24 Junho 2013
Enfim concedida a revogação dos aumentos das tarifas de transporte nas duas principais metrópoles brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, a tarde de quinta-feira se anunciava como o momento de comemoração para o movimento cívico e apartidário que tomou as ruas do País nas últimas duas semanas. O que se viu, no entanto, foi a expansão incontrolável dos protestos, com mais de 1 milhão de pessoas em cerca de cem cidades brasileiras. E, embora o tom geral das massas de manifestantes se mostrasse pacífico, cenas de conflito e vandalismo foram vistas por toda parte. Em Brasília, três ministérios foram depredados. No Rio, 62 pessoas ficaram feridas. No interior paulista, um jovem manifestante morreu atropelado e, em Belém, uma gari perdeu a vida após inalar gás lacrimogêneo lançado pela polícia.
A reportagem e a entrevista é de Ivan Marsiglia e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 23-06-2013.
No calor de acontecimentos que atingem proporções inéditas desde a redemocratização brasileira, o filósofo Paulo Arantes desfia, na entrevista a seguir, as perplexidades do "país do futuro" - que afinal chegou, trazendo consigo antigas contradições. "A vida no Brasil sem dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de ajuste ao capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais", afirma o professor aposentado da USP e doutor pela Universidade de Paris X, Nanterre.
Para Arantes, nunca é demais lembrar que o Maio de 1968 na França também eclodiu em um contexto de crescimento econômico, pleno emprego e políticas de bem-estar social. Comparação que, no entanto, para por aí. E que se as "jornadas de junho" nacionais, como o filósofo as chama, referenciam-se de fato em rebeliões altermundistas como a de Seattle-1999 ou de Nova York-2011, encontram no Brasil ambiente ainda mais explosivo, "tamanha a desagregação social em que nos enfiamos". E avisa: para evitarmos o risco de uma derivação autoritária, será preciso que governantes municipais, estaduais e federais deixem de lado suas "cabeças de planilha" e levem a sério a reivindicação radical de cidadania expressa nas ruas.
Eis a entrevista.
‘Perplexidade’ foi a palavra mais usada na descrição dos últimos acontecimentos em todo o País. O sr. também ficou surpreso?
É verdade, só hoje de manhã li pelo menos três artigos confessando "perplexidade" diante dessas realmente espantosas "jornadas de junho". Cada um com o seu assombro diante da "mais expressiva, surpreendente e rápida vitória popular de nossa história", nas palavras do cientista político Rubens Figueiredo, que atribui a rendição dos governantes locais, Estado e município, à "potência e capacidade de mobilização das redes sociais". O que os ideólogos da sociedade em rede estão chamando de autocomunicação, Kant falaria em uso público da razão. Seja como for, mais um motivo de espanto. Voltemos às três visões perplexas. O cronista, que admite não estar entendendo nada e exige a mesma franqueza dos demais, da imprensa, dos políticos e dos próprios manifestantes; o correspondente internacional, que talvez tenha vivido anestesiado pela rotina da profissão, cobrindo anos de prosperidade festejada pelos investidores estrangeiros; o veterano do mundo petista agoniado pelos sinais alarmantes de fadiga da estratégia de mudanças sem ruptura, com dez anos de conquistas dentro da ordem e níveis coreanos de aprovação eleitoral arriscando ir para o vinagre à menor gota d’água.
Como entender esses sinais, em um contexto de baixo desemprego e de crescimento, ainda que modesto, na economia?
A vida no Brasil sem dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de ajuste ao capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais. Essa a dissonância básica, ainda mais estridente quando o contexto é de baixo desemprego, como você bem lembrou. Não seja por isso. Sei que a comparação frisa o disparate, mas não custa recordar que o maior movimento contestatário da segunda metade do século XX, disparado pelo maio francês de 1968, ocorreu justamente no auge de um ciclo inédito de crescimento econômico, pleno emprego e Estado social a todo vapor, sendo que três meses antes da explosão o mais acatado colunista da época publicara um artigo descrevendo a França como um país entorpecido pela autossatisfação. A herança do Maio, entretanto, já se disse, é uma herança impossível. E a moçada do Passe Livre sabe muito bem disto: onde havia um horizonte de superação, existe uma ratoeira. Essa armadilha é o Brasil do futuro que afinal chegou. Como disse um poeta, "o horizonte sorri de longe e arreganha os dentes de perto". Por exemplo, a brilhante dentadura do PM baixando o porrete no casal de namorados num bar da Av. Paulista.
De que maneira o Passe Livre, que teve início em 2005, se aproxima e se diferencia dos movimentos sociais a que estávamos acostumados no Brasil?
O Movimento Passe Livre, como de resto seus congêneres nascidos da galáxia altermundista, sobretudo os descendentes da velha tradição da Ação Direta, discrepa dos movimentos sociais clássicos, para não falar é claro, dos partidos da esquerda histórica, embora seja igualmente temático como os demais movimentos, e obviamente de esquerda. É filho de Chiapas, Seattle, etc., das lutas contra a OMC, Alca & cia. Sua família é por certo a dos autonomistas. E, embora restrito a um foco único, é maximalista, como estamos vendo agora: a meta é a tarifa zero. Cuja razoabilidade demonstrada nas suas cartilhas de clareza igualmente máxima são exemplares como introdução prática à crítica da economia política. Pelo tênue fio da tarifa é todo o sistema que desaba, do valor da força de trabalho a caminho de seu local de exploração à violência da cidade segregada rumo ao colapso ecológico. Simples assim, por isso, fatal, se alcançar seu destinatário na hora social certa, como parece estar ocorrendo agora.
Daí a ressonância de uma causa como a da ‘tarifa zero’, tida como inviável?
Exato. E são tão afiados no manejo do melhor argumento contra a aberrante insensatez do atual modelo de transporte coletivo - e socialmente convincentes, como estamos vendo -, que, em contraste, as planilhas dos governantes parecem, elas sim, cifras fantasiosas ornamentando o jogo das concessionárias que se conhece. Mas de tanto levarem às cordas essas raposas das planilhas criativas, a expertise adquirida no processo foi aos poucos colando, num só personagem, o libertário e o gestor ideal de políticas públicas "igualitárias". Não estou insinuando que cedo ou tarde esses jovens estarão operando do outro lado do balcão - como já o fazem no âmbito da cultura digital, no qual a livre associação de livres produtores revelou-se o melhor caminho para gerar empreendedores shumpeterianos e novos formatos de negócios, como se diz no jargão do capitalismo cognitivo.
Não à toa, demonstra-se por a+b que a circulação urbana planejada à luz de uma tarifa zerada exponenciaria a performance econômica de uma cidade, e estenderia o direito à cidade. Uma ruptura de época está nos arrastando para uma outra praia não menos conflagrada e na qual os europeus já vivem há tempos: onde em torno dessas famigeradas políticas públicas de gestão de um presente congestionado - da segurança à moradia - um grupo se amotina e as correspondentes instituições coercitivas fecham o cerco. Por isso na Av. Paulista um dia é pau outro dia é flor.
Além da reivindicação ‘irrealista’ da proposta de tarifa zero, fala-se muito sobre o ‘caráter difuso’ dos protestos. O sr. concorda?
Me parece muito mais insensata a hipótese contrária, de que centenas de milhares de pessoas ganhem as ruas para pedir a Lua. O engenheiro Lúcio Gregori, secretário de Transportes na cidade de São Paulo no governo Luiza Erundina, tem dito para quem quiser ouvir que só a horrenda política tributária no Brasil impede a gratuidade no transporte coletivo, tão viável quanto o SUS, escolas públicas e coleta de lixo. Quanto ao "caráter difuso" das demandas, trata-se de um bordão pejorativo porque, em sua infinita variedade, além de serem de uma espantosa precisão - nada menos do que tudo, como o Terceiro Estado em 1789 queria tudo por não ser nada -, elas sugerem um limiar que no fundo ainda não se ousou transpor.
Muitos têm dito também que as manifestações são o equivalente brasileiro de movimentos como o da Primavera Árabe e o Occupy Wall Street. A comparação procede?
