05 Novembro 2013
“Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho,
quando nos explicava as Escrituras!” (Lc 24,32)
Irmãs e irmãos,
Reunidos no Primeiro Encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal, em Manaus, entre os dias 28 e 31 de outubro de 2013, nós, bispos, presbíteros, religiosas e religiosos, agentes de pastoral leigas e leigos, queremos partilhar com vocês as reflexões e análises sobre a situação atual da nossa região e as respostas que, como pastores, pretendemos dar aos desafios de nossos tempos. Agradecemos a Deus pelas maravilhas que operou entre nós e nossos irmãos e irmãs que, por um compromisso profético, testemunharam sua fé, muitas vezes até as últimas consequências (cf. Jo 13,1), dispostos a “dar não somente o Evangelho, mas até a própria vida” (1 Tes 2,8). Ao nos prepararmos para celebrar os 400 anos do início da evangelização na Amazônia, assumimos a missão que o Senhor nos propõe, de sermos suas testemunhas, discípulas/os, missionárias/os de sua Palavra, pois a Igreja é “enviada por Cristo a manifestar e a comunicar o amor de Deus a todos os homens e mulheres e a todos os povos” (AG 10).
“CRISTO APONTA PARA A AMAZÔNIA” (Papa Paulo VI): memória da caminhada.
Mesmo antes da criação da Amazônia Legal em 1953, a Igreja católica na Amazônia se reunia através dos seus bispos para posicionar-se pastoralmente diante dos problemas sofridos pelos povos desta região e enfrentar os grandes desafios que se anunciavam, pelas intervenções políticas e econômicas.
“Se o governo vai tentar o soerguimento econômico destas regiões,
é urgente que um largo surto espiritual se antecipe aos progressos materiais,
e os acompanhe, e os envolva, dando-lhes rumo seguro e feliz”
(1º Encontro inter-regional dos Bispos da Amazônia, Manaus 2 a 6 de julho de 1952, Documento final).
Apesar de não ter todas as condições necessárias, seja pela precariedade de instalações e meios, seja pela falta de pessoal qualificado para enfrentar os novos problemas, a Igreja amazônica nunca desanimou de sua missão. Sempre contou com missionárias e missionários vindos de outras regiões do Brasil e do mundo que, vivendo a mística do amor e do serviço, deram tudo de si para que povos da Amazônia não só recebessem uma orientação adequada para sua vivência de fé, mas tivessem respeitados seus direitos, sua dignidade e plena cidadania, suas tradições e culturas.
“...em nossas prelazias e dioceses existem sinais de alegria e esperança,
próprias de uma Igreja que, mesmo tendo muitas dificuldades,
está viva e responde com coragem aos desafios que se lhe apresentam”
(Discípulos missionários na Amazônia, Manaus, 11 a 13 de setembro de 2007).
Ao longo de seis décadas, desde o primeiro encontro dos bispos em Manaus, a Igreja tem demonstrado sua vitalidade e posicionamento profético e solidário. Em Santarém 1972, decidiu basear sua ação pastoral e evangelizadora em duas diretrizes:
(1) a Encarnação na realidade, pelo conhecimento e pela convivência, na simplicidade, e
(2) a Evangelização Libertadora.
Armou sua tenda no meio do povo de tal modo que apareceu um rosto eclesial bem amazônico na diversidade sociocultural, na defesa do lar que Deus criou para toda a humanidade e na promoção da Vida em todas as suas dimensões, sobretudo quando é ameaçada pelos impactos causados por um equivocado conceito de progresso que confunde desenvolvimento com crescimento meramente econômico, multiplicação de riqueza material, incremento do PIB, expansão do agronegócio, aumento de produção de biocombustíveis, descuidando-se, porém de políticas públicas e deixando de promover a justiça e o bem-estar de todos e para todos.
A Igreja na Amazônia adotou e incorporou as novas orientações eclesiológicas e pastorais vindas do Concílio Vaticano II, de Medellín e Puebla, Santo Domingo e Aparecida e buscou evangelizar a partir de uma visão mais ampla e profunda da vida e da realidade amazônicas. Assumiu a mística e espiritualidade do seguimento de Jesus Cristo, uma pastoral e uma missionariedade dentro da realidade local. Centenas de milhares de irmãs e irmãos leigos e religiosos, presbíteros e bispos embrenharam-se nas matas, navegaram rio abaixo, rio acima, viajaram pelas estradas desse mundo desigual, levando a Palavra de Deus, fundando e organizando as comunidades eclesiais, vivas e participativas, proféticas e missionárias, numa grande rede de solidariedade que as fez enfrentar as precariedades existenciais, manter viva a chama de sua fé e sua esperança, e valorizar sobretudo sua religiosidade popular expressada nas festas religiosas, em novenas e procissões.
“E porque progredimos na compreensão de sermos uma Igreja no mundo,
amando o mundo amazônico, temos a certeza que estamos dando à sociedade amazônica nossa contribuição histórica de alta qualidade para o resgate das dívidas sociais tão pesadas neste Norte do Brasil”
(A Igreja arma sua tenda na Amazônia, Manaus, 9 a 18 de setembro de 1997).
Esta ação evangelizadora favoreceu o crescimento de uma Igreja mais local, ministerial, laical e missionária. Ao celebrar os 40 anos desde o Documento de Santarém, a Igreja na Amazônia manifesta a continuidade de sua caminhada como discípula missionária do Reino e enfrenta corajosamente velhos e novos desafios:
“Diante dos desafios sociais, políticos, econômicos, culturais, religiosos e eclesiais
da realidade amazônica, decidimos fortalecer o compromisso profético de transformação e reafirmar o projeto de formação inspirado na espiritualidade do seguimento de Jesus, que convoca a Igreja para uma profunda conversão pastoral”
(DAp, 170-175; 360-365, citado em “Conclusões de Santarém: memória e compromisso, 2012”).
As palavras do Papa Francisco aos Bispos do Brasil por ocasião da Jornada Mundial da Juventude dão-nos novo impulso para refletirmos sobre a realidade política e religiosa da Amazônia Legal e promover e defender a vida dos habitantes dessa região e de sua rica biodiversidade. Cala fundo em nosso coração a expressão do Papa Francisco de que a Amazônia é “teste decisivo, banco de prova para a Igreja e a sociedade brasileiras” (Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013). Essas palavras incentivam-nos a retomar as intuições de Santarém 1972 e Manaus 1974 e dar-nos conta da atualidade das prioridades de então: formação de agentes de pastoral – comunidades cristãs de base – pastoral indígena – grandes projetos – juventude.
PRIMEIRO ENCONTRO DA IGREJA CATÓLICA NA AMAZÔNIA
“A Igreja está na Amazônia, não como aqueles que têm as malas na mão, para partir depois de terem explorado tudo o que puderam. Desde o início a Igreja está presente na Amazônia com missionários, congregações religiosas, sacerdotes, leigos e bispos e lá continua presente e determinante no futuro daquela área”
(Papa Francisco aos Bispos do Brasil, Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013).
Conscientes de que falta muito a ser realizado em nossa missão evangelizadora, conforme nos pede o Senhor da História (cf. Col 1,13 – 20), novamente nos encontramos em Manaus, desta vez com a participação de todos os regionais da CNBB que integram a Amazônia Legal (Norte I, II e III, Noroeste, Nordeste 5 e Oeste II). Sabemos que temos um mesmo caminho a palmilhar. Lembramo-nos de que Jesus mesmo é o Caminho (Jo 14,6). Jesus caminha conosco como o fez com os discípulos de Emaús que exclamaram: “Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras!” (Lc 24,32). E não foi adiante, mas “entrou para ficar” (Lc 24,29). Jesus está na Amazônia para ficar. E o reconhecemos ao partir o pão.
Neste caminho comum damo-nos conta de que são comuns os problemas e desafios que nos interpelam. Confiando em Jesus, presente no meio de nós, queremos formar uma ampla rede integradora de nossas ações pastorais e evangelizadoras e convocar os irmãos e as irmãs a empenharem-se em favor de um mundo justo, fraterno e solidário. Queremos convocar também mulheres e homens que não professam a nossa fé ou se afastaram de nossa Igreja a irmanarem-se conosco na defesa da dignidade e dos direitos dos povos da Amazônia e da criação que Deus em sua bondade e imenso amor confiou ao seu zelo e seus cuidados (cf. Gn 1,18).
Refletimos nestes dias sobre problemas que continuam a atingir e causar danos e ameaças à vida e à existência de pessoas e povos e ao meio ambiente na Amazônia. Ajudados por estudiosos e especialistas e ouvindo pessoas que sentem na pele os dramas causados por políticas de dominação em total desrespeito aos legítimos anseios e necessidades dos povos desta região:
• analisamos e discutimos a realidade urbana e a mobilidade humana que tantos sofrimentos têm causado aos povos amazônidas como o desenraizamento da terra e a perda do patrimônio cultural e religioso próprio e comum aos povos tradicionais e dos que vêm de outras regiões;
• verificamos um acentuado crescimento das igrejas evangélicas e dos sem-religião também na Amazônia, como consequência da precária presença de nossa Igreja nos movimentos migratórios;
• fomos informados a respeito dos grandes projetos implementados na região, de modo especial as hidrelétricas, que representam uma nova invasão do capital visando explorar as nossas riquezas naturais e aproveitar o potencial energético de nossos rios, sem olhar para os prejuízos que causam ao meio-ambiente com sua imensa biodiversidade e a destruição da vida e da história de muitos povos tradicionais;
• o desmatamento contínuo e novamente crescente das florestas amazônicas nos assusta pelos prejuízos incomensuráveis e pela ameaça ao equilíbrio ecológico do planeta;
• frente ao desmatamento, à concentração da terra e às monoculturas percebemos a urgência da realização da Reforma Agrária e Agrícola;
• constatamos o crime impune da prática do trabalho escravo que ocorre nas empresas do agronegócio e nas áreas de mineração;
• ficamos horrorizados ante o criminoso tráfico de pessoas e drogas, sustentado pela ganância, miséria e impunidade, e o assassinato de jovens;
• ouvimos ainda os relatos de um representante dos povos indígenas e de um quilombola que nos falaram de suas organizações, lutas e conquistas e nos alertaram para os graves riscos de perderem, através da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 215), direitos conquistados em relação à demarcação e garantia de seus territórios, asseguradas nos Art. 231 e 232 da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988; lembramos ainda que o Art. 68 das Disposições Transitórias da Constituição Federal reconhece aos remanescentes dos quilombos a propriedade definitiva de suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Enfim, constatamos que o domínio de um sistema único de mercado, o individualismo típico da cultura/sociedade de hoje e a violência urbana destroem os laços e as relações tradicionais: a família, a natureza, o mundo dos povos indígenas, dos caboclos, seringueiros, agricultores, ribeirinhos. Tudo é desagregado e desestruturado e essa realidade provoca a crise da esperança, pois rouba os sonhos, as aspirações, desorganiza as lutas, abre espaços para messianismos políticos e religiosos ou para um milenarismo alienante e vazio de sentido.
Esses problemas atingem também os fiéis em suas necessidades subjetivas: sua busca de Deus e sua noção de vinculação com a Igreja. Está na hora de valorizarmos a religiosidade do povo e ampliarmos o diálogo ecumênico e inter-religioso.
COMPROMISSOS
Os enormes desafios apresentados nos relatos e testemunhos nos interpelam como Igreja na Amazônia Legal a assumir compromissos pastorais que devem nortear a caminhada de nossa Igreja no presente e no futuro:
Reafirmamos nossa identidade de ser Igreja discípula da Palavra, testemunha do dialogo, servidora e defensora da vida, irmã da criação, missionária e ministerial, que assume a vida do povo, que se articula na paróquia como rede de comunidades e nas comunidades eclesiais de base (cf. Conclusões de Santarém: memória e compromisso, 2012, p. 19).
Causa-nos uma profunda dor ver milhares de nossas comunidades excluídas da eucaristia dominical. A maioria delas só tem a graça de celebrar o Memorial da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor uma, duas ou três vezes ao ano. O Senhor, na véspera de sua morte, não deu um bom conselho, mas um mandato explícito: “Fazei isto em minha memória” (1 Cor 11,24; Lc 22,19). O Decreto “Presbyterorum Ordinis” do Concílio Vaticano II declara que a Eucaristia é fonte e, ao mesmo tempo, ápice de toda a Evangelização (cf. PO 5). “Nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve começar toda a educação do espírito comunitário” (PO 6). Também a Constituição Dogmática “Lumen Gentium” fala da Eucaristia como “fonte” e “ponto culminante de todas a vida cristã” (LG 11). Torna-se urgentemente necessário criar estruturas em nossa Igreja para que os 70% de comunidades, que hoje estão excluídos da celebração eucarística dominical, possam participar da “fração do pão” (At 1,42), do “sacramento da piedade, sinal de unidade, vínculo da caridade, banquete pascal” (SC 47).
A cultura urbana transforma profundamente a compreensão do papel dos leigos e da mulher na Igreja. Na sociedade civil, eles vivenciam processos de empoderamento social quando se exercitam na construção de uma sociedade que preserve os direitos sociais e coletivos. Práticas e relações cotidianas exigem hoje, no interior das pastorais, modelos eclesiais assentados em relações recíprocas, mais do que no complemento, no diálogo horizontal em lugar de imposições verticais, na profunda experiência de serviço em lugar das lutas pelo poder.
O protagonismo dos leigos é insubstituível e imprescindível, na ação transformadora da realidade em que vivem, marcada pela exclusão e pela violência. O campo específico da missão dos leigos/as é o das realidades em que vivem e trabalham. É o mundo da família, do trabalho, da cultura, da política, do lazer, da arte, da comunicação, da universidade. É nos diversos níveis e instituições, nos Conselhos de Direitos, em campanhas e outras iniciativas que busquem efetivar a convivência pacífica, no fortalecimento da sociedade civil e do controle social. É na formação de pensadores e pessoas que estejam, nos níveis de decisão, evangelizando com especial atenção e empenho (cf. EN 70).
A corresponsabilidade e participação de leigas e leigos, como sujeitos com vez e voz, deve acontecer na elaboração e execução dos planejamentos pastorais, nos centros de discussão e decisão das Igrejas Particulares.
“Urge formar ministérios adequados às necessidades das comunidades, especialmente do Ministério do Pastoreio de comunidades, exercido por leigas e leigos que sejam servas e servos do povo, abertos ao diálogo e ao trabalho em equipe, e que, devidamente preparados, assumam em nome da Igreja a direção pastoral de uma comunidade” (A Igreja arma sua tenda na Amazônia, Manaus, 9 a 18 de setembro de 1997, n. 47).
Almejamos investir na formação de presbíteros e de irmãos e irmãs de vida consagrada – autóctones e os que chegam de fora – para que sejam despojados, simples, não busquem a autopromoção, que sejam missionários e vivam em maior sintonia e contato com as comunidades e saibam trabalhar em equipe com os/as leigos/as, evitando centralismo, clericalização e autoritarismo.
Comprometemo-nos em a dar visibilidade ao tráfico de pessoas para enfrentar esses crimes hediondos contra a liberdade e dignidade da pessoa humana. Apostamos na Campanha da Fraternidade de 2014 que tem como tema “Fraternidade e Tráfico Humano”.
Precisamos dar mais ênfase aos meios de comunicação, pois sabemos da sua importância para a Evangelização.
Conscientes de que a problemática da Amazônia é global, queremos abrir-nos a uma visão panamazônica que nos convoca a buscar caminhos de colaboração e compromisso entre as Igrejas na América Latina.
Queremos dar atenção especial aos jovens, através do apoio e incentivo à Pastoral da Juventude, estimulando as dioceses e congregações religiosas a liberarem presbíteros e religiosas para acompanhar os jovens, para que sejam oferecidos cursos de formação de assessores, preparando-os para este serviço à juventude na Amazônia.
UMA IGREJA COM ROSTO AMAZÔNICO
A Igreja católica na Amazônia Legal vive e cresce com características próprias, enraizadas na sabedoria tradicional e na religiosidade popular que durante séculos alimentou e continua a manter viva a espiritualidade dos povos da floresta e das águas, e agora, do mundo urbano. Enfrenta com alegria as dificuldades das distâncias e da falta de comunicação para encontrar e oferecer ao rebanho, confiado a nós pelo Senhor da messe, a luz da Palavra de Deus e a Eucaristia como alimentos que revigoram e animam as forças para viver a comunhão com Deus e cuidar da Amazônia como chão da partilha, pátria solidária, “morada de povos irmãos e casa dos pobres” (DAp 8).
A carinhosa devoção a Nossa Senhora de Nazaré, Rainha da Amazônia, nos leve a cumprir o que ela nos pede: “Fazei o que Ele vos disser!” (Jo 2,5).
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Carta do primeiro encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU