Por: Cesar Sanson | 19 Setembro 2013
Jaci Paraná é o espelho da complexidade e abrangência dos impactos gerados pelas usinas do Complexo Madeira. Nos últimos anos, este distrito de Porto Velho, capital do estado de Rondônia, sofreu com a chegada da Usina Hidrelétrica Jirau, do reservatório da Usina Hidrelétrica Santo Antônio, além do enorme inchaço populacional.
A reportagem é de João Marcos Rodrigues Dutra e publicado pelo portal do MAB, 18-09-2013. Foto: MAB.
O contingente de pessoas, no seu período de pico, atingiu a marca de aproximadamente 20 mil trabalhadores ligados diretamente aos empreendimentos. Antes, a sede do distrito abrigava cerca de 3 mil habitantes.
A maior parte dos trabalhadores que vieram no fluxo migratório criado pelos empreendimentos em Jaci Paraná são operários da UHE Jirau. Mas muitos, entre eles, vieram com a esperança de conseguir estabelecer alguma atividade de renda em meio ao “boom” das usinas. E logo Jaci se tornou conhecida não somente pela maior revolta operária que o país havia vivenciado na última década, na qual 22 mil trabalhadores se rebelaram no canteiro de obras de Jirau, como também pelo rápido crescimento do tráfico e consumo de drogas como o crack, crimes violentos contra mulheres e crianças, homicídios, estupros e chacinas.
Em agosto, o Estado de Rondônia parou diante da notícia da menina de 9 anos que foi estuprada e queimada com álcool em Jaci Paraná por um funcionário da Camargo Corrêa, como outros muitos jovens da região que os pais perderam para o crime e para a prostituição.
A região não foi preparada previamente às obras, todos os passos no processo de licenciamento das usinas do Madeira foram dados aos atropelos e ajudaram a derrubar dois presidentes do IBAMA. A pressa para as licenças de instalação foi a mesma para a licença de operação da UHE Santo Antônio e tem sido igual no caso da UHE Jirau.
Em decorrência desse processo, não houve o cumprimento dos programas do Plano Básico Ambiental e dos acordos que balizam a aplicação das compensações sociais e muito do pouco que foi feito apresentam irregularidades. Exemplo disso é a Unidade de Pronto Atendimento de Jaci Paraná que, até hoje, não está concluída e corre o risco de não funcionar com seu término, pois foi construída em local irregular. Também pode ser citada a estação de tratamento de água, que está concluída, mas não está funcionando. Ambos são de responsabilidade da Energia Sustentável do Brasil (Jirau).
Segundo o Relatório Nacional para o Direito ao Meio Ambiente, da Plataforma Dhesca, realizado em abril de 2011, estas diversas violações de direitos dos atingidos pelas barragens do Madeira geraram, entre outras consequências, “o aumento de homicídios dolosos”, que“cresceu 44% em Porto Velho entre 2008 e 2010, e “a quantidade de crianças e adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual”, que subiu 18%. Em Porto Velho, entre 2007 e 2010, “o número de estupros cresceu 208%" e “a migração para o município de Porto Velho foi 22% superior ao previsto no Estudo de Impacto Ambiental.”
Mesmo considerando a ausência ou erros de implementação das compensações sociais, estas foram subdimensionadas e comprometidas por consecutivas alterações dos empreendimentos, como a mudança do eixo de barramento da UHE Jirau em 9,2 quilômetros, sem a execução de novos estudos e audiências públicas.
A licença prévia concedida pelo Instituto Brasileiro de Recursos do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) autorizava a construção do complexo energético na localidade conhecida como Jirau, e não em Cachoeira do Inferno, como anunciou o consórcio Enersus após vencer o leilão. A invenção da Licença de Instalação Parcial, em 2009, também foi uma proeza do consórcio dominado pela Suez-Tractebel, Energia Sustentável do Brasil.
Se a preocupação com os problemas ambientais foi e tem sido pequena, com as pessoas é mínima. Os moradores do distrito têm sofrido com a elevação do lençol freático, que causou a contaminação de praticamente todos os poços de água em Jaci Paraná. As águas do lençol freático entraram em contato direto com as fossas, comprometem as áreas de agricultura e estão convertendo diversos outros locais em áreas de risco.
Há casos em que as águas do reservatório atingem áreas florestadas, principalmente através dos igarapés, lotes em que residem muitas famílias, sendo que em alguns deles as águas chegam próximo às casas. Além das graves conseqüências da elevação do lençol freático, o consórcio Santo Antônio Energia (SAE) deseja aumentar em 80 centímetros a cota do espelho d’água do reservatório da hidrelétrica.
Conforme o parecer 40/2012 da Nota Técnica nº 5493/2013, na qual o IBAMA expõe sua avaliação sobre o cumprimento de Pareceres para a complementação do Projeto Básico Complementar Alternativo para o processo da solicitação de aumento da cota, a realização de consultas públicas nas comunidades atingidas não foi atendida.
Enquanto a própria existência do procedimento é inexplicável, uma vez que é necessária a realização do estudo sobre os impactos antes de qualquer Plano Básico Ambiental, o IBAMA conclui que as solicitações, que foram desrespeitadas, não comprometem a análise da viabilidade ambiental do empreendimento, e que oficinas para apresentar a proposta e os impactos podem ser realizadas posteriormente.
E, como esperado, os grandes meios de comunicação deram um grande destaque a uma briguinha entre os donos dos consórcios Santo Antônio Energia e Jirau, pois a gananciosa proposta de aumento da cota de Santo Antônio resultaria na diminuição a capacidade de geração em Jirau, que fica a montante no Madeira. A discussão acabou quando a Santo Antônio aceitou ceder 24 MW de sua geração para Jirau.
Neste impasse, ficou evidente a postura do Estado como ferramenta à serviço dos interesses das empresas do setor. Não houve nenhuma preocupação com os atingidos, mas sim com a conciliação entre Santo Antônio e Jirau para a divisão do lucro, como afirmou, no início de julho, o então diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL):“Fizemos essa configuração porque ela equaliza a frustração de ambas as usinas. Dado que a ampliação máxima das duas é fisicamente impossível, nenhuma das duas terá tudo que quer, mas as duas terão o máximo possível”.
No entanto, embora a posição do ex-diretor da Agência seja a de ajustar tudo o que for possível para assegurar os interesses das empresas, o processo que o consórcio Santo Antônio Energia está tentando impor têm gerado estranheza até mesmo a outros profissionais da ANEEL. Segundo a nota Técnica nº 531/2012 da SGH/ANEEL, assinada pelo Superintendente de Gestão e Estudos Hidroenergéticos, Odenir José dos Reis, “é, portanto, no mínimo inusitado o entendimento diverso que a SAE procura fazer crer em sua petição, chegando, inclusive, ao ponto de submeter o rito decisório independente da autarquia ambiental ao crivo desta Agência, fato esse completamente desarrazoado e destoante da realidade”.
Surpreende ainda mais que o consórcio se vala de um “conceito novo e inexistente no regramento vigente”, com o argumento que o IBAMA teria concedido a “anuência prévia” para que a ANEEL aceite o PBCA. No entanto, a autarquia jamais assumiu essa posição. “Ademais, entre outras considerações, no bojo da argumentação da ora proferida pela concessionária, chama a atenção importante omissão do termo que pode distorcer o entendimento sobre o completo posicionamento do IBAMA exarado no Oficio 480/2012.”
Apesar dessas disputas, a população de Jaci sabe que apenas com mobilização seus direitos serão garantidos. Após uma manifestação de aproximadamente 2 mil pessoas na BR 364, no dia 26 de julho, autoridades aceitaram se reunir com os atingidos, em Audiência Pública Popular. Apesar disso, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) ainda aguarda uma resposta à solicitação encaminhada à Secretaria Geral da Presidência da República (SG/PR), para que os consórcios Santo Antônio Energia e Energia Sustentável do Brasil (ESBR) se reúnam com os atingidos para prestar esclarecimentos.
Não permitiremos que as empresas se neguem a dialogar com as famílias sobre a execução das condicionantes e compensações, enquanto Santo Antônio planeja aumentar a cota de seu reservatório, ameaçando deslocar milhares de famílias do distrito que mais sofre com as usinas do Madeira, além de afundar a pequena parte das compensações realizadas.
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Jaci Paraná (RO) espelho da abrangência dos impactos gerados pelas usinas do Complexo Madeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU