Por: André | 12 Julho 2013
Na realidade, não se trata de saber quem é este homem que caiu... Ele é anônimo! Quer seja um criminoso, quer seja divorciado, homossexual, judeu, cristão, muçulmano, negro ou branco, não é o que realmente conta... O que conta é quem se faz próximo dele, deste homem.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette (Quebec), Canadá, e publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 15º Domingo do Tempo Comum – Ciclo C do Ano Litúrgico (14 de julho de 2013). A tradução é do Cepat.
Referências bíblicas:
Primeira leitura: Dt 30, 10-14
Segunda leitura: Cl 1, 15-20
Evangelho: Lc 10, 25-37
Eis o texto.
A parábola do bom samaritano, que só Lucas conta, é uma catequese sobre a acolhida do outro, de qualquer outro, sobre a abertura, sobre a hospitalidade, sobre a dignidade de todos os seres humanos e, mais especificamente, os caídos da vida. Esta é uma ilustração do mandamento do amor, que nos diz quem é Deus e quem somos como crentes, como cristãos, como discípulos do Ressuscitado. Que mensagens podemos extrair das leituras de hoje?
1. O duplo mandamento do amor
A pergunta do legista, um doutor da Lei, é também a nossa: “Mestre, o que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” (Lc 10, 25). Jesus simplesmente responde: “O que é que está escrito na Lei? Como você lê?” (Lc 10, 26). Como bom crente, o doutor da Lei enuncia o duplo mandamento do amor que, de fato, não é senão um único: “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a sua alma, com toda a sua força e com toda a sua mente; e ao seu próximo como a si mesmo” (Lc 10, 27). Perfeito, diz o Cristo do evangelho de Lucas... Coloca isso em prática: “Faça isso e viverá” (Lc 10, 28).
É fácil dizer ou expressar este mandamento do amor; a primeira parte pode parecer fácil, mas a segunda não é tão simples. E como as duas partes são inseparáveis, não podemos realizar a primeira parte sem realizar também a segunda. A primeira carta de São João diz: “Se alguém diz: ‘Eu amo a Deus’, e no entanto odeia o seu irmão, esse tal é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4, 20).
E para tornar a coisa ainda mais difícil, nos perguntamos: mas quem é meu irmão? Quem é meu próximo? E aí, quer gostemos ou não, nós discriminamos e, muitas, justificamos as discriminações. Por exemplo, os estrangeiros que falam outra língua, que professam outra religião, que são de outra cultura, nós os respeitamos, mas eles não são nossos irmãos ou nossas irmãs. Eles não são nossos próximos. E inclusive às vezes evitamos o contato com eles, em nome da nossa religião, por medo de sermos influenciados ou ainda de sermos contaminados por suas práticas que podem nos parecer suspeitas.
Como vocês sabem, em Quebec, falamos cada vez mais em laicidade em nossa sociedade, não porque seja contra a religião ou as religiões, mas por respeito a todos os estrangeiros que vêm se estabelecer aqui e mesmo pelos não crentes que vivem aqui. Não se trata de renegar os nossos valores e a nossa herança cultura e religiosa, mas de se abrir ao outro, aos outros, sem lhes impor o quadro que é o nosso. Nas escolas não confessionais de Quebec foi implantada uma nova disciplina – Ética e Cultura Religiosa –, para permitir que as crianças conheçam as diferentes tradições religiosas e para lhes ensinar a viver juntos no respeito a cada um. Infelizmente, há pais católicos que contestam essa disciplina, inclusive na Suprema Corte, porque, segundo eles, este ensinamento é perigoso para as crianças: elas serão influenciadas e contaminadas pelos estrangeiros. Também, segundo alguns líderes da Igreja, apresentar às crianças as outras tradições religiosas é cair no relativismo religioso, como se a nossa religião fosse superior às outras.
Há um padre francês, Léon Paillot, que reagiu fortemente, quando o cardeal Ratzinger, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, afirmava, numa declaração, que a única Igreja de Cristo subsiste exclusivamente na Igreja católica e que as outras confissões cristãs eram vítimas de deficiências, e não podiam ser chamadas de Igrejas. Léon Paillot escreveu: “Quanta pretensão! Todos nós – as autoridades competentes da cúria romana assim como você e eu – somos convidados a ler a parábola do bom samaritano atualizando-a. Em seguida, podemos nos perguntar com toda a sinceridade o que é preciso reformar para ter parte na vida eterna. Não será preciso, como recomenda Cristo, imitar este herege, este descrente, que vive, no momento, a verdade de Deus? O evangelho nos recorda que não temos o monopólio nem a exclusividade. No livro do Deuteronômio aprendemos: a Lei de Deus é mais que um livro, é mesmo o Livro. Ela está inscrita no coração do homem. Não é preciso ser doutor em teologia para encontrá-la. O Cristo não é o Cristo da Igreja. Nós, a Igreja, não podemos usurpá-lo. Ele existe antes da Igreja; ele existe fora dela”.
O que dizer daquelas e daqueles que são marginalizamos em nossas sociedades e em nossa Igreja: aqueles que não têm a mesma orientação sexual que a maioria da população, casais que fracassaram em seu casamento, mulheres que não gozam da plena igualdade com os homens em nossas sociedades, mas ainda mais na nossa Igreja? São eles nossos irmãos, nossas irmãs? São eles nossos próximos? Mais ainda, nós podemos nos esconder atrás de alguns princípios religiosos ou fazer referência a versículos bíblicos, se não tivermos em conta que a Bíblia também é cultural e deve ser constantemente reinterpretada, se fizermos passar os princípios antes das pessoas, é evidente que fazemos discriminação e que isso é o contrário do que diz o Evangelho. A questão que deveríamos nos colocar é a seguinte: que atitude o Cristo do evangelho teria em relação a essas novas realidades?
Nos evangelhos, a atitude de Cristo é uma atitude de abertura, de acolhida, de perdão, de amor incondicional, de não julgamento, de generosidade, de gratuidade, de tolerância, de aceitação do outro. Pensemos na samaritana no poço de Jacó, pensemos na mulher adúltera que todos queriam condenar, no bom ladrão na cruz na Sexta-feira Santa, em todas essas mulheres e em todos esses homens que Cristo encontrou e que ele acolheu sem reservas. Parece-me que se nós nos chamamos de seus discípulos, as nossas atitudes deveriam se assemelhar às suas.
Em vez de nos perguntar: quem é o meu próximo?, por que não nos perguntamos: de quem eu sou próximo? A parábola do bom samaritano nos propõe esta questão. No final da parábola, a pergunta que Jesus faz ao legista é a seguinte: “Na sua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” (Lc 10, 36). Na realidade, não se trata de saber quem é este homem que caiu... Ele é anônimo! Quer seja um criminoso, quer seja divorciado, homossexual, judeu, cristão, muçulmano, negro ou branco, não é o que realmente conta... O que conta é quem se faz próximo dele, deste homem.
No Talmud da Babilônia, quando um pagão se apresenta diante do sábio Hillel e lhe pede para que lhe ensine a Lei, Hillel lhe diz: “O que não gostarias que te fizessem, não o fazes tu aos outros: essa é toda a Lei; o resto não passa de comentário”. Para nós, cristãos, o amor vai muito mais longe: não se trata somente de não fazer aos outros o que não gostaríamos que fizessem a nós... Devemos fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem, de onde a necessidade de nos tornarmos próximos do outro, de qualquer outro, com tolerância, sem julgamento, gratuitamente, a fim de amá-lo verdadeiramente. Não foi com este amor que Cristo nos amou e que se tornou a imagem perfeita de Deus Amor, segundo Paulo, na segunda leitura de hoje, na sua carta aos Colossenses? “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito, anterior a qualquer criatura” (Cl 1, 15), e mais ainda: “Ele é também a Cabeça do corpo, que é a Igreja. Ele é o Princípio, o primeiro daqueles que ressuscitam dos mortos, para em tudo ter a primazia” (Cl 1, 18). Por seu amor, Cristo é o primogênito na ordem da criação (Cl 1, 15-17), e o primogênito na ordem da redenção (Cl 1, 18-20). Na sequência, nós somos convidados a fazer o mesmo. Mas como fazer isso? Fazendo passar a Justiça e a Bondade antes da religião...
2. A Justiça e a Bondade antes da religião
Na parábola do bom samaritano, Lucas coloca em cena três personagens com os quais devemos nos identificar para saber se amamos verdadeiramente: um sacerdote, um levita e um samaritano. O homem caído na beira do caminho não é identificado, porque ele representa todos os caídos da vida e os excluídos de ontem e de hoje. O sacerdote e o levita são homens da religião e da Lei. Se eles não se aproximam do caído é porque a religião os proíbe: eles poderão se tornar impuros. Nesse sentido, a religião é perversa se ela não for precedida pela Justiça e pela Bondade.
E quem confirma esta interpretação é o personagem do samaritano: um estrangeiro e, pior ainda, um inimigo, um herege, um bastardo em relação a um judeu. Esse samaritano deu provas de Justiça e de Bondade à vítima anônima. Ele lhe presta todos os cuidados de que precisa para se recuperar: “Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal, e o levou a uma pensão, onde cuidou dele” (Lc 10, 34). Esse samaritano fez ainda mais: “No dia seguinte, pegou duas moedas de prata e as entregou ao dono da pensão, recomendando-lhe: ‘Tome conta dele. Quando eu voltar, vou pagar o que ele tiver gasto a mais’” (Lc 10, 35).
Como crentes, como cristãos, como discípulos de Cristo, como Igreja, temos o monopólio da bondade, da misericórdia e da justiça? Se nos escondemos atrás da nossa pertença à Igreja, se fazemos passar os preceitos religiosos antes da Justiça e da Bondade, agimos como o sacerdote e o levita da parábola. Ainda hoje há muitos caídos da vida à beira do caminho; somos bondosos com eles? Tornamo-nos próximos daquelas e daqueles que sofrem e que são marginalizados pela sociedade e pela Igreja? Este é o convite que ainda hoje nos é feito. É claro que podemos ser enganados, querendo ajudar alguém, ou podemos ser roubados querendo ajudar um caído da vida; podemos inclusive nos equivocar prodigalizando a bondade, a misericórdia e a justiça. Mas isso não deve nos impedir de amar.
Para terminar, Santo Afonso de Liguori dizia: “Se tivéssemos que nos enganar sobre Deus, seria melhor fazê-lo exagerando a sua bondade do que endurecendo a sua justiça”. Esta é a Lei do Amor e esta Lei do Amor não está além das nossas forças, como reconhece o autor do livro do Deuteronômio, que temos na primeira leitura de hoje: “Esta palavra está ao seu alcance: está na sua boca e no seu coração, para que você a coloque em prática” (Dt 30, 14).
É um amor prodigioso, certamente, mas é um amor possível!
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Um amor prodigioso! (Lc 10,25-37) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU