30 Julho 2013
Marcelo Godoy - O Estado de S. Paulo
Depois de entrevistas e declarações marcantes do papa Francisco nos últimos dias da Jornada Mundial da Juventude, o Estado convidou dois religiosos para discutir alguns dos pontos aboradados pelo pontífice. Com visões diferentes, o teólogo e historiador progressista, José Oscar Beozzo, e Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, ligado ao movimento Comunhão e Libertação, respondem a cinco questões relacionadas às mudanças propostas pelo pontífice.
A reportagem é de Marcelo Godoy e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 30-07-2013.
Eis as entrevistas.
É possível dizer para onde vai o papa Francisco e a Igreja?
Beozzo: Ele disse que a Igreja deve ir em direção aos pobres, aos que sofrem, aos excluídos, sair da acomodação e ser uma igreja missionária, reformando-se internamente e tornando-se presença positiva no mundo nas questões que afligem a humanidade: a fome, a crise ambiental, as guerras e a paz, os refugiados e migrantes. Pessoalmente ele busca viver modestamente e de maneira pobre. Pediu o mesmo aos cardeais, bispos e padres.
Borba: A Igreja vem fazendo um caminho de renovação a partir de seus fundamentos. João Paulo II, num longo pontificado, trabalhou isso de muitas maneiras diferentes e isso talvez dificulte um pouco a percepção de um foco preciso. Bento XVI trabalhou claramente na integração entre fé e razão, mas seu foco era a compreensão da bondade e do amor de Deus num mundo onde tanto a noção religiosa de Mistério como a noção humana de amor gratuito e desinteressado se perderam. Este era um passo necessário para a Igreja, mas não suficiente. Era necessário que esta compreensão atingisse a prática pastoral – e é isso que Francisco está fazendo brilhantemente. Acredito sinceramente que estamos indo para um tempo em que a Igreja voltará a ser explicitamente aquilo que se espera que ela seja, mas isso acontecerá como um aprofundamento da tradição cristã e do mandamento do amor em toda a sua integralidade – e não como ruptura ou “correção da fé”.
Se a doutrina não muda (continuam vetos ao aborto, ordenação de mulheres, casamento gay), a pastoral muda. Para onde essa forma pastoral de lidar com os dramas e as chagas (o divórcio como "piaga", conforme Bento XVI) pode levar a igreja?
Beozzo: João XXIII no seu discurso de abertura do Concílio Vaticano, disse que aquele devia ser um Concílio pastoral e que mesmo os pontos doutrinais deviam ser tratados pastoralmente. A doutrina, dizia ele, deve ser respeitada, mas deve ser aprofundada e exposta “de maneira a responder às exigências do nosso tempo”. Distinguia a substância da doutrina de sua formulação e enfatizava a necessidade desse renovado esforço na sua apresentação. E concluía: “Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral” (Gaudet Mater Ecclesia, VI, 5)
Borba: Em primeiro lugar temos que entender que a mudança necessária não é do magistério, mas sim do coração dos católicos. Quando Bento XVI disse que o divórcio era uma chaga, queria dizer que os divorciados já estavam por demais feridos e que a Igreja tinha a obrigação de acolhê-los, independentemente das questões doutrinais. Ninguém entendeu isso porque muitos católicos estavam mais preocupados em atacar ou defender o papa do que em acolher o chamado à conversão e inclusive divulgar as belas iniciativas neste sentido que já existem na Igreja. Na sua entrevista no retorno à Itália, o papa deixou claro que a Igreja é chamada também a acolher os homossexuais e que isso já está no Catecismo da Igreja, mas novamente as questões ideológicas se sobrepõem ao mandamento do amor. O grande desafio é a liberdade absoluta dos que amam e se sabem amados, a Igreja poderá realmente se tornar uma luz para a sociedade desumanizada do nosso tempo se os católicos recuperarem esta liberdade. Ficará mais enclausurada em si se o medo do outro levar os cristãos a perderem sua identidade ou a compreenderem como uma armadura que os separa do mundo.
Na pastoral, o que está no centro não são princípios ou doutrinas, mas a pessoa, com suas necessidades, dúvidas, perplexidades, dor e potencialidades. No seu discurso aos bispos que integram a direção do CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano), o Papa retomou o início da Constituição Pastoral Gaudium et Spes (gs) do Vaticano II, para exprimir o que queria dizer. Se não me engano, foi esta a única citação literal do Concílio nos seus discursos aqui no Brasil e daí a relevância de sua escolha: As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e atribulados, são também alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Cristo (cf. GS, 1).
Outra dimensão da pastoral é a centralidade da misericórdia e, nisto, o Papa Francisco parece inspirar-se diretamente das palavras de João XXIII neste mesmo discurso de abertura do Vaticano II: “A Igreja sempre se opôs a estes erros [modernos]; muitas vezes até os condenou, com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações (GME VII, 2).
Beozzo, o exemplo de potencialidade de mudança da pastoral seria Oscar Romero?
Beozzo: Oscar Romero é um claro exemplo de como as necessidades pastorais de um país mergulhado numa guerra civil implacável, levou-o a uma profunda conversão e a atitudes proféticas em defesa dos pequenos e da paz, o que levou ao seu assassinato. Entre nós, Dom Pedro Casaldáliga, que vinha da experiência de acompanhamento dos Cursilhos de Cristandade, deixou-se comover pelas situações de injustiça e marginalização que o latifúndio impunha aos posseiros, indígenas e ribeirinhos da região amazônica. Tornou-se um profeta corajoso e destemido, a serviço da dignidade e redenção do seu povo na Prelazia de São Félix do Araguaia.
Borba, você podia retomar o tema dos liberais e os discursos recentes ao Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam)? Apesar de usar a pastoral, o papa deixa uma porta fechada aos liberais?
Borba: O papa Francisco tem uma posição clara em relação às demandas que ele associa aos “católicos iluminados”, que julgam a Igreja apenas com os olhos da cultura moderna e não da tradição cristã. No discurso do Celam ele deixou claro que estas demandas não atingem o cerne do problema, que é a ´presença do amor de Deus no mundo, por meio do testemunho dos cristãos. As propostas teológicas do pensamento burguês liberal tentaram propor uma renovação da Igreja usando critérios da mentalidade moderna e tiveram grande influência na América Latina, mesmo entre setores comprometidos com a opção pelos pobres. Mas é impossível renovar a Igreja valendo-se de uma mentalidade que não reconhece categorias como doação, solidariedade, gratuidade, transcendência, surpresa (porque em nosso realismo cético acreditamos que nenhuma novidade possa nos surpreender). Nos tornamos presas do eficientismo, das disputadas de poder, da afirmação da autonomia individual, etc. Por isso as demandas e questionamentos que a sociedade contemporânea faz à Igreja refletem problemas humanos que devem ser enfrentados a partir da experiência do amor e da misericórdia (que é um atributo divino, não uma arrogância disfarçada de bondade) e não da lógica de nossa sociedade.
Bergoglio segue nesse sentido os passos de João XXIII?
Borba: Bergoglio é, entre os sucessores de João XXIII, o mais semelhante a ele – tanto na doçura quanto na firmeza...
Beozzo: Nitidamente, as inspirações de Bergoglio são São Francisco e seu amor ao pobre e de João XXIII na sua busca de uma Igreja renovada, humilde, ecumenicamente aberta, a serviço da paz e das necessidades de toda a humanidade.
O papa se diz normal e pecador. Bergolgio dessacraliza o papado? Ou podemos dizer que ao se mostrar assim ele acaba com o papado como uma monarca absolutista?
Beozzo: Ele dessacraliza o que deve ser dessacralizado no papado, isto é todas as formas de poder, herdadas não de sua missão pastoral, mas do fato de o bispo de Roma ter-se tornado um príncipe e chefe de Estado. Ele parece disposto a acabar com isto. Está se comprometendo também a buscar uma forma de exercício do primado de maneira mais sinodal, associando o colégio dos bispos à sua missão de inspirar e conduzir a Igreja. Este é o sentido da criação da comissão de oito cardeais e das medidas que está tomando para mudar certos aspectos do Sínodo dos Bispos. Insiste o tempo todo na sua condição de bispo de Roma e em falar “de bispo para bispos”, como entre irmãos. Usou estas expressões na sua conversa com os bispos brasileiros e depois com a direção do Celam.
Borba: É curioso, nenhum papa moderno retirou tantas prerrogativas do papado e fez tanta questão de se mostrar humano. Mas, fazendo isso, está “sacralizando” o papado e se tornando uma referência que vai além de qualquer outra liderança de nossa sociedade. A Igreja não é santa porque não é pecadora, mas sim porque nos seus pecados e na sua simplicidade deixa entrever um Mistério e uma Bondade que vai além de qualquer pretensão humana. Ratzinger, com a renúncia, e Bergoglio, com sua simplicidade, levaram o papado a um reconhecimento que seria impensável no passado.
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Religiosos analisam declarações de Francisco sobre mudanças na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU