21 Outubro 2013
Quando o Skype conecta o entrevistado, nas primeiras horas do dia em Amsterdã, na Holanda, ele pede desculpas pela aparência. Tem dormido pouco e trabalhado além do limite físico. Há um mês não faz outra coisa senão lidar com a prisão de 28 ativistas do Greenpeace em uma cadeia de Murmansk. O sul-africano Kumi Naidoo, de 48 anos, número 1 da organização ambiental, anda preocupado com a situação dos colegas. Vê intransigência em autoridades russas, ainda que líderes como o presidente Vladimir Putin e o primeiro-ministro Dmitri Medvedev rejeitem a acusação de pirataria imputada ao grupo. "É absurdo. Nós nos preparamos para enfrentar as consequências dos atos, mas que haja proporcionalidade entre o que fazemos e do que nos acusam", diz em entrevista.
A entrevista é de Laura Greenhalgh e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 20-10-2013.
Em nenhum momento Naidoo nomeia os presos - entre eles, a bióloga brasileira Anna Paula Maciel. Fala de todos coletivamente e defende a "desobediência civil pacífica" como arma da organização. Tornou-se fonte de inspiração para milhares de ativistas do Greenpeace, cuja capilaridade pelo mundo constitui fenômeno à parte no ambientalismo. Este líder modelo tem disposição para o ataque, mas sabe fazer ativismo de salão, tendo sido ouvido na ONU e no Fórum Econômico Mundial, em Davos.
Kumi Naidoo debutou na militância contra o apartheid em seu país. Com Mandela livre e no poder, ajudou a montar a ala jovem do Congresso Nacional Sul-africano. Depois, foi se especializando em protestos de massa contra a pobreza da era da globalização. Em 2009, quando participava de uma greve de fome pelo Zimbábue, foi procurado pela direção do Greenpeace, que o convidava a entrar num processo de seleção para o seu mais alto posto. Aceitou o desafio a pedido da filha. "Ela me animou, seria a chance de atuar numa organização que não fica falando, falando...aqui se faz". No ano passado, Naidoo fez barulho no Ártico. Subiu no bote para protestar contra a exploração de petróleo numa região que classifica como "santuário global". Há um mês não estava lá para ser preso. Mas avisa que não vai desistir dessa guerra.
Eis a entrevista.
Qual é a situação dos presos?
É séria. No início, foram mandados para lugares distintos, depois reunidos numa só prisão. Enfrentaram condições muito duras em termos de comida, água, cobertores. Agora estão autorizados a receber cartas da família, há momentos em que se encontram fora das celas, mas, na maior parte do tempo, permanecem solitariamente confinados. Por horas e horas, ao longo de todos esses dias.
E o que o Greenpeace vem fazendo?
Recorremos das acusações e pedimos a libertação imediata do grupo. Contudo, na terça-feira, esses recursos foram julgados e negados, o que me preocupou. Há fatos novos. O governo holandês entrou com uma representação questionando a legalidade de prisões em águas internacionais, tomando como base a Convenção do Mar do Norte. Isso vai ser apreciado na próxima segunda, numa corte de arbitragem em Hamburgo. Tecnicamente, eu deveria esperar uma solução positiva. Mas tenho dúvidas. Essa situação ainda pode levar um par de semanas ou um par de meses. Difícil prever o desfecho.
As autoridades russas jogam duro?
Sim e não. O Conselho de Direitos Humanos, órgão do governo russo, vem contestando o processo e vai pedir que os ativistas sejam alvo de acusações adequadas. Pode-se até discutir uma acusação de tentativa de invasão da propriedade alheia, mas não de pirataria. Veja bem, nós não pretendemos estar acima da lei. Mas não queremos estar fora dela tampouco. Acreditamos no poder da desobediência civil pacífica, inspirados em momentos da História em que essa tática foi utilizada - na luta contra o colonialismo, a escravidão, o apartheid. A desobediência civil pacífica é uma arma legítima, usada por mulheres e homens quando dizem "agora, basta, isso não dá mais". Gandhi, Luther King ou Mandela, cujas lutas hoje incorporamos e celebramos, fizeram uso dela. E nos ensinaram: quando existem leis injustas ou injustiças protegidas por leis, é preciso reagir.
Seria este o motor da campanha "Save de Arctic", do Greenpeace?
A exploração de petróleo no Ártico não é só injusta, mas criminosa. Então desafiamos leis e acordos que justifiquem essa atividade. Temos a responsabilidade moral de fazer isso. Agora, somos uma organização consciente dos riscos que corre e nos preparamos para arcar com as consequências. Não vamos fugir do julgamento, só exigimos julgamento justo. Como disse o sr. Medvedev, falando pelo Conselho de Direitos Humanos, acusar o Greenpeace de pirataria e de formação de gangue, com intuito de sabotar plataforma de petróleo, é absurdo. Até o presidente Putin não vê sentido nisso. Espero que o bom senso prevaleça. E que sejamos acusados na proporção do que fizemos.
Como calcular essa proporção?
Fizemos uma ação visando a chamar a atenção do mundo para o seguinte problema: vazamento de óleo no Ártico é dano irrecuperável. Subimos em botes de borracha, num grupo de não mais de dez pessoas, para pacificamente hastear faixas e cartazes lembrando que uma catástrofe ali é iminente, há risco real. Mas os executivos da (companhia russa depetróleo) Gazprom preferiram inverter as coisas e nos acusar de colocar em risco a plataforma. Em nenhum momento quisemos protestar na plataforma, não é do nosso interesse. Queremos ficar do lado de fora. Então, colocamos o quê em risco? Ora, risco é o que estão fazendo por lá. Convido os seus leitores a pensar no que representa para todo o planeta uma atividade que provoca a formação de milhares de imensas placas de gelo, que se deslocam num lugar de remoto acesso, onde as condições para operar uma plataforma são as mais precárias que se possa imaginar. Isso é risco.
Você já fez protestos na região?
Sim. No ano passado fiquei naquelas águas por sete dias. Equipes de segurança da plataforma passaram o tempo todo provocando a guarda costeira russa, dizendo que os guardas deveriam nos prender. Mas eles viram que estávamos protestando pacificamente, não ameaçávamos nada. Ficaram nos observando três, quatro dias. Quando decidimos sair da área, daí eles nos perguntaram: e agora, para onde vão? Dissemos que iríamos à Noruega, depois ao Polo Norte, mas o fato é que não costumamos antecipar nossas ações. Não sei como explicar por que o relacionamento com as autoridades costeiras russas mudou tão drasticamente nos últimos 12 meses.
Qual é a influência das companhias de petróleo no jogo com as autoridades?
Seja na Rússia, no Canadá ou nos Estados Unidos, sempre nos deparamos com o poder excessivo das gigantes do óleo, gás e carvão. São poucas companhias ao todo, mas capturam e manobram governos segundo seus interesses. Costumo dizer que os EUA são a melhor democracia que o dinheiro pode comprar. Lobbies empresariais atuam junto ao meio político americano. E, dentre eles, os mais ferozes hoje são os das empresas poluidoras. Mobilizam equipes financeiras num corpo a corpo com cada representante do Congresso, para garantir que as leis da energia fóssil tramitem sem obstáculos. Na Rússia, a situação é diferente. A Gazprom foi uma estatal, não está bem claro onde terminam os interesses do governo, onde começam os da iniciativa privada.
Diz-se que as companhias russas são mais atrasadas do ponto de vista tecnológico.
Sim, o que só aumenta o risco de catástrofe ambiental. A Gazprom está drenando on shore neste momento. Ou seja, faz uma extração mais simples do que a offshore. E já ocorrem vazamentos pelo uso de 40 bombas obsoletas. Ou seja, usam equipamento velho, adotam práticas ruins, numa plataforma que não passa de um amontoado de peças de plataformas desativadas no Mar do Norte. Peças até cobertas de ferrugem!
Qual é o risco ambiental maior?
Num lugar daqueles, em que seis meses do ano, ou até mais, o oceano permanece congelado, a extração de óleo acaba ocorrendo de maneira intensiva no verão. E é feita com equipamentos velhos, vazamentos frequentes, derretimento de placas que não deveriam derreter. Daí, quando chega o inverno, toda essa bagunça é novamente congelada por um longo período. Assim, não há renovação da natureza, só destruição.
O que dizem os cientistas disso?
Há pesquisas em duas frentes: sobre o Ártico em si e sobre o Ártico no contexto da mudança climática. O Painel Intergovernamental de Mudança Climática da ONU (IPCC, na sigla em inglês) há duas semanas tornou público um relatório que reforça a visão do Greenpeace. A conclusão é a seguinte: há consenso científico de que 75% das reservas conhecidas de carvão, óleo e gás no planeta precisam ficar exatamente onde estão, se quisermos evitar uma catástrofe climática de escala planetária. Mas o IPCC é composto por governos, portanto, é um corpo conservador que acabará propondo medidas restritas, mesmo diante de evidências da ciência. Há até cientistas russos apoiando nossa posição no Ártico, ou seja, de que é preciso declarar a região santuário global, protegendo-a como se faz com a Antártida.
Existem consensos, mas não unanimidade entre os cientistas.
Existem cientistas trabalhando para companhias poluidoras, o que os torna ambíguos em relação aos riscos. Assim como existem cientistas independentes, insistindo que os danos serão irreversíveis. Que não vai dar para limpar o estrago. Também existe um consenso da ordem de 98% dos estudos feitos, reiterando que a mudança climática é real, vem se acelerando e ameaça a vida no planeta. Vamos continuar colocando isso em dúvida? O planeta em si não é o problema, porque ele vai mudar com o clima. Muda o solo, mudam os oceanos, mudam as estações. A dúvida é sobre a capacidade humana de coexistir com esse planeta em mutação, por séculos e séculos à nossa frente.
O Brasil tem um programa ambicioso de exploração de petróleo. Ele está no alvo do Greenpeace?
Como já disse, nunca antecipamos nossas ações. O que posso dizer é que atuamos em escala global, para desencorajar governos de investir em energia fóssil e poluidora. O Brasil tem a oportunidade histórica de se converter num líder global no setor da energia renovável. Não tenho dúvida de que já estamos passando de uma economia suja, marrom e fóssil, para uma economia limpa, verde e renovável. Basta ver como os investimentos nesse setor vêm crescendo.
O que forçará a mudança: os imperativos econômicos ou a consciência ambiental fortalecida?
Para muita gente no planeta, já é tarde para reagir... Segundo a Fundação Kofi Annan, 500 mil mortes anuais são causadas por alterações do clima. Em Darfur, a perda da terra levou à falta de comida que, combinadas, levaram ao genocídio. É isso o que se quer? Não há lugar para otimismo e não temos muito tempo para repensar nosso sistema energético, reduzir as emissões de carbono e gerar milhões de empregos numa economia sustentável, que leve em conta a vida das pessoas. É completamente injusto que comunidades pobres sejam hoje as mais penalizadas pelas emissões de carbono dos países ricos. Elas pagam um preço mais alto por isso, mas somos todos afetados.
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'Explorar petróleo no Ártico é criminoso' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU