Por: Jonas | 30 Julho 2013
O que o Papa quis dizer aos fiéis argentinos com sua frase “façam agitação”? O que significa colocar a Igreja Católica na rua? É uma proposta política e social? Com Francisco (foto), qual é o cenário provável da moral sexual e a postura diante do aborto ou da anticoncepção? Como atua a crítica à pobreza? A análise de uma socióloga para além das historietas.
Fonte: http://goo.gl/K4yNk1 |
A pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), a socióloga Verónica Giménez Béliveau, além de trabalhar no Centro de Estudos e Pesquisas Trabalhistas, também atua como professora adjunta do seminário Sociedade e Religião, na Universidade de Buenos Aires, dentro da Faculdade de Ciências Sociais.
A entrevista é de Martín Granovsky, publicada no jornal Página/12, 28-07-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O que o Papa buscou ao pedir “façam agitação” aos jovens argentinos que foram ao Brasil?
Este “façam agitação” está muito ligado ao contexto. Os destinatários diretos não foram apenas os jovens em geral, mas uma maioria realmente jovem. Particularmente, os jovens adultos não estavam presentes no Rio de Janeiro, mas aqueles de 16 a 19 ou 20 anos, muitos deles provenientes de paróquias e especialmente de movimentos. Há a busca de um sujeito, contudo, na Igreja Católica essa busca não é uma invenção de Jorge Bergoglio. João Paulo II criou as jornadas mundiais da juventude em 1984, há quase 30 anos. Depois, durante o papado de Joseph Ratzinger, de certo modo, o eixo mudou e agora Bergoglio retoma a aposta.
Em que consiste a aposta do Papa?
Falar da juventude diante de grupos religiosos é também falar de outras coisas: da continuidade do próprio credo e do futuro no qual se acredita. É como se estivesse dizendo o seguinte: “Se temos juventude, significa que a instituição e as coisas nas quais acreditamos perdurarão no futuro”. Por isso, parece-me uma aposta importante. As crenças e o futuro são chaves para os grupos religiosos e, em geral, para todos os grupos sociais. O Papa aposta na transmissão de conteúdos.
É ele que pretende transmitir os conteúdos ou é para os outros?
Almeja incentivar que outros transmitam, mas colocando-se como figura central e carismática que opera a transmissão. Isto é “façam agitação”. Ainda que a homilia, o discurso aos argentinos da última quinta-feira, tenha outros elementos para observar, eu gostaria de colocar a ênfase na exortação para colocar a Igreja na rua.
É uma ideia nova?
É um velho tema da Igreja Católica. É o velho projeto do catolicismo integral, que não fica fechado na sacristia, mas que sai para conquistar a sociedade. Podem ser os voluntários da Cáritas, que trabalham nas vilas, como os próprios padres “vileiros”, mas também podem ser os grupos que se opõem a projetos de sociedade com os quais não concordam. Por exemplo, a oposição a determinadas leis. Isto ocorreu quando foi discutida a Lei de Saúde Reprodutiva, na cidade de Buenos Aires, em 2000. Tiveram manifestações com os colégios secundários na rua. Os colégios católicos na rua representam a aposta pública em grande escala. Também tiveram grupos ativos opostos à lei de matrimônio igualitário, em 2010, e acontece o mesmo habitualmente com mudanças legislativas sobre o aborto e a anticoncepção.
E se poderia ser acrescentado o debate público do matrimônio civil, nos anos 1880, ou do ensino particular, em 1958.
Por isso. Não simplifiquemos os temas. Discorramos tendo em contra a complexidade. Francisco é consciente de que a Igreja na rua significa sustentar um projeto político. Eu digo no sentido mais amplo: é um projeto de sociedade, de valores, de um determinado modo de organização, de resgate de um modelo de relações no âmbito familiar, do casal e no trabalho... O que está por trás é a busca de maior influência na sociedade. Trata-se de uma Igreja que tem algo para dizer à sociedade e aos partidos políticos e que quer colocar sua mensagem no espaço político e social. Há outras correntes que promulgam um catolicismo mais íntimo, mas historicamente na Argentina triunfou o catolicismo do bispo Antonio Caggiano, o da Ação Católica e da ocupação dos espaços políticos. Bento XVI promovia um catolicismo que reforçava o núcleo duro de pessoas convencidas no interior da Igreja Católica.
E Francisco?
O catolicismo de Francisco se abre, tentando levar esses valores à sociedade. Aí, sim, há uma diferença e, ao mesmo tempo, uma filiação ao catolicismo expansivo de João Paulo II. Claro, no fato de abrir os braços, durante o papado de João Paulo II entraram coisas que acabaram gerando desajustes. Por exemplo, os Legionários de Cristo. Francisco significa uma abertura e retoma uma tradição do Concílio Vaticano II de diálogo com a sociedade e com a modernidade. “Façam agitação” significa abrir, propor novidades, encher as igrejas, sair das igrejas levando sua mensagem...
É um Papa populista, no sentido de que não apenas trabalha dentro da hierarquia da instituição eclesiástica, mas busca se nutrir de poder fora dela?
Há uma tentativa muito clara de construção de legitimidade no campo da juventude. Contudo, não somente aí. No Rio de Janeiro, ele também se referiu aos anciãos e à ideia de que, em geral, as pessoas não são descartáveis. É uma ideia que venho registrando há muito tempo no catolicismo, como discurso contra o consumismo e o capitalismo selvagem. Até onde irá chegar Francisco nisto, eu não sei. E sobre o tema da hierarquia é melhor estabelecer uma precisão. Embora sejam da hierarquia, muitos sacerdotes estarão de acordo com a abertura. Aqueles que possuem trabalho paroquial estão mais ligados ao cotidiano dos católicos. Não é por intercessão do papa Francisco que fazem certas coisas. Antes, eles já as praticavam diariamente. Há sacerdotes que negociam coisas com os fiéis que a doutrina não permite: o uso de preservativos ou a convivência sem o matrimônio consagrado. É uma negociação forte e importante. Há sacerdotes mais conservadores, claro, mas sempre existe uma troca entre o que a Igreja considera a partir de cima e o que os fiéis demandam. Para cada demanda dos fiéis há uma resposta no cotidiano. No caso dos bispos é mais complicado, porque em geral não possuem esta relação cotidiana. Isto sem mencionar países como Brasil, onde se produz uma limpeza a sério do episcopado.
Desde a entronização de João Paulo II, em 1978, até a renúncia de Bento, em 2013, passaram-se 35 anos de limpeza e construção de hierarquias. Voltando ao contraponto, o que até agora Francisco significa em termos de moral sexual?
É um ponto a se levar em conta para avaliar o caráter de Francisco como renovador. No Brasil, para os jovens distribuíam um manual de bioética que abarca uma história do ser humano e apresenta as concepções da Igreja sobre quando a vida começa. Na Europa, a discussão é a eutanásia. Na América Latina, os especialistas em bioética da Igreja e os especialistas seculares estão em concordância sobre o fim da vida, mas há um nó de discussão sobre qual é o começo. É difícil para uma socióloga fazer futurologia, mas parece pouco provável que a moral conservadora sofra transformações. Mais ainda, pode se pensar que Francisco deseja que, em matéria de aborto e anticoncepção, mude o menos possível na América Latina.
De qualquer forma, em nível de estruturas de poder, a Igreja Católica não é o único ator.
Sim, não é apenas um assunto de pressão eclesiástica. Seria um erro enxergar apenas esse lado. Também desempenha um papel a vontade dos dirigentes políticos. Aquilo que imaginam influencia, que é o limite dos laços que acreditam que devem estabelecer e que eles supõem que é um espaço de conquista de vontades. Nessa lógica, algum dirigente político pode supor que estar a favor de retirar a condenação penal do aborto é se colocar contra os católicos. E isso talvez o político presuma sem que nenhum bispo precise dizer. É mais difícil perceber esse fenômeno em Buenos Aires do que nas províncias da Argentina, onde há um catolicismo cultural mais forte do que aquele que se vive nas grandes cidades.
Qual é a influência que pode advir do impacto de Francisco visitando o Brasil?
Se um Papa viaja ao Brasil e junta três milhões de pessoas, alguns políticos podem tomar isto como prova desse argumento de que uma mudança de legislação poderá colocá-los contra os católicos. Então, sim, haverá coisas mais difíceis para concretizar. Entretanto, não será apenas porque Francisco é um conservador, mas pela sobrevivência das formas pelas quais se estruturam as relações que não se baseiam na laicidade do Estado. Isso acontece quando o Estado está permeado de políticos que consideram que a religião deve estar no centro da cena, e falar de religião na Argentina é se referir basicamente à Igreja Católica. Quando foram discutidas as leis de bioética no Congresso, foram convidados, sobretudo, especialistas religiosos. É natural que todos os que tenham algo a dizer participem. No entanto, por que pensar que estes são os primeiros que tem algo a dizer? No final do século XIX e início do século XX, o Estado avançou muito na laicização. Contudo, posteriormente, fez isto com muitíssimo esforço. Inclusive, em relação à lei de divórcio, sancionada e promulgada em 1987. E, ao mesmo tempo, acontece outra coisa: a sociedade experimenta uma secularização, um processo de mais longo alento, que tem a ver com a relação que as pessoas estabelecem com sua religião e com as instituições religiosas.
Custa mais ao Estado ser laico do que à sociedade?
É que a maioria das pessoas continua se definindo como religiosa, mas no momento de tomar determinadas decisões, na esfera mais íntima, a instituição religiosa não conta. Então, há um nó complicado de trabalhar para a Igreja Católica, que tem algo para dizer e que também quer dizer nesta esfera. São processos difíceis de transformar.
Difíceis de reverter?
Sim, porque são processos longos e profundos. Em sua vida, as pessoas não tomam somente a Igreja como referência, seja ela conservadora ou progressista. É como se houvessem decidido que não aceitam uma instituição que dite sobre suas condutas na forma como educar os filhos, quando tê-los, como se casar... Cada um toma da instituição o que considera melhor e deixa de lado o que não considera. Esse é o processo de secularização, que na Argentina é um processo muito longo. A mudança de oito ou doze filhos para três por família aconteceu nos anos 1930, o que significa que já naquele momento, há 80 anos, as pessoas não faziam caso de todas as ideias da Igreja.
Outro entre os temas de Francisco, desde seu primeiro dia como Papa e que foi uma chave da visita ao Brasil, foi a referência à pobreza.
O discurso sobre a pobreza é de longa data. Parece óbvio, mas a escolha do nome Francisco mostra a partir de quando falar da pobreza, de Cristo pobre e de viver como os pobres estiveram sempre vivo na Igreja e gerou inumeráveis conflitos e tensões.
Francisco de Assis morreu no século XIII.
E na América Latina não apenas a Teologia da Libertação colocava-se a opção pelos pobres. O tema também apareceu em reuniões de bispos como Medellín, em 1968, e Puebla, em 1979. A pobreza aparece como algo que não se pode deixar de dizer. A Igreja da América Latina fala muito da pobreza. Foi da América Latina que Bergoglio partiu para Roma. Um lugar distinto ao de Bento XVI, um alemão acadêmico que vinha da Cúria Romana. Talvez por isso Francisco tenha realizado um gesto tão forte como ir até a ilha de Lampedusa, em inícios de julho, o lugar na Itália em que chegam os emigrantes africanos, quando não morrem no caminho a bordo de balsas precárias. Aí, sim, temos um fato concreto com repercussão na Europa. Porém, sobre a pobreza Joao Paulo II também falava, inclusive, chegou a pedir o perdão da dívida externa. Falar de pobreza, por parte dos papas, diz respeito a uma percepção sobre a desigualdade no mundo.
Mesmo que após se perceber a desigualdade haja distintas visões sobre como enfrentá-las?
Haverá, desde a coleta anual da Cáritas até os padres “vileiros”, que não querem a caridade (assistencialismo). Nas duas posturas, e não se esgota aí, a questão da pobreza é central como ponto discursivo. Em seguida, como definir o que é a pobreza e como trabalhar para solucioná-la marca diferentes opções, produtos de diferentes propostas. E já que estamos falando disto, aproveito para outra precisão: na diocese que Bergoglio administrou os padres “vileiros” são 22.
É muito ou é pouco?
Na diocese de Buenos Aires há 900 sacerdotes. Uma boa parte pertence ao clero religioso: jesuítas, salesianos... Sobre eles não o bispo não dispõe, mas quem dirige cada ordem. O clero diocesano, que depende diretamente do bispo, é formado por uns 200 sacerdotes. Assim, consideramos que os padres “vileiros” são cerca de 10% desse número.
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“Colocar a Igreja na rua é um velho projeto”, afirma socióloga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU