Por: Cesar Sanson | 01 Julho 2013
Edital está em fase final e impõe uma série de regras para a vinda de médicos de Espanha, Portugal e Argentina – mas a prioridade das 9 mil vagas iniciais do programa será para brasileiros.
A reportagem é de Vinícius Gorczeski e publicada pelo portal da revista Época, 28-06-2013.
Esperantinópolis, um município de 18 mil habitantes, localizado no coração do Maranhão, completou 59 anos no dia 27 de junho. Pode-se arriscar que a maior glória do aniversário de Esperantinópolis foi continuar com o posto de cidade com nome próprio mais longo do Brasil. De resto, amarga-se a falta de quase tudo ali, até médico – e como bons esperantinopolitanos, os moradores ainda esperam a chegada de um doutor da atenção básica de saúde, aqueles de postos de saúde, com pediatras, ginecologistas e clínico geral. A professora Clores Maria Nava da Silva, 46 anos, vê com frequência vizinhos e sua mãe, dona Leopoldina, 84 anos, precisarem de ajuda médica. Mas nos hospitais é frequente não encontrarem nenhum. “Aqui já teve tantos casos de coisas simples, que é parto que não foi feito e a mulher morreu. Aqui é recheado dessas histórias”, diz ela.
Clores mora em uma das 1.581 cidades do Brasil – ou quase 30% das cidades brasileiras - sem médicos da atenção básica, segundo o Ministério da Saúde. Quando o útero da mãe de Clores ameaçou sair para fora, um dos poucos cirurgiões da cidade – ele não era da atenção básica – disse que a cirurgia teria de esperar porque faltava linha na agulha. Quinze dias depois o problema se agravou, e tiveram de partir para a capital São Luís, uma viagem de seis horas de carro. Seja por falta de estrutura hospitalar adequada ou de médico, a solução dos moradores de cidades pobres ou regiões periféricas do Brasil é a mesma: fugir de onde moram em busca de médicos nos grandes centros, ou recorrer a alternativas. “Quando não somos atendidos, fazemos automedicação”, diz Clores que, como os demais moradores de cidades típicas como Esperantinópolis, enxergam a falta de médicos como algo comum. “O jeito é sair da cidade”, diz.
A verdade é que quando um médico surge numa dessas cidades, vira sensação. Odete Pena, 70 anos, mora na ilha do Combu, a 20 minutos de barco da capital Belém e um desses exemplos. Fazia anos que uma unidade de saúde era um prédio deserto na ilha, sem médicos. As consequências eram práticas: a ilha é habitada por ribeirinhos e por uma rica fauna, entre eles as cobras. É comum que os ribeirinhos sejam vítimas de picadas do réptil. O irmão de Odete, Orivaldo, completou dois anos de morte no dia 10 deste mês por causa da víbora. Ela não acha que a morte de Orivaldo esteja vinculada à demora dele ser socorrido num pronto socorro de Belém, pelo contrário. “Falaram que deram um soro errado, mas não acho isso não. Era Deus avisando que era a hora dele.” Mas como é receber um médico pela primeira vez numa cidade? Quando um deles, do Provab (Programa de Valorização dos Profissionais na Atenção Básica) chegou ali em março, virou assunto de comadres, família e afilhados no restaurante de Odete: “Estava todo mundo em choque. Todo mundo dizendo que queria se consultar.”
Segundo o Ministério da Saúde, há um déficit acumulado de 54 mil postos de trabalho vagos para os médicos no Brasil nos últimos dez anos; 22 estados têm menos médicos por habitantes que a média nacional. No início do ano, o governo lançou o segundo edital do Provab para atrair 13 mil médicos na atenção básica – um pedido de prefeitos brasileiros -, mas apenas 3.800 se inscreveram no programa que paga R$ 8 mil mensais aos interessados, oferece especialização e pontos nas provas de residência médica aos médicos que cumprem com as obrigações curriculares e têm bom desempenho. Quem ficou na pior nessa conta para atrair médicos foi o estado do Maranhão, onde há o menor contingente da categoria do país (0,58 médicos da atenção básica por mil habitantes), e onde mora Clores e sua família.
E se médicos estrangeiros ajudassem a suprir a necessidade de atendimento nesses locais? O tema ganhou fôlego num anúncio da presidente Dilma Rousseff (PT) no dia 24 deste mês, ao incluir o tema no pacto pela saúde proposto pelo governo como resposta à onda de protestos a que o Brasil assiste. A ideia surgira numa frente entre a presidente Dilma e prefeitos, no início do ano, e é inspirada em países como Estados Unidos, Canadá e Austrália, além do Reino Unido, que importam médicos estrangeiros. Dilma cobrou o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, a desenhar um programa do tipo.
Padilha afirma a ÉPOCA que até dezembro o governo atrairá médicos estrangeiros para atuar nas zonas descobertas. O edital está quase concluído. No entanto, o projeto que beneficiará médicos de fora será adotado como medida emergencial para cobrir vagas não preenchidas por brasileiros – a prioridade da pasta, segundo Padilha, são profissionais tupiniquins. “A prioridade é investir no médico brasileiro”, diz Padilha. “Estamos fechando o edital nacional onde convocaremos os médicos brasileiros para essas áreas periféricas, onde terão acompanhamento permanente de universidades federais públicas e especialização. Somente as vagas não preenchidas por brasileiros serão complementadas por estrangeiros.”
Junto às vagas, haverá um edital de adesão dos municípios e estados interessados em atrair profissionais, que deverão acessar recursos federais para criar ou reformar equipamentos hospitalares para participar do projeto. Com os pedidos dos municípios, o ministério poderá calcular a demanda por doutores. “Mas já partimos da necessidade de pelo menos 9.000 profissionais da atenção básica”, diz Padilha. Dessas 9.000 vagas, não se sabe quantas serão preenchidas por médicos estrangeiros, que também terão um edital específico e cujos interessados se inscrevem individualmente. Neles, ficará claro que os estrangeiros ocuparão as vagas que sobrarem do processo nacional.
Nas últimas semanas, técnicos da saúde intensificaram suas viagens à Espanha e Portugal, além da Argentina, para selar os detalhes do programa. Esses países são prioridade do Ministério porque neles a oferta médica é muito superior ao Brasil e, no caso europeu, a crise econômica que se prolonga desde 2008 só agravou a oferta de profissionais. Cuba era um dos focos do governo, mas depois de críticas sobre a qualidade dos profissionais cubanos – especialmente das associações médicas – o governo deixou a ilha em segundo plano. Mas os cubanos não foram descartados. “Não temos preconceitos com médicos bem formados de nenhum país do mundo”, diz Padilha.
A ideia é hoje bem recebida entre os moradores de lugares como Esperantinópolis, no Maranhão: “É muito válido porque melhoraria muito a vida de regiões como a minha, onde sempre se fala em falta de médicos”, diz Clores. “Mas desde que sejam pessoas capacitadas e com profissionais que consigam se comunicar com o paciente.”
No entanto, o programa encontra forte resistência entre instituições ligadas aos profissionais da saúde no país. Segundo Florentino Cardoso, presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), o governo quer alocar médicos de fora sem que eles precisem fazer o Revalida, um exame aplicado pelo Inep (órgão do Ministério da Educação) que avalia os conhecimentos do candidato, autorizando-os a praticar medicina no país, se bem avaliados. “Nos países de primeiro mundo que adotam o modelo isso é feito”, diz Cardoso.
O desenho atual do programa dispensa os médicos estrangeiros do Revalida. Porém, num cenário de baixa oferta de médicos, a medida paliativa pode cobrir uma demanda que se alastrou pelo país, sem deixar de exigir dos participantes estrangeiros uma série de contrapartidas. São elas a necessidade do médico ter-se formado em universidades estrangeiras autorizadas e reconhecidas no país de origem. Para atuarem aqui, eles receberão uma licença especial com prazo de três anos de duração. Terão de atuar em local específico – as áreas pobres e periféricas do país. Eles também serão acompanhados por “tutores” de universidades federais e deverão se especializar em saúde da família – aquela em que o médico acompanha uma família com foco na prevenção de doenças e no acompanhamento de hipertensão, por exemplo. Por causa dessas condições, o diploma do estrangeiro não será validado automaticamente no Brasil. Se isso acontecesse, médicos estrangeiros poderiam atuar na região que quisessem.
Caso sejam aceitos no país, além das obrigações do projeto, os médicos estrangeiros receberão, como os brasileiros, R$ 8 mil mensais. Padilha afirma que eles passarão três semanas numa espécie de “preparação” em universidades federais, com as quais ficarão vinculados, e durante os três anos de licença e especialização médica serão frequentemente avaliados nas universidades. “Médicos brasileiros ou estrangeiros que descumprirem as regras do projeto serão desligados do projeto”, afirma Padilha.
Em troca dos profissionais recebidos no país, o governo quer viabilizar o intercâmbio de médicos e estudantes de medicina brasileiros nos dois países europeus, para especialização.Outra proposta é adaptar o programa Ciência Sem Fronteiras, permitindo a concessão de bolsas a médicos formados. Assim, eles poderiam participar do programa em cursos de pós-graduação.
Manifestação
Com o avanço do projeto final que poderá atrair médicos estrangeiros, a comunidade médica, formada por entidades de classe, prometem uma paralisação geral das atividades no dia 3 de julho. Florentino Cardoso, da AMB, afirma que as manifestações incluirão na pauta a falta de investimentos na saúde, a precarização de unidades hospitalares em regiões pobres e os baixos salários oferecidos em concursos públicos, além da contrariedade a médicos estrangeiros dispensados do Revalida – todos esses considerados os principais motivos, pela AMB, para que os médicos brasileiros evitem as regiões onde hoje faltam médicos. O plano de carreira, tal como as existentes no judiciário, também é cobrado do poder público.
Caso o projeto de importação médica avance e os médicos sejam importados ao país sem a necessidade de revalidarem seus diplomas, as entidades representativas do profissional médico descartarão qualquer ajuda ou intercâmbio acadêmico com os colegas estrangeiros. “Não colaboraremos em nada. Médico que vier de maneira torta, consideraremos como exercício ilegal da medicina”, diz Cardoso. Apesar da greve geral, o presidente da AMB garantiu que os médicos continuarão atendendo as emergências e as urgências clínicas.
Padilha ameniza as rusgas com os médicos ao não culpá-los por evitarem regiões pobres. Diz que é preciso flexibilizar as condições para que mais jovens cursem medicina, por meio de programas de financiamento estudantil. Além disso, promete expandir, em conjunto com o Ministério da educação, 11 mil vagas nas universidades públicas federais, e mais 12 mil vagas para especialização em postos de trabalho – tudo até 2017.
Enquanto o Brasil ainda estimula a formação médica, que demora cerca de oito anos, e outras medidas e investimentos na saúde, algumas com resultados lentos, a agilidade no lançamento do programa pode ser um passo emergencial para reverter a situação dramática como a de Esperantinópolis, onde um médico, não por acaso, venceu a eleição no ano passado. “Escolhemos ele porque tínhamos esperanças de resolvermos o problema da falta de médicos, mas isso ainda não deu resultados práticos e a saúde de Esperantinópolis continua doente”, afirma Clores.
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Governo atrairá médicos estrangeiros até dezembro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU