Por: Cesar Sanson | 05 Agosto 2013
Nos últimos dois meses, o Brasil foi apresentado à sua própria multidão. Ela emergiu, tornou-se um sujeito coletivo e intrigante. A dificuldade de lidar com esse novo elemento é tamanha que governantes, movimentos sociais, fóruns e outros canais de representação convencionais estão sendo obrigados a se repensarem.
O mesmo acontece com a mídia. É preciso aprender a lidar com essa nova composição, essa aparente falta de organicidade, como explica o cientista político Giuseppe Cocco, também professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ) e militante da Universidade Nômade.
“A mídia da multidão é a multidão de mídias”, ele diz ele em entrevista à Camila Nobrega do sítio Canal Ibase, 02-08-2013.
Eis a entrevista.
Uma das principais críticas aos protestos nas ruas é à falta de liderança, de representação. O movimento se apresenta, mas não se representa. Você vê esse fato como negativo?
De forma alguma. Há uma imposição de fora para que haja uma unidade. Mas ela simplesmente não há. O que aconteceu foi uma eclosão das manifestações por todo o Brasil, e o Rio de Janeiro apareceu como um foco de continuidade. Aqui está havendo manifestações, mesmo que pequenas, quase todos os dias. Elas ocorrem, no entanto, sem centralidade. Por isso surge uma crítica ao movimento. Diz-se que ele não tem liderança, organicidade e objetivo definido, como se isso tirasse a legitimidade do processo das ruas. Essa negação se transforma, então, em uma incapacidade de entender esse movimento. É preciso perceber que a potência dele está no fato de não haver esses objetivos definidos, essa organicidade clara. E isso não significa dizer que não há objetivos, nem organização. Significa que eles não se separam do próprio movimento. Movimentos sociais e partidos tentam ocupar esse lugar da representação, sem sucesso, porque esses objetivos se constroem ali, nas ruas.
Como Antônio Negri, você trabalha com o conceito de multidão. É disso que estamos falando, da voz dessa multidão?
A multidão é a ponta para a possibilidade de transformações sociais, a partir de uma fragmentação. No mundo do trabalho, por exemplo, o sindicalismo operário representou uma totalidade durante algum tempo. O mesmo ocorreu com o movimento estudantil e com outras organizações do comando das lutas e das resistências. Mas há uma outra dimensão desses fragmentos atualmente. O conceito de multidão dá conta dessa nova configuração sociológica. E não estamos falando de multidão como o rebanho que o papa reuniu na Jornada da Juventude. Essa multidão de que estou falando é um conceito sociológico inseparável do seu fazer ser político, do seu constituir-se. A multidão constitui-se nas ruas, ela opera com uma série de singularidades, de reivindicações plurais que cooperam entre si.
Esse conceito também altera a configuração política, o sistema de representação e os partidos em si. Pensando no Rio de Janeiro, é possível fazer alguma análise mais específica?
O Rio de Janeiro tem uma configuração própria. Pouco mais de seis meses após as eleições municipais, o movimento ganha aqui uma força que não teve em nenhum outro lugar. É preciso lembrar que a candidatura do Marcelo Freixo, sem recurso algum, fez uma votação expressiva que foi muito além da base eleitoral do próprio PSOL. Por outro lado, essa candidatura foi arrasada por uma máquina que forma a coalização desse governo. O que se diz é que a candidatura Freixo alcançou parte da elite, mas que a parcela mais pobre vota com o governo. Ok, isso é verdade, mas é uma leitura idiota da situação. No contexto atual, quando se olha para uma região e se constata votação acima de 80% para determinado candidato, como houve com o Paes, é difícil de acreditar que ali há democracia. O que há é uma máquina eleitoral que manipula a população em vários sentidos. Querer transformar essa ideia de que os pobres votam com o governo por escolha é inaceitável.
Nesse caso, trata-se de uma máquina eleitoral específica, que nos leva a pensar no próprio funcionamento do PMDB dentro do sistema político brasileiro…
Sim, há uma crítica específica nesse movimento que é a negação dessa forma de poder que o PMDB representa. Cabral e Paes são exatamente isso e no Rio o movimento tem grande caráter contra o PMDB. O governo Dilma ainda não se apropriou desse discurso, Tarso Genro (governador do Rio Grande do Sul) foi quem começou a falar nisso mais claramente (o governador afirmou, no início desta semana, que o partido é “mais problema do que solução”). O PMDB representa um poder que vai construindo formas de se manter. Não representa nada, a não ser a si mesmo. Assim os partidos vão funcionando de formas não representativas. O mesmo ocorre com correntes dentro do PT que defendem remoções do Horto, ou representantes do PCdoB que apoiam ruralistas. São constradições que apenas apontam para a tentativa de manter-se no poder.
A mídia tradicional, representada nos monopólios, é outra forma de representação que está sendo questionada. Quais os caminhos para uma mudança neste campo?
A Midia Ninja se tornou foco desta discussão, a partir de uma cobertura independente que tomou proporções imensas. Foi muito inteligente colocar o streaming a serviço da cobertura dessas manifestações. Mas é importante entender que há uma máquina por trás, baseada no Fora do Eixo, um movimento de comunicação antigo que tem seus patrocínios. Acho que o trabalho deles no Midia Ninja, junto com todos os colaboradores têm de ser reconhecidos. Mas há características a serem questionadas, até para que haja de fato uma discussão qualificada sobre a democratização dos meios de comunicação no país. Ao fazer uma entrevista com o Paes, eles não foram includentes, não chamaram o movimento. Fazer uma exclusiva é se basear no princípio da exclusão. É preciso pensar a colaboração, a coletividade. A mídia da multidão é uma multidão de mídias, é a pluralidade, e não só uma. É a descentralidade. É isso que todo o movimento está buscando.
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“A mídia da multidão é uma multidão de mídias” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU