21 Junho 2013
"Nestes vinte centavos, que é o símbolo deste protesto, estão incluídos o hospital que não funciona, o problema da segurança e a falta de canais para que se saiba qual é a agenda estratégica do país", diz Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente, ex-senadora e eventual candidata à Presidência da República pelo Rede Sustentabilidade.
Nos últimos dois anos, Marina deu 260 palestras que reuniram algo próximo a 170 mil pessoas, sendo que os jovens são metade deste público - 90% deles universitários, 10% secundaristas. Fala a eles sobre sua visão dos protestos que ganharam ruas no mundo - e agora no Brasil -, do novo sujeito político que está surgindo, do impacto transformador da internet em todos os setores. "Não sei porque as pessoas achavam que só a política ia ficar do mesmo jeito", diz. Estes movimentos, acredita, são multicêntricos e podem ser o começo de um rearranjo no processo político. "Os antigos partidos políticos vão ter que se repensar."
A entrevista é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 21-06-2013.
Marina sugere que recursos do petróleo sejam utilizados para melhorar o sistema de transporte público e a vida de milhões que vivem nas cidades. "Dizem que as passeatas estão impedindo as pessoas de ir e vir. Mas quem é que assegura o direito de ir e vir quando se fica uma hora no trânsito?", rebate.
Eis a entrevista.
Agora, com a tarifa mais baixa, o que acontece?
Venho dizendo há muito tempo que era só uma questão de tempo para que essas mobilizações virtuais transbordassem para o presencial.
Por quê?
Porque está surgindo um novo sujeito politico no mundo, e no Brasil não é diferente. Ele é uma característica deste tempo, que combina a grande quantidade de informação a que as pessoas têm acesso com a grande possibilidade de comunicação entre elas. E isso vai transformar a política. Todos os setores da sociedade estão sofrendo a influência da internet. Os negócios estão sendo transformados, os sistemas educativos, a produção de conhecimento, os meios de comunicação. Não sei por que as pessoas achavam que só a política ia ficar do mesmo jeito.
Qual é esse rearranjo?
As organizações políticas que temos surgiram a partir da revolução francesa e da revolução americana e nos trouxeram até aqui. Só que agora são insuficientes para responder aos 7 bilhões de seres humanos no planeta e ao surgimento da internet. Vai haver um novo rearranjo no que concerne à visão do processo político e ao processo em si, que não será mais verticalizado, mas cada vez mais horizontalizado. E no que concerne às estruturas, que terão que ter mais flexibilidade para comportar esta ação política baseada na mobilidade.
Como a senhora vê estes novos movimentos?
Neste momento temos uma crise econômica, social, ambiental, política e de valores, uma crise civilizatória. Estes movimentos não têm um centro único, são multicêntricos. E têm um núcleo estagnado. Há uma quantidade muito grande de pessoas que começam a sair desta estagnação e ir para a borda que está se movimentando.
O Brasil entrou na agenda deste processo global?
Sim. Desde 2009 venho falado sobre isso. Está surgindo um novo sujeito politico e um novo ativismo. E este ativismo não é mais dirigido pelo partido, pelo sindicato, pelas ONGs, pelas organizações estudantis e nem pelas lideranças carismáticas. Este novo ativismo é o que chamo de ativismo autoral. A diferença é que ele não tem centro, é multicêntrico Não tem lideranças fixas, as lideranças são móveis. Não tem aquela lógica de coluna, de porto seguro, de arco que empurra o movimento, como a gente tinha no ativismo dirigido, onde os partidos eram a coluna, o porto onde se ancoravam as mobilizações. A melhor metáfora para este ativismo autoral é o de uma âncora.
A senhora pode explicar melhor?
No porto você precisa estar atracado: tinha que estar ligado ao partido, ao sindicato, à central, à UNE (União Nacional dos Estudantes), à ONG ou à liderança carismática. No ativismo autoral, as pessoas têm âncoras. Estes movimentos têm várias bandeiras, mas há algo em estado de latência que é o desejo de melhorar a qualidade da representação política e o desejo de melhorar e ampliar a quantidade da participação. É o que chamo de democratizar a democracia.
Qual a liga destes movimentos?
