, para sua surpresa, a uma das mais perigosas zonas de radiação em Fukushima.
A reportagem é de Antoni Slodkowski e Mari Saito, publicada no jornal Valor, 11-11-2013.
Disseram-lhe que teria que usar um tanque de oxigênio e uma roupa de proteção de camada dupla. Mesmo assim, segundo contaram a Hayashi seus superiores, a radiação seria tão alta que poderia atingir seu limite de exposição anual em pouco menos de uma hora. "Eu me senti enganado e em uma armadilha", disse Hayashi. "Não tinha concordado com nada disso."
Hayashi diz que, quando levou suas queixas a uma empresa um degrau acima na hierarquia das firmas terceirizadas em Fukushima, foi demitido. Ele entrou com uma reclamação, mas não recebeu nenhuma resposta da agência trabalhista governamental competente durante mais de um ano. Todas as oito empresas envolvidas, incluindo a operadora da usina, a Tokyo Electric Power Co. (Tepco), recusaram-se a comentar ou não puderam ser contactadas para se manifestar sobre o caso.
Sem trabalho, Hayashi encontrou um segundo emprego em Fukushima, dessa vez na construção de uma base de concreto para tanques de armazenamento das varetas usadas de combustível nuclear. Seu novo empregador ficava com cerca de 30% do salário - em torno de US$ 1,5 mil por mês - e pagava o restante em dinheiro, dentro de envelopes pardos, ele conta.
As dificuldades enfrentadas por Hayashi não são incomuns no esforço de custo estimado em US$ 150 bilhões para desmontar reatores e descontaminar a região ao redor da usina.
Ao examinar as condições de trabalho em Fukushima, a Reuters entrevistou mais de 80 trabalhadores, funcionários e autoridades envolvidas nos trabalhos de descontaminação, cuja escala não tem precedentes no mundo. Uma queixa comum: o fato de o projeto depender de uma rede de firmas subcontratadas muito ampla e pouco supervisionada - muitos delas sem experiência em trabalhos nucleares e algumas delas, de acordo com a polícia, ligadas ao crime organizado.
A Tepco está no topo de uma pirâmide de firmas terceirizadas, que chega a ter sete ou mais degraus e também inclui gigantes da construção como a Kajima e a Obayashi no primeiro nível.
A Tepco continua encarregada do trabalho de desmontar os reatores danificados de Fukushima, uma tarefa subsidiada pelo governo que deverá levar 30 anos ou mais.
Fora da usina, as "Quatro Grandes" construtoras do Japão - Kajima, Obayashi, Shimizu e Taisei - supervisionam centenas de pequenas firmas contratadas com recursos do governo para remover lixo radiativo e escombros dos vilarejos e fazendas nas proximidades, para que a população evacuada possa voltar a seus lares.
A Tepco sustenta que não consegue monitorar as subcontratadas integralmente, mas que adotou medidas para limitar abusos de funcionários e limitar o envolvimento com o crime organizado.
A tarefa sem precedentes de limpeza nuclear em Fukushima, tanto dentro como fora da usina, enfrenta falta de trabalhadores. Há cerca de 25% mais postos de trabalho do que candidatos no Estado de Fukushima, segundo números do governo. Aumentar os salários poderia atrair mais funcionários, mas esse não é o caso, de acordo com esses dados.
A Tepco está sob pressão para mostrar lucros no ano a encerrar-se em março de 2014, dentro do plano de recuperação acertado com os principais bancos do Japão, que somou US$ 5,9 bilhões em novos créditos e refinanciamentos. Em 2011, na esteira do acidente, a Tepco reduziu a remuneração dos seus funcionários em 20%.
Com os salários estagnados e a falta de trabalhadores, agências de emprego entraram em cena, recrutando pessoas com dificuldade em encontrar trabalho fora da zona de desastre ou cujas vidas chegaram a becos sem saída. O resultado foi uma proliferação de pequenas firmas - muitas sem registro. Cerca de 800 empresas atuam dentro da usina e outras centenas trabalham nos esforços de descontaminação fora de seus portões.
Por muito tempo, a Tepco, maior concessionária pública elétrica de capital aberto na Ásia, gozou de laços próximos com autoridades reguladoras e de uma supervisão governamental complacente. Depois do terremoto de 9,0 pontos e do imenso tsunami que atingiram a usina em 11 de março de 2011, isso passou a despertar grande atenção. O desastre desencadeou o derretimento de três reatores, uma série de explosões e um vazamento radioativo que levou à evacuação de 150 mil pessoas dos vilarejos próximos.
Hayashi é um dos 50 mil trabalhadores que se estima terem sido contratados até agora para fechar de vez a usina nuclear e descontaminar as cidades e vilarejos próximos. Outros milhares serão convocados. Alguns serão necessários para manter o sistema que resfria, com milhares de toneladas de água por dia, as varetas de combustível danificadas nos reatores. Depois, a água que escoa, contaminada, é transferida a mais de 1 mil tanques, suficientes para encher 130 piscinas olímpicas.
Desmontar a usina Fukushima Daiichi vai exigir um contingente de pelo menos 12 mil trabalhadores até 2015, de acordo com planos da Tepco. Hoje, são pouco mais de 8 mil trabalhadores registrados. Nos últimos seis meses, cerca de 6 mil pessoas vêm trabalhando dentro da usina.
As estimativas de contratação da Tepco não incluem a mão de obra necessária para o novo plano do governo de construção de uma enorme barreira de terreno congelado, estimada em US$ 330 milhões, em torno da usina para impedir vazamentos de água contaminada para o mar.
"Acho que deveríamos realmente nos perguntar se eles são capazes de fazer isso e ao mesmo tempo assegurar a segurança dos trabalhadores", disse Shinichi Nakayama, vice-diretor de análise de segurança da Agência de Energia Atômica do Japão.
A indústria nuclear do Japão recorre a mão de obra barata desde que suas primeiras usinas foram inauguradas nos anos 70. Por anos, a indústria valeu-se de trabalhadores itinerantes, conhecidos como "ciganos nucleares", de Sanya, na vizinhança de Tóquio, e de Kamagasaki, em Osaka, áreas conhecidas pelo grande número de homens sem-teto.
"As condições de trabalho na indústria nuclear sempre foram ruins", disse Saburo Murata, vice-diretor do hospital Hannan Chuo, em Osaka. "Problemas de dinheiro, recrutamento terceirizado, falta de seguro-saúde apropriado, isso existe há décadas."
O projeto de descontaminação de Fukushima amplificou esses problemas. A lei para financiar os trabalhos de descontaminação aprovada em agosto de 2011 pelo Parlamento do Japão não aplicou as regras que regulamentam a indústria de construção. Como resultado, as terceirizadas trabalhando na descontaminação não precisam revelar informações sobre dirigentes nem passar por qualquer processo de seleção.
Dessa forma, qualquer firma podia tornar-se uma subcontratada nuclear de uma hora para outra. Muitas pequenas empresas sem experiência correram para candidatar-se a contratos para depois voltar-se, muitas vezes, para agências de emprego em busca de mão de obra, segundo funcionários e empregadores.
A consequente convergência de trabalhadores tornou a cidade de Iwaki, a cerca de 50 quilômetros da usina, um agitado centro de alocação de trabalho, na linha de frente do projeto e de suas gigantescas obras públicas.
Em casos extremos, sabe-se que as agências de emprego "compram" trabalhadores, pagando suas dívidas. Os funcionários, então, são forçados a trabalhar até que paguem o valor a seus novos chefes, com fortes deduções em seus salários e sob condições que lhes dificultam reclamar de abusos, de acordo com trabalhadores e ativistas por direitos laborais em Fukushima. Lake Barrett, que já trabalhou como regulador na área nuclear nos Estados Unidos e hoje é assessor da Tepco, diz que o sistema está tão arraigado que levará tempo para mudá-lo.
"São cem anos de tradição das grandes empresas japonesas usando terceirizadas, e, simplesmente, essa é a forma no Japão", afirma. "Você não vai mudar isso de uma hora para outra só porque tem um novo emprego aqui; então, acho que você tem de se adaptar."
Pesquisa realizada pela Tepco em 2012 revelou que quase metade dos trabalhadores de Fukushima foi contratada por uma empresa terceirizada, mas era administrada por outra. A legislação japonesa proíbe esses esquemas, para evitar que intermediários se apropriem de parte dos salários dos trabalhadores.
A Tepco afirma que orienta suas terceirizadas a respeitar as regulamentações trabalhistas. A companhia diz ter aberto uma linha direta telefônica para os trabalhadores, e que organizou palestras para as subcontratadas para apurar o grau de conhecimento da regulação trabalhista. Em junho, a Tepco lançou treinamento compulsório para novos trabalhadores sobre as ações que constituem práticas ilegais de emprego.
A Tepco não publica os salários médios por hora praticados na usina. Os trabalhadores dizem que a remuneração muitas vezes não ultrapassa US$ 6 por hora, mas que normalmente alcança em média cerca de US$ 12 por hora - cerca de um terço menos que a média praticada no setor de construção civil do Japão.
O trabalho na usina, além disso, pode ser perigoso. Seis trabalhadores ficaram expostos em outubro a água radioativa quando um deles desprendeu uma tubulação conectada a um sistema de tratamento. Em agosto, 12 trabalhadores sofreram radiação quando retiravam entulho dos entornos de um dos reatores. Os acidentes levaram o órgão regulador nuclear do Japão a questionar se a Tepco não estaria delegando demais a gestão dos trabalhos.
"A supervisão adequada é importante para prevenir erros originados por negligência. No momento, a Tepco pode estar deixando tudo para as subcontratadas", disse o diretor da Autoridade de Regulação Nuclear (ARN) do Japão, Shunichi Tanaka, em resposta aos recentes acidentes.
A ARN, encarregada primordialmente da segurança dos reatores, é apenas um dos vários órgãos envolvidos no projeto de Fukushima: os ministérios do Trabalho, Meio Ambiente, Comércio e Economia também são responsáveis por administrar a operação de descontaminação e por fiscalizar o cumprimento da regulação, juntamente com autoridades locais e a polícia.
O advogado Yousuke Minaguchi, que representou os trabalhadores de Fukushima, diz que o governo do Japão fez vista grossa para o problema da exploração dos trabalhadores. "Na superfície, eles dizem que isso é ilegal. Mas, na realidade, eles não querem fazer nada. Ao não punir ninguém, eles poderão continuar usando um monte de trabalhadores a baixo custo."
A complexidade dos contratos de Fukushima e a escassez de trabalhadores beneficiou a yakuza, a associação do crime organizado do Japão, que pratica chantagem com mão de obra há várias gerações. Quase 50 gangues com 1.050 membros operam na área administrativa de Fukushima, dominada por três principais organizações - a Yamaguchi-gumi, a Sumiyoshi-kai e a Inagawa-kai -, afirma a política.
Os ministérios, as empresas envolvidas nas obras de descontaminação e desativação, e a polícia formaram uma força-tarefa para erradicar o crime organizado do projeto de descontaminação nuclear. Investigadores da polícia dizem que não conseguem tomar as medidas cabíveis contra os membros de gangues que monitoram sem receber uma queixa-crime. Eles também dependem das principais terceirizadas para obter informações.
Num dos poucos processos judiciais envolvendo um gerente da yakuza, Yoshinori Arai, um dos chefes de uma gangue filiada à Sumiyoshi-kai, foi condenado por infringir a legislação trabalhista. Arai reconheceu ter embolsado cerca de US$ 60 mil ao longo de dois anos ao se apoderar de um terço dos salários pagos aos trabalhadores na zona do desastre. Em março, um juiz lhe deu uma sentença de oito meses de prisão, com suspensão condicional da pena porque Arai disse que se afastou da gangue e se arrependeu de seus atos.
Arai foi condenado por fornecer trabalhadores para uma obra administrada pela Obayashi, uma das principais empreiteiras do Japão, em Date, uma cidade a noroeste da usina de Fukushima. Date estava na trajetória da nuvem de maior concentração de radiação após o acidente. Um policial afirma que o caso de Arai era apenas "a ponta do iceberg" em termos de envolvimento do crime organizado na operação de descontaminação.
Segundo um porta-voz da Obayashi, a empresa "não notou" que uma de suas subcontratadas estava obtendo mão de obra com um membro do crime organizado. "Nos contratos com as nossas subcontratadas temos cláusulas sobre a não cooperação com o crime organizado", afirma o porta-voz, acrescentando que a empresa trabalha com a polícia e suas subcontratadas para garantir que esse tipo de infração não volte a ocorrer.
Em abril, o Ministério da Saúde, do Trabalho e do Bem-Estar adotou sanções contra três empresas por despachar ilegalmente trabalhadores para Fukushima. Uma delas, uma empresa sediada em Nagasaki chamada Yamato Engineering, enviou 510 trabalhadores para colocar tubulações na usina nuclear, infringindo a legislação trabalhista que proibia intermediários. Todas as três empresas receberam ordens dos órgãos reguladores trabalhistas para melhorar as práticas operacionais, segundo revelam registros.
Em 2009, a Yamato Engineering foi proibida de participar de projetos de obras públicas devido à conclusão da polícia de que ela estava "na prática sob controle do crime organizado", segundo aviso ao público divulgado pela agência de Nagasaki do Ministério da Terra e dos Transportes. Contactada, a Yamato Engineering disse que não iria comentar.
Nas cidades de médio e pequeno porte situadas ao redor da usina de Fukushima, milhares de trabalhadores empunhando mangueiras industriais, operando escavadeiras mecânicas e usando dosímetros para medir a radiação foram mobilizados para lavar casas e ruas, revolver camadas superficiais do solo e tirar as folhas das árvores, num esforço para reduzir a radiação para que os refugiados possam voltar para casa.
Centenas de pequenas empresas receberam contratos para esse trabalho de descontaminação. Quase 70% das pesquisadas no primeiro semestre de 2013 tinham infringido a regulação laboral, segundo relatório do Ministério do Trabalho divulgado em julho. No período de 12 meses encerrado em março, o departamento do ministério dedicado a Fukushima tinha recebido 567 reclamações referentes às condições de trabalho no esforço de descontaminação. Emitiu dez advertências. Nenhuma empresa recebeu punição.
Uma das firmas que foram alvo de reclamações é a Denko Keibi, que, antes do acidente, fornecia guardas de segurança para canteiros de obras.
A Denko Keibi administrava 35 trabalhadores em Tamura, uma cidadezinha próxima à usina. Em sessão de arbitragem realizada em maio, os trabalhadores reclamaram que foram alojados em pequenas cabines - cada uma comprimindo cinco homens. O jantar era, normalmente, uma tigela de arroz e meio pimentão ou sardinha, disseram eles. Quando um motorista que transportava trabalhadores capotou a van numa estrada coberta de gelo em dezembro, os supervisores mandaram os trabalhadores tirarem seus uniformes e se dispersarem para hospitais distantes, relataram os trabalhadores. A Denko Keibi não tinha seguro contra acidentes no local de trabalho e quis evitar fazer boletim de ocorrência do acidente, afirmaram eles.
"Nos pediram para chegar e começar a trabalhar depressa", disse um executivo da Denko Keibi, ao se desculpar junto aos trabalhadores, que posteriormente conseguiram indenização de cerca de US$ 6 mil cada um por salário não pagos. "Numa visão retrospectiva, isso não é coisa em que um amador devesse ter se envolvido."
Na sessão de arbitragem a Denko Keibi disse que houve problemas com as condições de trabalho, mas informou que ainda está apurando o que aconteceu no acidente de dezembro.
O processo da Denko Keibi é pouco comum devido ao grande número de trabalhadores envolvidos, diz o sindicato que conseguiu o acordo para encerrar o caso. Muitos trabalhadores têm medo de denunciar abusos, muitas vezes porque têm de continuar a quitar dívidas com seus empregadores.
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Yakuza participa da limpeza de Fukushima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU