Por: Caroline | 17 Outubro 2013
Segundo a ONU, 1.500 pessoas morrem por ano no Mediterrâneo, em sua maioria nas costas do norte da África. Vinte mil já morreram afogados no mar nas últimas duas décadas, cerca de 400 nos últimos 15 dias.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada no jornal Página/12, 16-10-2013. A tradução é do Cepat.
As máscaras do bem caem como maquiagem levada pela chuva. Por detrás aparece o horripilante rosto de uma verdade oculta, em papel de presente, de uma longa cultura declamatória. A União Europeia semeia seus valores com a palavra, mas os nega com os fatos. A realidade não resiste muito: segundo cifras da ONU, 1.500 pessoas morrem por ano no Mediterrâneo, em sua maioria nas costas do norte da África. Vinte mil morreram afogadas pelo mar nas últimas décadas, cerca de 400 nos últimos 15 dias. Há uma semana, os ministros do Interior da União Europeia foram incapazes de apontar tanto uma estratégia, como uma resposta humana comum ao drama cotidiano de milhares de pessoas que se lançam ao mar em embarcações improvisadas com destino às costas da Malta ou da Itália.
Falta de ação, racismo galopante, terror à palavra “imigração”, desacordos entre os Estados que compõe a UE, miséria dos países africanos de onde fogem os migrantes em busca de um destino melhor: tudo concorre para fazer do Mediterrâneo o que o presidente de Malta, Joseph Muscat, chamou de “um cemitério”.
Os ditadores da África, que antes esmagavam seus povos ao mesmo tempo em que garantiam ao Velho Continente um rígido controle das fronteiras, foram desaparecendo devido ao impulso da chamada Primavera Árabe, que floresceu na Tunísia, em 2011, e se propagou logo pelo Egito, Síria, Líbia e Jordânia. Muitos a lamentam. O senador de direita, Philippe Marini, presidente da Comissão de Finanças do Senado francês, escreveu em um tweet: “A afluência de refugiados africanos a Lampedusa e, em seguida, para França me faz lamentar o desaparecimento do regime de Muammar Khadafi”. O grande democrata prefere a segurança das fronteiras garantida por pró-ditadores. As costas líbias são, de fato, o ponto mais intricado. Por ali passa uma grande parte dos candidatos à imigração, provenientes dos países do Nordeste Africano (Chifre da África), que é uma das regiões mais pobres do mundo. Trata-se da Somália, Djibouti, Eritreia y Etiópia. Para piorar a situação, tal como ocorre com os centro-americanos que passam através do México para chegar aos Estados Unidos, muitos caem nas garras das redes de traficantes. Há uma rede mafiosa na Líbia que, desde Trípoli, organiza a viagem para Lampedusa em troca de cerca de 1.200 euros. Segundo o Alto Comissariado da ONU para os refugiados, até agora, ao longo deste ano, 32.000 pessoas chegaram às costas italianas ou de Malta. Se o ritmo se mantiver, a afluência pode inclusive igualar, ou superar a de 2012. Frontex, a agência europeia responsável pela cooperação fronteiriça, calcula que cerca de 73.000 pessoas se aventuraram nas fronteiras da União ao longo de 2012.
“Não se pode continuar assim”, disse o primeiro-ministro italiano, Enrico Letta. Porém, tudo segue igual, os dramas se acumulam e aqueles que se encontram em perigo em alto mar nem sequer podem contar plenamente com a solidariedade dos pescadores. Não porque lhes falte vontade, mas, na maioria das vezes, porque na Itália existe uma lei que penaliza quem assiste, ajuda ou acoberta os estrangeiros indocumentados. Dar uma mão a um semelhante é um delito. A Europa naufraga com os náufragos africanos. A União Europeia não tem planos, nem critérios comuns. A única coisa que tira da manga são medidas de repressão preventivas que consistem em distanciar os migrantes. Cecilia Malmström, a comissária europeia responsável pela Segurança, disse, na semana passada, que os membros da UE “devem mostrar-se solidários com os imigrantes e com os países que enfrentam fluxos migratórios crescentes”. Por hora, nem um ou outro. A Europa conta com um dispositivo que logo entrará em vigência, no próximo mês de dezembro. Trata-se do sistema Eurosul, uma rede cuja única utilidade consiste em dividir informações de satélites em tempo real sobre a situação nas fronteiras exteriores. Em suma, um tipo de polícia comunitária. O outro organismo dedicado à gestão de cooperação nas fronteiras exteriores da UE, Frontex, viu seu orçamento cair de 118 milhões de euros para 85. Nos próximos 24 e 25 de outubro, haverá um Conselho Europeu no qual se abordará a questão. Thierry Repentin, o ministro francês de Assuntos europeus, ressaltou que Paris irá propor, nessa reunião, “meios financeiros e técnicos” visto que não “se pode deixar que homens e mulheres morram no mar sem uma resposta coletiva”. As linhas, entretanto, não se movem, ou seja, não haverá uma ação conjunta de expressão. O princípio europeu segundo o qual o primeiro país aonde chega o imigrante deve gerir seu pedido de asilo e lidar com isso, não muda, mesmo sob o peso do drama que a cada semana sacode Lampedusa ou Malta. Não há nenhum dirigente corajoso que ponha sobre a mesa o tema migratório de maneira realista e coletiva. O avanço incapaz de ser freado das extremas direitas populistas paralisa os dirigentes do Velho Continente. Os responsáveis políticos de esquerda e de direita mesclam sutilmente as ideias dos populistas – assim se chamam hoje os fascistas... – até confundir voluntariamente a imigração com a delinquência e o desemprego, e a livre circulação das pessoas com o aumento dos fluxos migratórios.
O último achado da Itália se chama Mare nostrum. É o nome da operação “militar e humanitária” lançada pelo governo: quatro barcos, helicópteros e drones vão controlar os fluxos migratórios no Mediterrâneo, ou seja, reenviar os migrantes ao seu inferno de origem. Aqueles que arriscam suas vidas ao atravessar o Mediterrâneo reforçam os fantasmas dos cidadãos europeus, obcecados com isto que o antropólogo e diretor do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento, Marc Agier, chama de “estrangeiro abstrato”: figura que reúne todos os medos e menosprezos, as culpas e as cargas tóxicas, o racismo comum de cada dia, a xenofobia dos “populistas” e dos próprios Estados que levam décadas elaborando uma espécie de responsável estrangeiro idealizado, culpado do desemprego, da delinquência, da perda de valores próprios, da crise econômica, da deterioração da nação. Suas multinacionais, suas subvenções agrícolas, seus protecionismos continuam, todavia, espoliando o planeta com a mesma indiferença com que, nas belas águas do Mediterrâneo, morrem cada semana dezenas de pessoas que se lançam ao mar, cheias de esperanças, para terminar no suplício ou no fundo do mar. Náufragos da miséria, abandonados pelos mesmos países que os colonizaram ou que, durante décadas e décadas, pactuaram e colaboraram com regimes sub-humanos, corruptos e assassinos de seus próprios povos.
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Europa, inerte frente ao drama imigrante - Instituto Humanitas Unisinos - IHU