A Primavera Árabe são outros quinhentos. Salvo a tática de ocupação de um local emblemático e o ímpeto do enfrentamento, nada a ver. Da geopolítica - estão no olho do furacão de uma guerra pela ordem mundial - à mescla de trabalhadores pobres e populações destituídas com uma religião militante e suas violentas divisões sectárias. Já o similar do Occupy americano reproduziu-se por aqui há dois anos, mas passou desapercebido, encoberto pela melhora dos índices de Gini no País.
Na Turquia sim, um par de analogias salta aos olhos, porém não mais do que isso, pois estamos falando de um país-membro da Otan e implicado numa guerra civil no vizinho árabe: também um estopim com cara de causa menor, a desfiguração de uma praça entregue à especulação imobiliária, do outro lado da barreira, um governante com altos índices de aprovação e por isso mesmo acometido da apoteose mental que conhecemos bem, enterrado até o pescoço em megaprojetos para lá de duvidosos.
Quanto aos Indignados espanhóis, é inegável o ar de família, menos quanto ao desfecho conservador, embora ninguém saiba qual será o nosso, tamanha a desagregação social em que nos enfiamos: uma imponderável deriva à direita pode ocorrer a qualquer momento.
O fato é que há mesmo muita "indignação" de um tipo novo nas ruas brasileiras em ebulição, tão nova essa indignação que ousou tocar no santo dos santos, a Copa. E olhe que acompanho futebol desde 1950, nunca vi ninguém se atrever a tamanha profanação. O papa não perde por esperar...
A imagem de estádios de Primeiro Mundo em contraponto a serviços públicos de terceiro deu força à tal ‘revolta da catraca’?
O estopim da tarifa também passou por aí, e para além do importante movimento dos atingidos por megaeventos, alcançou a imaginação da massa infeliz condenada à catraca: queremos tarifa com padrão Fifa - bem como hospitais, escolas, creches, no mesmo padrão Fifa de qualidade. Humor popular direto ao ponto, porém um tantinho inquietante: então seria esse o metro da "cidadania social" a que se aspira? Luxo e apropriação direta dos fundos públicos?
A proximidade com os Indignados europeus dá mesmo o que pensar. Fica no ar a dúvida: e se tivermos ingressado finalmente na era dos protestos desengajados - como os qualificou um sociólogo britânico -, quando protestar se tornou uma questão estritamente pessoal, e o ativismo, a rigor, um estilo de vida?
Em fevereiro de 2003 1 milhão de pessoas foram às ruas na Grã Bretanha em protesto contra a iminente invasão do Iraque. Recolhidos cartazes e bandeiras, não deixaram nenhum rastro social ou político pelo caminho, salvo a palavra de ordem famosa "não em meu nome", isto é, não me envolvam nessa barganha de sangue por petróleo.
Na mesma linha, outro conhecedor da cena inglesa observou que os europeus que promovem festa e casamento durante os protestos o fazem porque sabem que as demonstrations só demonstram para os próprios demonstradores. Quando a maré virou, e a vara de condão da PM "transformou" vândalos em indignados pacificamente distribuídos por nichos genéricos de demandas, a narrativa midiática dos acontecimentos não precisou forçar a mão para desviar-se do gatilho do movimento - e apresentar a manifestação como um fim em si mesma. Essa a moldura do imortal "está lindo vocês nas ruas".
Essa alternância entre vandalismo e cidadania foi o que tornou os protestos tão difíceis de decifrar?
Acho que há menos mistificação do que supõe a socióloga da FGV Silvia Viana, ao notar, num ótimo artigo, que são tantas as negativas - "não são só os 20 centavos, não é só o transporte, não é só a Copa..." - que o movimento parece um protesto por nada. Mas não é o que diz uma jovem manifestante, ao ser indagada sobre as motivações de sua presença no ato: "Olha, eu não consigo imaginar uma razão para não estar aqui".
O teórico alemão Wolfgang Streek traduziria um pouco à la bruta: vim consumir política, no caso, repudiar um sem-número de "produtos", a saber tais e tais políticas públicas que não me satisfazem. Se não me engano, foi esse o ponto da entrevista do professor José Garcez Ghirardi (Em Trânsito", 16/6), domingo passado neste mesmo caderno. Alguém observou que muitas palavras de ordem nos protestos decalcavam slogans publicitários, a começar pelo "Grande Despertar" de uma marca de uísque.
E o próprio ‘vem pra rua’, da propaganda de uma fábrica de automóveis...
Puro agitpub: o autor da boutade acrescentou que se tratava menos de ouvidos treinados por jingles do que casos de detournement espontâneo à maneira dos situacionistas franceses. Mas, e se não for bem assim? À notícia da capitulação, o bom senso tático da esquerda tradicional recomendaria uma pausa para consolidação das conquistas. Parece não ser mais o caso. Nas palavras de um ativista, não só em solidariedade às outras cidades que ainda estão na luta, mas porque uma pauta puxa a outra, "a mobilização não pode parar, a cultura da mobilização não deve parar". Mas precisamos, sim, parar para pensar, antes de celebrar o que quer que seja, salvo a derrota acachapante dos reis da planilha.
Um coletivo de estudiosos e militantes da questão social no Brasil poderia muito bem dizer que essa mobilização permanente tem menos a ver com a mobilização total de uma sociedade de consumo do que com a implicação, e o "engajamento", das pessoas arrastadas pelo novo assalariamento vulnerável, que estão ralando e padecendo e no entanto engajadas em duas frentes, a do trabalho que ninguém gosta de ver estropiado por chefias despóticas e avaliações espúrias e a do senso do vínculo social a ser reconquistado que decorre dessas engrenagens desenhadas para infligir sofrimento. Quem sabe não virá também dessa outra fonte de energia social o som e a fúria que se vê nas ruas?
Do ponto em que estamos, já é possível vislumbrar em que isso tudo vai dar?
Até agora mais ou menos cem cidades com manifestações marcadas ou já ocorrendo. Era de 70% de aprovação no Datafolha, segundo consta, o índice do Movimento das Diretas no seu começo. Como lhe dizer que estou entendendo o que seria inconcebível dez dias atrás? E olhe que o povo lulista - na acepção precisa que lhe deu o cientista político André Singer - mal começou a dar o ar de sua graça: tarifa zero dentro da ordem seria demais para o seu "horizonte de desejo", para usar a ótima expressão de Wanderley Guilherme? E quando o desemprego voltar com o tremendo arrocho fiscal pela frente? Deixará de lado a saída empreendedorista pela ação coletiva? Como reagiria a classe média, que até agora extravasou seu ressentimento atávico contra um pouco de tudo, na hora em que a gente diferenciada deixar de ser apenas uma ameaça virtual? Salvo a Copa, o consenso em torno do Brasil emergente ainda não foi arranhado. Se em algum momento se sentir sob ataque, reagirá como de hábito, cerrando fileiras em torno de um campo popular ad referendum, os cenários pré-64 sairão das gavetas mais uma vez, etc. Muitas dissonâncias portanto nessa unanimidade toda, além do mais fabricada pelos âncoras transmitindo ao vivo o impensável na pasmaceira dos últimos anos.
Na sexta-feira, já ficava clara não só a apreensão da Fifa em relação à Copa do ano que vem, mas a do Comitê Olímpico Internacional sobre a Olimpíada de 2016 no Rio de Janeiro. São preocupações fundadas?
A Copa do Mundo não está indo para o vinagre apenas porque está ficando cada vez mais claro o engodo da redenção urbana operada por megaeventos do gênero. A ficha que caiu agora é o escândalo do seu tremendo custo público alavancando lucros privados inconcebíveis. Temos um ano pela frente, num cenário de retrocesso econômico, de volta à ortodoxia do primeiro mandato de Lula, tempo suficiente para que amadureça a percepção pública do real significado da Lei da Copa, essa sim uma verdadeira lei de exceção. Veremos de perto, entre outras derrogações e violações, o exercício da soberania corporativa sobre territórios e populações. Não faltarão gatilhos para outra onda de manifestações em cascata: tem muita gente com coceira nos dedos.
O sr. disse certa vez que o pensamento crítico brasileiro encontrava-se em ‘coma profundo’. Parafraseando um dos slogans mais cantados nos atuais protestos (‘o povo acordou’), acha que ele pode despertar agora?
Vasto assunto. Como o dito pensamento crítico brasileiro prestou relevantes serviços à inteligência nacional, por que não deixá-lo descansar em paz?
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O futuro que passou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU