Por: André | 07 Junho 2013
Parece-me que, ao fazer esta leitura dos dois relatos que a liturgia de hoje nos oferece, o importante não é saber se esses dois relatos têm um valor material e histórico seguro, mas acima de tudo nos questionar sobre a nossa concepção de Deus e sobre a nossa atitude em relação à vida, ao sofrimento e à morte.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 10º Domingo do Tempo Comum - Ciclo C do Ano Litúrgico. A tradução é do Cepat.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
Primeira leitura: 1Rs 17, 17-24
Evangelho: Lc 7, 11-17
A Boa Nova que nos é dirigida hoje é que Deus nos quer vivos: ele não pune ninguém, não faz sofrer, não mata. Mas atenção! Se nós lermos o evangelho e a primeira leitura de uma maneira literal e fundamentalista, dizendo que Jesus ressuscitou um jovem que acabava de morrer ou ainda que o profeta Elias também ressuscitou o filho da viúva de Sarepta, sem mais... isso significa que não compreendemos nada dos textos bíblicos que nos são proclamados. Bem diz o padre francês Léon Paillot: nós precisamos entrar na inteligência desta Boa Nova; caso contrário, corremos o risco de banalizar os relatos ou ainda de praticar magia. O que devemos compreender nesses dois relatos?
1. As duas viúvas
Este relato evangélico, que só aparece em Lucas, é quase uma cópia da primeira leitura de hoje. Trata-se de duas viúvas: a de Sarepta, no Primeiro Livros dos Reis, e a de Naim, no Evangelho de Lucas. Ser viúva, no tempo bíblico, era uma condição de miséria. Não podia haver situação pior para uma mulher do que a de não ter filhos para se ocuparem dela. Imagine uma mulher pobre que não tem nenhuma renda: sem assistência social nem pensão... Como pode atender às suas necessidades básicas, após a morte de seu marido? Não é por nada que na Bíblia, os autores recomendam com frequência vir em socorro das viúvas e dos órfãos, porque para sobreviver elas são obrigadas a mendigar.
No entanto, as duas viúvas em questão nos dois relatos têm, cada uma, um filho. Que infortúnio humano! E comentando o relato de Lucas, o padre Léon Paillot escreve: “A viúva de Naim tinha uma chance: seu filho. Economicamente falando, era importante: ela tinha como viver. E no plano afetivo, ela não estava sozinha: seu filho era para ela como uma presença continuada de seu marido, como o testemunho de um grande amor. E seu filho morre! Coloquem-se no lugar desta mulher. Ela está agora na miséria mais extrema. Seu horizonte está totalmente encoberto. Não há mais nenhum futuro para ela. É como se ela também tivesse morrido”. Podemos dizer a mesma coisa em relação à viúva de Sarepta, no Primeiro Livro dos Reis.
2. Os rostos de Deus
Lucas nos apresenta um rosto de Deus compassivo diante da miséria humana. Ele não pode passar ao lado disso. É porque, nos diz Lucas, chamando Jesus de Senhor (portanto o Ressuscitado), ele escreve: “Ao vê-la, o Senhor teve compaixão dela e lhe disse: ‘Não chore!’” (Lc 7, 13). Léon Paillot escreve: “A expressão francesa ‘teve compaixão’ não consegue traduzir a força da palavra original, que evoca o seio maternal, o amor maternal. Deus prova os sentimentos de ternura maternal e de compaixão para com aqueles que estão na miséria”. No fundo, Deus não pode ser insensível a um tal sofrimento. Ele deve intervir para aliviar a miséria desta pobre mulher.
Mas, o que faz o Senhor? Que lição dá às pessoas que o rodeiam? Léon Paillot nos diz que há dois cortejos que se encontram na porta da cidade: a multidão que segue Jesus; uma grande multidão, alegre, que se dirige para a cidade, isto é, para o lugar da vida. A outra multidão, ao contrário, sai da cidade e se dirige para o cemitério, isto é, ao lugar da morte. No momento em que as duas multidões se encontram, Jesus as para no lugar do encontro. Léon Paillot escreve: “À multidão alegre que segue atrás da vida, Jesus diz: vocês não tem o direito de passar ao largo do sofrimento e da miséria humana sem parar. Eu, Deus, parei. Também meus discípulos devem parar. Mas, ao mesmo tempo que obriga a multidão dos seus discípulos a parar, ele para a outra multidão, igualmente considerável, que acompanha o morto para o cemitério, para o lugar da morte. Ele intercepta o caminho da morte: Eu estou aqui para que as pessoas tenham vida”.
Essa mensagem de Lucas é uma mensagem de esperança. A morte não pode ter a última palavra sobre a vida. Deus nos quer vivos. Nós não devemos nos deixar levar pela morte; nós devemos nos deixar conduzir pela vida. Deus é quem se compadece com o sofrimento humano e que nos quer libertar.
Contrariamente à viúva de Naim, a viúva de Sarepta nos apresenta um outro rosto de Deus: um Deus que seria responsável pelas nossas desgraças: “Então ela disse a Elias: ‘Não quero nada com você, homem de Deus. Será que você veio à minha casa para lembrar minhas culpas e provocar a morte do meu filho?’” (1Rs 17, 18). Esta mulher está imbuída da mentalidade do Antigo Testamento, e esta mentalidade ainda está presente entre nós: Deus está na origem do mal, da desgraça, do sofrimento e da morte. Um Deus punitivo e vingador. Ainda hoje ouvimos expressões, tais como: Foi o bom Deus quem me puniu! Ou ainda: O que eu fiz ao bom Deus para merecer isso! Nós nos exprimimos como a viúva de Sarepta, e estamos imbuídos da mentalidade pagã ou ainda daquela do Antigo Testamento.
Há uma diferença entre os dois relatos: na primeira leitura, o profeta Elias toma o menino, estende-o sobre o leito, e por três vezes debruçou-se sobre o menino, invocando o Senhor (1Rs 17, 19.21), como se Elias quisesse abraçar a morte. Para Léon Paillot, trata-se de um mimo. Enquanto no Evangelho de Lucas Jesus não mima. Ele abraça todas as nossas mortes, ao viver até o fim a sua, após ter sido solidário com a nossa humanidade. E como ele mesmo ressuscitou, só pode dizer: “Jovem, eu lhe ordeno, levante-se” (Lc 7, 14b). O verbo levantar é o mesmo de ressuscitar. Como o Cristo ressuscitado, nos diz Lucas: “O morto sentou e começou a falar. E Jesus o entregou à sua mãe” (Lc 7, 15).
Parece-me que, ao fazer esta leitura dos dois relatos que a liturgia de hoje nos oferece, o importante não é saber se esses dois relatos têm um valor material e histórico seguro, mas acima de tudo nos questionar sobre a nossa concepção de Deus e sobre a nossa atitude em relação à vida, ao sofrimento e à morte. Léon Paillot escreve: “Mas nós, onde estamos? No Antigo Testamento ou no Novo Testamento? Cremos em um Deus vivo ou em um Deus que pune e que mata? Penso que todos, quem quer que sejamos, temos um longo caminho a percorrer para passar do tempo da suspeita e do medo, ao tempo da confiança e da fé”. E eu acrescentaria: ao tempo da esperança, porque a nossa fé nunca é uma certeza, mas sempre uma esperança.
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