10 Julho 2013
Nenhum homem é uma ilha. Nenhuma ilha é uma ilha. A parábola do bom samaritano pode ser contada de novo pela passagem de uma rua da periferia a uma rua de água: "Mulheres e homens, crianças e velhos subiam da costa líbia para Lampedusa, e os bandidos os roubavam e os deixavam meio mortos no meio do mar. Uma lancha maltesa estava passando por ali, desviou a rota. Também um grande navio passava por ali, e virou a bordo. Mas um navio pesqueiro, que lançava as redes, os viu e teve piedade deles...".
O artigo é do jornalista e escritor italiano Adriano Sofri, publicado no jornal La Repubblica, 09-07-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu interrompo a paráfrase grosseira para não chegar ao ponto em que o homem ferido é confiado à hospedaria pelo samaritano que paga do próprio bolso e parafrasear a estalagem com um Centro de Identificação e Expulsão, para aprisioná-los por seis meses, renováveis, pelo crime de terem nascido em outro lugar – na Samaria, talvez.
No último dia 23 de junho, quando, de última hora, o Papa Francisco se ausentou do concerto para o Ano da Fé, citando "compromissos improrrogáveis", murmurou-se que ele não queria ter encontros impróprios: quem sabe. Quem sabe se, realmente, ele realmente proferiu a frase que lhe foi atribuída: "Eu não sou um príncipe renascentista". Frase singularmente carregada, em uma situação da Cúria que pode lembrar os faustos e os nefastos daquele período, e que principalmente relembrava involuntariamente os 500 anos da escritura do O Príncipe de Maquiavel.
Nesses dias, houve uma imprevisível cadência de convites feitos e desfeitos, que envolveram instituições civis, religiosas, automobilísticas, e também o desejo do papa de não ser acompanhado na sua peregrinação por autoridades políticas, além da senhora prefeita da generosa ilha.
Devem ser sinais dos tempos. O Papa Francisco confiou grande parte da sua própria entrada em cena aos gestos, os improvisados e os meditados. O mais meditado foi este: onde fazer a primeira viagem. Supondo-se que um de nós fosse colocado no lugar do papa que tomava a sua decisão (é possível fazer isso: Maquiavel escreveu isso até três vezes em uma única carta, na qual contava que ela fosse lida para o papa de então: "Se eu fosse o papa...", e antes dele, Cecco, "se eu fosse papa, então seria alegre, para embriagar todos os cristãos"), então, não teríamos encontrado uma mais significativa e comovente do que esta, de ir a Lampedusa. A um belíssimo mar de verão, mudado há muitos anos em cemitério de água dos desesperados e daqueles que queriam ter esperança apesar de tudo, e no deserto de água das travessias dos sobreviventes.
O gesto primeiro foi a coroa de flores naquele mar, com o pedido de perdão, encontro com os outros que chegavam por acaso. Esperavam-no, os vivos, os desembarcados, os pescadores e os outros marinheiros envolvidos em socorrer a migração, e os habitantes da ilha cortejada como uma ponte de oportunidades para a Europa. E como a grande maioria daqueles que vêm da costa africana são muçulmanos, a visita também foi uma Regensburg sui generis.
Hipersensíveis aos gestos e aos símbolos, as crônicas se saciaram com solidéu ao vento, com a lancha da Guarda Costeira, com o papamóvel substituído por um jipe emprestado (logo depois de ter deplorado os padres com os carros de último modelo: haverá uma grande substituição de frota...), com saudações e carícias na linguagem universal do Mediterrâneo, com o báculo em formato de cruz feito de pedaços de madeira coloridos dos barcos dos migrantes, com tudo o que pertence à vida cotidiana e faz um efeito extraordinário depois de tantos maus hábitos de etiqueta e protocolo, e que insinua até uma suspeita de demagogia: como se apresentar de uma sacada muito alta e dizer "Boa noite".
Mas as palavras também eram importantes e também elas soaram tão mais extraordinárias quanto mais normais, começando pelo "Deus nos julgará com base no modo como tratamos os mais necessitados", enviada pela conta Pontifex do Twitter. Não só Deus, além do mais. Pode-se reescrever o tuíte: "Os necessitados nos julgarão com base no modo como os tratamos". Diz também o papa que tocar a carne de quem sofre é como tocar Cristo. "A vida de Francisco de Assis também mudou quando ele abraçou o leproso, porque tocou o Deus vivo". Esse pensamento, essa experiência também conseguem se manter de pé sozinhos, e uma vida pode ser mudada quando se abraça um leproso porque se abraçou um leproso.
Foi o pároco da ilha que convidou o papa no mês passado. "Há algumas semanas, quando eu fiquei sabendo dessa notícia, que, infelizmente, muitas vezes se repetiu, o pensamento voltou continuamente como um espinho no coração, que traz sofrimento. E então eu senti que eu tinha que vir aqui hoje para rezar, para fazer um gesto de proximidade, mas também para despertar as nossas consciências para que o que aconteceu não se repita, não se repita, por favor".
Francisco prefere um tom afável, como esse "por favor", como a descrição da meta para o qual os imigrantes tendem, "pessoas em viagem rumo a algo melhor". Ele lembra os apelos de Deus a Adão: "Onde estás, Adão?", e a Caim: "Onde está teu irmão?", e tira da tragédia dos afogados o sinal da desgraça inevitável para assimilá-la à omissão de socorro e, de fato, ao homicídio.
"Tantos de nós, eu também me incluo, estamos desorientados, não estamos mais atentos ao mundo em que vivemos, não nos importamos, não protegemos o que Deus criou para todos e não somos mais capazes sequer de nos proteger uns com os outros". Palavra de marinheiros, "desorientados", de quem perdeu o seu oriente, da "anestesia do coração", da "globalização da indiferença".
"Quem é o responsável pelo sangue destes irmãos e irmãs? Ninguém! Todos nós respondemos assim: não sou eu, eu não tenho nada a ver, são os outros, certamente não eu. Mas Deus pergunta a cada um de nós: 'Onde está o sangue do teu irmão que clama a mim?'. A cultura do bem-estar (...) nos faz viver em bolhas de sabão, que são bonitas, mas não são nada...".
Nós nos esquecemos de como se faz para chorar pela dor dos outros e pela nossa indiferença, diz, e ele tem o cuidado de usar o "nós" que o chama em cumplicidade, exceto para abandoná-lo pela terceira pessoa do plural dos "traficantes, aqueles que exploram a pobreza dos outros ", e "aqueles que, no anonimato, tomam decisões socioeconômicas que abrem caminho para dramas como esse".
Estes, os tubarões humanos pequenos e grandes, já estão cansados da mania (alegre, aliás, nem lúgubre, nem vitimista) desse jesuíta afranciscado pela simplicidade e pelos pobres. Eles se sentiam protegidos da distinção entre o que é de César e o que é de Deus.
Os não crentes ou os crentes de outras fés, no entanto, têm muitas boas razões para temer o julgamento dos necessitados e para abraçar os leprosos, que César e os seus empregados não podem perseguir ou desprezar, senão traindo a si mesmos, além do seu Deus. Sem falar de Jesus, aquele famoso pauperista.
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Contra a anestesia do coração - Instituto Humanitas Unisinos - IHU