Algo que os une é melhorar a representação e ampliar a participação. Mas cada um, como é livre, baixa a âncora ou levanta a âncora. Se está ou não concordando com aquela causa, vai à luta, vai à praça. Há uma liberdade, uma mobilidade. Não existe a velha forma do comando e se pode negociar pelo conjunto porque é um processo horizontal e com grande quantidade de pessoas. É por isso que há uma dificuldade grande dos que não conseguem perceber isso, de conversar com esses movimentos. Você não pode falar por um grupo achando que fala por todos. Nesta borda não tem centro, uma hora você é arco, outra hora é flecha; uma hora você lidera, outra hora é liderado. Neste momento me sinto liderada por este novo sujeito político e espero que se consiga fazer do Brasil a referência que poderia ser, de uma nova economia, que faça o deslocamento para modelos sustentáveis.
A redução da tarifa pode parar o movimento nas ruas?
Isso é algo que a gente precisa ver. Não são apenas os 20, 30 ou 40 centavos. O que está colocado é uma demanda por protagonismo político. As pessoas não querem mais continuar na posição em que foram colocadas pelos grandes partidos, que monopolizam a política. Não querem mais ficar como meros espectadores. Querem se reconectar com a potência da transformação política. Só que agora este novo sujeito político é autor, mobilizador e protagonista daquilo em que acredita.
O que as manifestações nas ruas estão dizendo?
Estão dizendo: vocês foram eleitos para me representar e estão nos substituindo, nós estamos retomando a prerrogativa de quem não está se sentindo legitimamente representado.
As pesquisas mostram que há um descontentamento com os partidos e com as instituições. Como a senhora, que tem o discurso da nova forma de fazer política, acredita que se canaliza este pessoal para a politica institucional, porque é ela que governa?
O que está acontecendo no mundo é o que chamo de democratizar a democracia. Temos que aprender que, em alguns momentos, em vez de ter uma reação reativa, pode-se ter uma reação de descontinuidade produtiva.
O que é isso?
É quando se introduz um freio a algumas práticas estagnadoras do processo de transformação - ao que significa mais do mesmo - e se começa a introduzir novos elementos que podem criar novas possibilidades.
Vivemos esse momento?
Não só o Brasil, é um momento do mundo. A borda quer se movimentar e questiona o centro estagnado, do poder pelo poder, o dinheiro pelo dinheiro. Na minha opinião há um desejo de se reconectar com a potência política. Qual o risco? A fragmentação, de não se conectar com a ideia de interesse coletivo. A fragmentação não levará a nada.
Como evitá-la?
Tem que encontrar a união na diversidade. Aprender a lidar com a ideia dos paradoxos. Isso pode ter uma força produtiva, criativa e livre para um novo boom civilizatório, que é o que espero que seja. A minha perspectiva é de longo prazo, de mantenedora de utopias. Estou vendo esta movimentação desde 1996, tenho percebido estas mudanças, tenho percebido que tem uma borda que está se descolando.
Isso já aconteceu antes?
Já vivemos isso em outros momentos da História. Existem aqueles que têm uma atitude arrogante e autoritária, de querer desqualificar ou assimilar. Estamos em processo de construção e desconstrução. Mas o processo politico é único, não existe repetição. Você se torna um conservador quando começa a querer administrar o sucesso na política. Quando quer transformar o ato criativo em uma fórmula e repetir esta fórmula para se manter no sucesso. A política é um ato único, produtivo, criativo e livre. E neste momento nós vivemos a beleza destes atos no mundo inteiro. E serão assim se imprimirem cada vez mais a cultura de paz, a ideia de interesse público, de interesse coletivo. No mundo inteiro as pessoas estão prospectando novas formas de realização para a democracia.
As demandas são muitas nas passeatas. Como evitar que termine em frustração?
Os jovens no Chile se mobilizaram e tiveram vitórias em relação às questões da educação. Ali surgiu um novo sujeito politico. Mesmo com tudo o que está acontecendo nos países da primavera árabe, não vai ser mais como antes. Essas movimentações têm algo que não pode ser medido no imediato.
Os protestos têm qualidade política?
No país do futebol, próximo à Copa do Mundo e em plena Copa das Confederações, as pessoas dizem claramente: "Queremos que o dinheiro do país seja investido em educação, em saúde, em segurança". Isso é um avanço, tem qualidade política. Podem dizer: "Ah, mas vai passar e não vai dar em nada." Talvez este novo sujeito politico tenha mais potência para as grandes transformações positivas do que tiveram as grandes mobilizações do ABC paulista que nos trouxeram até aqui, com os ganhos e as derrotas que tivemos. Porque os que eram transformadores e revolucionários, depois se tornaram conservadores. Esse novo sujeito político é desse tempo, da mesma forma que os sonhadores da década de 70, 80, 90 como foi o Lula, como foi o Florestan (Fernandes), como foi Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Marilena Chauí e tanta gente que foi a sustentação daqueles movimentos. E muita gente era conservador e ficava tentando reter a corrente de água, se colocavam contra. Mas existiram aqueles que contribuíram para que algo pudesse surgir.
Como se decifram este movimento?
Nesse momento, há necessidade de um olhar de aprendizagem, de desconstrução das nossas verdades e certezas, e de humildade. No século XXI, com a internet, com a quebra da intermediação da informação, não é possível manter o monopólio da política. É preciso um novo arranjo em que os processos de tomada de decisão sejam mais flexíveis e horizontalizados.
Depois da tarifa de transporte ter baixado, o que sobra nestes movimentos no Brasil?
Não é o que sobra, é o que continua. Continuará com certeza a latência que está por trás do que levou milhares e milhares de pessoas às ruas. Elas não estão indo só pela tarifa, mas para dizer que não querem ser meros espectadores. Isso está acontecendo há algum tempo. As pessoas estão achando que podem continuar combinando em suas alcovas os interesses do país e os manifestantes estão dizendo que não querem mais estes segredos na República. É isso que está sendo dito.
Como dá liga com a política institucional que se tem hoje?
Infelizmente os partidos foram se tornando projetos de poder pelo poder, achando que estão no controle. Veja as pesquisas: 84% da população não queria mudanças no Código Florestal. Não se deu ouvido. Fizeram uma mobilização de 1,5 milhão de pessoas contra o Renan (Calheiros), não deram a mínima bola e até desqualificavam: "Isso é coisa no virtual, na internet, não vale". E eu repetia: vai transbordar. Agora há que haver uma elaboração no acolhimento de tudo isso que está acontecendo. O Brasil é o lugar onde é possível que a força transformadora dessa borda que está aí se movimentando seja uma mutação e não uma ruptura abrupta.
O que é isso?
Uma mutação possibilitadora. Quando começamos o processo da Rede Sustentabilidade dizíamos que não é apenas um partido novo, é um novo partido que terá que ser horizontal, que não terá a velha fórmula estagnada e verticalizada e que tem que ser uma ferramenta para tentar contribuir com este novo sujeito politico que surge. Acho que os antigos partidos políticos vão ter que se repensar. Para mim, que estou há mais de 30 anos nesta borda, existe uma certa leveza.
Por quê?
Eu me sinto representada por esta borda que está se movimentando.
O que é ativismo móvel?
Não tem como ser paralisado, tem mobilidade. Vivemos um momento de agregação dispersiva, pessoas que vão se agregando em cima de ideais maiores e mais difusos. As pessoas querem ética na política, querem um mundo melhor. Isso possibilita uma agregação, mas que é dispersiva.
Por que dispersiva?
Porque ao estar integrados a estes grandes ideais, as pessoas se dispersam para as suas causas. E isso faz uma dispersão agregadora. Imantadas por este ideal as pessoas vão se agregando, uma em torno das outras. Eu pude ver esta agregação dispersiva e esta dispersão agregadora agora. Vejo no mundo inteiro e agora no Brasil.
Mas como tudo é muito espontâneo, há falta de controle e espaço para oportunismo e violência, que podem fazer tudo recuar.
Pois é. Mas esse é um processo que está em disputa para ganhar uma forma, que espero seja de uma cultura de paz. Este sujeito político novo está surgindo agora. O modelo que está aí estagnado levou 400 anos para ser o que é, e estão cobrando que este novo movimento já tenha as respostas? Os jovens, quando vão às praças na Espanha dizem "Nós ainda não temos respostas, mas já temos uma certeza: o que está aí não dá conta do nosso futuro". Neste momento é preciso humildade de saber, como alguém já disse, que a verdade não está com nenhum de nós, mas entre nós. Todo organismo, para existir, precisa preservar algo. A democracia e suas instituições têm algo para ser preservado, mas têm algo para ser modificado. E não entender a necessidade dessa mudança é colocar em xeque as coisas boas que devem ser preservadas.
Os governos atenderam à demanda da tarifa. Como a senhora analisa esta atitude?
Temos que ter um aprendizado disso. Uma coisa é uma demanda objetiva que pode até ser atendida. Mas tem um tesouro muito maior para ser trabalhado, que é o que está em estado de latência. Se formos capazes de entender, todos nós, esta latência que está aí, vamos sair maiores e melhores para a democracia do que antes deste movimento aflorar. Alguém não se engane que vai dar os vinte centavos e "Pelo amor de Deus, saiam da rua, vão pra casa", e isso está resolvido. Não é isso, pelo contrário. Tem uma riqueza enorme para ser trabalhada, porque este novo sujeito político é protagonista. É melhor procurar entender o que pode ser produzido a partir daí.
Como melhorar o transporte público em uma cidade como São Paulo? Com pedágio urbano? Esse tema opõe ricos e pobres?
Transporte público de qualidade não opõe quem tem dinheiro a quem não tem. Pelo contrário. As pessoas estão ávidas por poder deixar o carro na garagem e ir com segurança ao trabalho, ao parque, ao cinema. As pessoas sabem que em outros lugares do mundo isso acontece. Porque o imposto sobre petróleo não pode ser utilizado para melhorar o sistema de transporte? Porque este dinheiro não pode melhorar a vida das pessoas nas cidades? 84% das pessoas vivem em cidades. Não é uma demanda difusa, difícil de ser alcançada e poderia beneficiar milhões. Dizem que as passeatas estão impedindo as pessoas de ir e vir. Quem é que assegura o direito de ir e vir quando se fica uma hora no trânsito, porque em vez de botar dinheiro para transporte público se incentiva sem nenhuma contrapartida a indústria automobilística para encher cada vez mais as cidades de carros?
Nos últimos 10 anos a prioridade tem sido incluir pessoas no consumo, na cultura, em mais educação. Mas o Tesouro não é um buraco sem fundo...
Mas pode fazer escolhas estratégicas. Eu não sei se o dinheiro do BNDES deveria ir para a JBS ou se poderia ir para outras ações. Onde é feita a discussão? O orçamento público deve levar em conta as demandas da sociedade por bens e serviços que possam melhorar a qualidade de vida. É isso o que as pessoas estão dizendo. Nestes vinte centavos, que é o símbolo deste protesto, estão incluídos o hospital que não funciona, o problema da segurança e a falta de canais para que se saiba qual é a agenda estratégica do país. Porque se tem políticas de curto prazo só para alongar o prazo dos políticos? As pessoas estão dizendo: façam políticas de longo prazo em seus curtos prazos políticos. Não é o momento de se preocupar com as próximas eleições, mas com as próximas gerações.
Porque a senhora não está nestes protestos? Pensou em ir?
Eu estou nestes protestos. Eles estão em mim. Há muitos anos estou andando este Brasil inteiro, no ano passado dei 129 palestras e vejo que está surgindo este novo sujeito político. Agora, se vou no protesto, vou como mais um. Minha escolha de não estar ali é para não ter nenhuma atitude de instrumentalização ou seria incoerente com o que estou dizendo. Que este ativismo é autoral, que não é dirigido pelo partido, nem pelo sindicato nem pelos líderes carismáticos. As pessoas têm que parar de se iludir que existem salvadores da Pátria. Existem homens e mulheres que juntos se dispõem a construir a Pátria.
Nas manifestações se recolheram assinaturas para o Rede?
Não quisemos fazer isso por respeito a este ativismo autoral, estamos colhendo assinaturas nos espaços adequados. Seria uma contradição. Este partido não é para ter os movimentos a serviço dele, mas para contribuir com eles. Não pode ser goela abaixo.
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Agenda estratégica do país cabe nos 20 centavos, diz Marina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU