25 Setembro 2013
Quando se conseguir fazer uma história das teologias da libertação, talvez será possível captar um pluralismo negado e também entender por que uma dessas teologias subiu ao papado e que efeitos isso trouxe para a Igreja universal.
A análise é Alberto Melloni, historiador da Igreja, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação João XXIII de Ciências Religiosas de Bolonha. O artigo foi publicado no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 22-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No início do século XX, Pio X se convenceu de que uma série de fermentações disseminadas na exegese, na historiografia, na filosofia, na política pertenciam a uma única grande "heresia", à qual deu o nome de Modernismo, e que, contra essa heresia, não era preciso hesitar em mobilizar todas as energias da Igreja, em inventar um sistema de espionagem, em fazer uso da delação e em perseguir o clero culto daquela belle époque. O Papa Sarto não imaginava que aquela decapitação intelectual contribuiria para desarmar a Igreja diante da guerra, dos fascismos, do antissemitismo.
Mas assim foi. E somente no Vaticano II é que se pôde dizer que essa temporada de "terror" teológico (do qual também foi vítima o jovem Joseph Ratzinger, cuja tese de doutorado foi injustamente suspeitada) estava concluída. Do mesmo modo, quando a máquina repressiva da Igreja Católica iniciou, em 1983-1984, a sua campanha contra a "teologia da libertação" latino-americana, ela não se deu conta de que estava unificando sob um único rótulo modos muito diferentes de compreender o sentido da fé cristã em um continente marcado por injustiças profundas.
Ela não imaginava que o desenraizamento violento dessas experiências, incriminadas coletivamente por um ingênuo recurso à análise marxista do mecanismo capitalista, abriria a porta para um evangelismo fundamentalista, que, com o seu devastador crescimento, impôs à agenda dos melhores bispos do continente aquela ideia de pobreza, de vida cristã, de ministério que hoje faz o consenso do Papa Francisco em escala planetária.
Agora que Gustavo Gutiérrez – o decano dos teólogos da libertação, forçado a viver exilado para se proteger dos inimigos que ele tinha dentro e fora da Igreja – é recebido pelo Papa Francisco, é mais fácil decifrar esse equívoco dramático. Mas, nos últimos 50 anos, não foi assim.
O episcopado latino-americano tinha sido protagonista do Vaticano II, também pela sua experiência de trabalho colegial. Os seus expoentes tinham captado a profecia roncalliana sobre a "Igreja dos pobres", o parágrafo da Lumen gentium que fixa na pobreza de Cristo a medida da pobreza da Igreja, e muitos tinham aderido àquele "Pacto das Catacumbas", assinado antes do fim do Concílio, que viu alguns bispos prometerem uma pobreza de vida que hoje todos chamam de "estilo Bergoglio". Depois do Concílio, eles tiveram uma assembleia plenária em Medellín: e nesse seu "concílio" de 1968, comprometeram a Igreja a ouvir "o surdo clamor dos pobres".
Ir "rumo a uma teologia da libertação" torna-se a linha do episcopado e se concretizaria na escolha da Igreja de ver os pobres não como indivíduos miseráveis, mas como um sujeito histórico unitário. Uma geração de estudiosos e religiosos militantes reflete sobre isso: o peruano Gutiérrez é quem tem uma visão teológica mais profunda e uma produção mais intensa, até aquele Bere al proprio pozzo (Ed. Queriniana, 1984; Beber no seu próprio poço, Vozes), a partir do qual surgiria a primeira tomada de posição do ex-Santo Ofício. Outras obras também tiveram muito êxito: o livro de Leonardo Boff sobre Jesus Cristo Libertador de 1972 (Ed. Vozes) e o de Hugo Assmann, Opressão-libertação de 1971.
Enquanto isso, em 1975, a experiência das comunidades de base de leitura popular da Bíblia aflora em todo seu frescor no Vangelo a Solentiname (Ed. Cittadella, 1976-1978) de Ernesto Cardenal, o resistente torturado pelos capangas de Somoza na Nicarágua, exilado e ministro do governo sandinista censurado por Wojtyla debaixo da escada do avião durante a visita a Manágua em 1983.
Essa opção teológica, para a qual a Companhia de Jesus, da qual o geral é Pedro Arrupe, atua como pioneira, vai correr por muitos caminhos: reduções sociológicas, adoções do léxico marxista, orientação revolucionária, reflexões espirituais e exegéticas, cautelas e mediações que já se assomam no documento aprovado pela posterior grande assembleia plenária dos bispos, realizada em Puebla, em 1979. A promoção de bispos politicamente conservadores leva Roma a ler como um desvio marxista esse conjunto de esforços e a premiar quem ideologiza o debate.
Uma campanha repressiva, anunciada por uma entrevista com Ratzinger publicada na revista 30 Giorni, atravessa assim, no início dos anos 1980, países devastados pelo perverso domínio das ditaduras e dos esquadrões da morte. Por isso, permanece como renegado o martírio de bispos como Dom Angelelli, morto em um "acidente" na Argentina em 1976, ou o do arcebispo Romero em El Salvador, assassinado na consagração durante a missa em 1980; torna-se teologicamente invisível o martírio de milhares de católicos vítimas repressão; a luta armada, à qual Paulo VI tinha dado crédito e aval evocando a doutrina do tiranicídio lícito na encíclica Populorum Progressio, e uma radicalização da militância revolucionária fazem o resto.
Como mostrou um belo ensaio de Silvia Scatena, publicado na coleção Le Bussole de Carocci (La teologia della liberazione in America Latina), a condenação de Roma amadurece entre ingenuidades e manobras muito obscuras, e, acima de tudo, se sincroniza perigosamente com as políticas do governo Reagan na América Central e do Sul: e, no fim, impõe aquela linguagem simplista que vê apenas uma única teologia onde há muitas e uma única condenação para puni-las.
Cria-se, assim, uma linguagem da qual todos fomos testemunhas no dia 13 de março de 2013: quem queria elogiar o novo papa dizia, como escreveram tantos jornais, que Bergoglio tinha sido "avesso à teologia da libertação". Quando, ao contrário, ele tinha sido, seja como jesuíta, seja como bispo, um vivaz antagonista de "uma" corrente dessa teologia – convencida de que a politização da Igreja à esquerda, em apoio a reivindicações pró-soviéticas, era necessária, assim como tinha sido a politização à direita em favor dos militares nas décadas anteriores.
Mas de outra teologia da libertação, a de Lucio Gera, que vê na fé popular a alavanca de emancipação dos pobres e a chave de uma própria reforma da Igreja, Bergoglio tinha sido até mesmo filho.
Quando se conseguir fazer uma história das teologias da libertação, talvez será possível captar um pluralismo negado e também entender por que uma dessas teologias subiu ao papado e com que efeitos para a Igreja universal.
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Muitas teologias da libertação: agora, uma delas subiu ao papado. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU