24 Setembro 2013
"Vinte mulheres catadoras de Porto Alegre do bairro Farrapos, na região da entrada da cidade, no entorno da arena do Grêmio, se organizaram a fim de formarem um coletivo de trabalho para a reciclagem de resíduos sólidos. Conseguiram alguém que as ajudasse a construir uma pessoa jurídica. Registraram o estatuto no cartório especializado. Foram até o prédio conhecido como “chocolatão”, onde funciona a delegacia federal da fazenda e conseguiram ali o número do CNPJ para poderem comprar e vender como coletivo de trabalho em reciclagem", narra Antonio Cechin, irmão marista e militante social.
Eis o artigo.
Vinte mulheres catadoras de Porto Alegre do bairro Farrapos, na região da entrada da cidade, no entorno da arena do Grêmio, se organizaram a fim de formarem um coletivo de trabalho para a reciclagem de resíduos sólidos. Conseguiram alguém que as ajudasse a construir uma pessoa jurídica. Registraram o estatuto no cartório especializado. Foram até o prédio conhecido como “chocolatão”, onde funciona a delegacia federal da fazenda e conseguiram ali o número do CNPJ para poderem comprar e vender como coletivo de trabalho em reciclagem.
À entidade que criaram, exclusivamente de mulheres, denominaram “Associação Comunitária de Mulheres na Luta” com o nome fantasia de “Anitas”.
Estranho o nome?... Pois foi exatamente a primeira pergunta que lhes fizemos, quando fomos procurados para que as socorrêssemos no afã de descobrir um lugar em que as 20 pudessem trabalhar juntas.
Tentaram sozinhas, em mutirão só de mulheres, arranjar um lugar num descampado, atrás de um barranco, a fim de começar a recolher resíduos sólidos para todo tipo de reciclagem. Poderiam ser restos de construção, resíduos eletro-eletrônicos, tais como bingos jogados em containers, papéis e papelões de lojas, óleo queimado de cozinha para fabricar sabão caseiro, etc. etc.
Depois de devidamente limpo o local e tendo começado a coleta seletiva dos materiais, aparece um machão que, na maior cara de pau, lhes atira em rosto: “este terreno é meu. Muito obrigado pela limpeza e preparação que me fizeram”. Tentaram negociar, cobrar alguma coisa, levantar os materiais do local. Foi tudo inútil. Agora sobrava apenas um último recurso: procurar gente que tinha certa prática em ocupações de elefantes brancos.
Dizem-se “vacinadas contra todo e qualquer trabalho escravo”. Por isso, sabendo que uma mulher de nome Anita foi considerada uma grande guerreira, elas entre si, passaram todas a se tratar pelo nome de Anitas. A mulher-referência foi a esposa do mercenário farroupilha, de nacionalidade italiana, que se chamava Giuseppe Garibáldi, casado com mulher brasileira do vizinho estado de Santa Catarina, de nome Anita. O casal, depois de pelejar no exército farroupilha, foi para a Itália lutar para a unificação daquela península e se tornaram heróis na tomada das terras papais, com a solene entrada dos exércitos italianos em Porta Pia.
Em sua maioria, as vinte Anitas já trabalharam como catadoras em diversos galpões de reciclagem que existem na região em que vivem. Nada menos do que sete unidades de triagem ao longo da avenida Voluntários da Pátria em toda sua extensão. Rua que inicia no viaduto da igreja da Conceição, no centro de Porto Alegre e termina na atual arena do Grêmio Futebol Clube.
Nos coletivos por que passaram, sempre se sentiram logradas e exploradas, vítimas que foram daquilo que consideram trabalho escravo, aonde pobre explora gente pobre. Sempre algum homem mais forte, um capitão de mato, ou então uma família que domina a Unidade de Triagem com mão de ferro e comando perpétuo. Os opressores ficam com a parte maior do dinheiro e para os oprimidos que dão duro mesmo, uma merreca.
Gente pobre, dizem as Anitas, se escolher trabalho coletivo, tem que exigir sempre que seja trabalho em mutirão, onde todo mundo pega junto, em todas as pontas. Descontadas as despesas como água e luz, cordas de enfardar, etc. todo o dinheiro restante deve ser partilhado igualitariamente entre todos. Nada de duas categorias: administrador e trabalhadores, ou melhor, segundo a ideologia capitalista, patrão e empregados. Todos, numa unidade de triagem, são vítimas da loteria da vida que os fez nascer em meio à pobreza. “Na desgraça, diz a sabedoria popular, a gente se une!”
Nós que acolhemos as duas dezenas de catadoras, entre surpresos e maravilhados com uma presença de Deus assim manifesta nas Anitas, antes de, com elas começar a trabalhar como assessores, tivemos que concordar com essas valentes guerreiras, em gênero, número e grau. Tivemos mais uma prova do dito do Nazareno, Filho de Deus, quando exclamou: “Meu Pai trabalha sempre!” Antes que chegássemos junto a elas, o Pai já as havia trabalhado. O argumento que as uniu foi o seu grito de independência e de emancipação feminina. Não há pior coisa nesse mundão de Deus do que ver pobre sendo explorado por pobre.
Perscrutando a cultura popular em nosso Rio Grande do Sul, achamos que uma das joias mais preciosas da enculturação cristã, em nossa terra, é a instituição do mutirão. Exemplo típico do que entendem por mutirão nos foi dado pelo grupo das Anitas quando exemplificaram: “em nossas cidades interioranas, especialmente na roça, quando algum vizinho fica doente e tem que se recolher a algum hospital em busca de cura ou cirurgia meticulosa que exige longa convalescença, sem o mínimo de possibilidades para tocar a roça da família, os vizinhos todos se unem e em fins de semana, ou em dias especiais, atacam juntos o trabalho da lavoura, de maneira totalmente gratuita. A isso é que chamam de mutirão que, em geral termina numa refeição alegre e festiva, geralmente um churrasco ou um galeto.
Lá onde eu morava, disse uma, a gente não dizia mutirão, mas pixuru. Outra logo disse, nós falávamos em pexirão. Se formos aos dicionários ou ao computador, encontraremos quase duas dezenas de corruptelas do mesmo vocábulo, segundo a pronúncia que está em uso na correspondente região do Rio Grande do Sul.
Consultamos o maior especialista em Povo Guarani Missioneiro da atualidade: o padre jesuíta Bartolomeu Melià que, lá de Assunción, no Paraguai, nos respondeu através do seguinte e-mail:
Potirõ
“Estimado Irmão Cechin
Não quero deixar para mais adiante as respostas às perguntas apresentadas por você a Santiago Caballero.
No momento temos um livro importante que pode ser consultado para estes casos: Antonio Caballos. Etnografia guarani no Tesouro de Ruiz de Montoya, Asunción: CEPAG, 2013. Valha como informação e propaganda.
Envio-lhe o capítulo Potirõ, em Bartolomeu Melià e Dominique Temple, O dom, a vingança e outras formas de economia guarani, Asunción, CEPAG, 2004.
As derivações fonéticas da palavra devem ser buscadas em cada dialeto dos falados no Brasil. No Paraguai, a palavra que substituiu potirõ foi a quéchua min’ka ou minga, forma de trabalho comunitário análogo.
Tupã mba’e e Ava mba’e significam respectivamente: Coisa de Deus e coisa da pessoa que, em guarani é o guarani, o homem guarani; não propriamente o trabalho.
O Tupã mba’e sendo a coisa de Deus, se estendia a recursos mais tipicamente comunitários e também àqueles cujos excedentes eram destinados à comercialização com dinheiro ou espécie, nos centros espanhóis como Santa Fé e Buenos Aires na Argentina: erva mate, gado, algodão e tecidos, tabaco, couros, e alguns estoques (chacras) grandes para sustento comunitário: “merenda das crianças”, gasto para viúvas e residentes do koty guasu, a “grande habitação”, espécie de casa de acolhimento.
O Ava mba’e, que eu saiba, nunca deixou de praticar-se, ainda que de fato estivesse sempre muito bem controlado, a fim de que os guaranis não se descuidassem. Caça e pesca eram Ava mba’e. O padre Josep Peramàs, Platón e os Guaranis, Asunção: CEPAG, 2004, tem um lindo capítulo, o 8º: A comunidade de bens, aonde tudo isto está bem explicado por um testemunho ocular e de longa vida missioneira.
Creio que grosso modo está respondido o que solicitou. Foi um prazer tirar um tempinho ao longo dos trabalhos sobre o mundo guarani que estou realizando e no qual me encontro um tanto atrasado.
Che py’a ite guive (em português: desde o fundo de minha alma)
Bartolomeu Melià, s.j.”
Sobre Tupãbae e Abãbae, recebemos ainda, por e-mail, o seguinte esclarecimento do amigo José Roberto que é pesquisador missioneiro:
“Efetivamente ainda hoje os índios e em geral o povo missioneiro atual, não conseguem progredir em suas ações individualmente. O mutirão é elemento fundamental no método de desenvolvimento das atividades.
Lembro de um índio que disse para mim que nós os "brancos" "europeizados" pensamos nas coisas como negócio, que é o centro da existência, diferentemente do povo nativo cuja essência é o ócio, ou seja: se trabalha para ter uma melhor condição de descanso. No mundo branco se trabalha para guardar e reter mais bens ou dinheiro, no mundo nativo se trabalha para ter uma melhor tranquilidade. Veja que ai está o fundo de tudo – que a nossa cabeça branca não quer entender. Não há sentido de trabalhar para "eu" ter, mas o grupo que é o elemento fundamental de todas as ações. Nunca, nunca esquecer que os Guaranis viviam no Neolítico onde o grupo é o que importa e não o ser individual.
O Mutirão é a fórmula espiritual e mística de "fazer", de tudo; não há sentido no ato individual... no coletivo eu sou e no individual eu tenho. O centro do mundo guarani é "Ser".
Também não podemos deixar de assinalar que o papa Francisco, como exímio catequista da libertação que é, tão logo assumiu o pontificado, em março deste ano, já se referiu como sendo uma das metas principais da evangelização a enculturação da fé cristã. No Brasil por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, várias vezes se referiu à necessidade de uma cultura do encontro.
À luz desses esclarecimentos, e à luz da Catequese Libertadora, modelo latino-americano de Igreja: as Anitas, prometem estar a caminho de autênticas três categorias de Comunidades ao mesmo tempo: Ecológicas de Base, Ecumênicas de Base e Eclesiais de Base (CEEEB’s).
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O mutirão do povo guarani-missioneiro. Um sinal dos tempos, desde o povo-raiz, da enculturação da fé cristã no RS - Instituto Humanitas Unisinos - IHU