06 Mai 2013
O intelectual imortal Soren Kierkegaard completa 200 anos no domingo (5). O filósofo lírico dinamarquês é amplamente considerado o pai do existencialismo, um movimento filosófico e literário que enfatiza a categoria do individual e medita sobre questões diáfanas tais como: há um sentido na vida?
O artigo é de Gordon Marino, professor de filosofia e diretor da Biblioteca Hong-Kierkegaard, no Saint Olaf College, em Northfield, Minnesota, e publicado pelo International Herald Tribune e reproduzido pelo Portal Uol, 04-05-2013.
Sem causar surpresa, o existencialismo atingiu seu zênite após a humanidade ter dado uma boa olhada em si mesma no espelho do Holocausto, mas então as lembranças desapareceram, as economias prosperaram e o existencialismo começou a parecer um pouco esgotado.
Mesmo assim, ao longo dos altos e baixos do mercado erudito, o mundo intelectual permaneceu otimista em relação a Kierkegaard, em parte porque o dinamarquês, diferente de outros membros do grêmio de Sócrates, sempre tratou do que os seres humanos enfrentam em si mesmos, a ansiedade, a depressão, o desespero e a passagem do tempo.
Há pelo menos uma dúzia de festividades acadêmicas por todo o mundo para celebração do bicentenário de Kierkegaard, e aqui, na Biblioteca Hong-Kierkegaard no Saint Olaf College, nós estamos esperando mais de 100 participantes internacionais em nossa festa de aniversário.
Em sua juventude, Kierkegaard recebeu o apelido de "gaflen", ou "o garfo", por sua capacidade de discernir as fraquezas nas outras pessoas e espetá-las para elas. Por toda sua vida autoral, Kierkegaard empunhou sua pena vermelha para espetá-las para a cristandade burguesa. Sua vida foi uma meditação sobre o que significa ter fé.
Apesar de Kierkegaard nunca ter usado a frase "salto de fé", essas palavras se tornaram sua pedra de toque. Um luterano criado em um ambiente demasiadamente devoto, Kierkegaard insistia que não havia algo como já nascer no rebanho; não havia passagem fácil, não bastava proferir uma série de silogismos para se chegar à fé.
Para Kierkegaard, fé envolvia colisão com o entendimento e uma escolha radical, ou para usar os termos de seu best-seller singular, vida e fé exigem um "ou isto ou aquilo". Acreditar ou não acreditar, mas não imaginar que se possa ter ambos. Como a maioria dos bancos vazios atesta, grande parte da Europa aceitou o desafio de Kierkegaard.
Mas Kierkegaard foi mais do que um luterano de sua tradição luterana; seus textos estão repletos de entendimentos sobre a cultura e a humanidade que podem ser trocados na moeda do secularismo.
Por exemplo, Kierkegaard floresceu no nascimento da mídia de massa. Revistas e jornais diários e semanais estavam começando a circular amplamente. Como se pudesse sentir o Facebook e o Twitter mais à frente, ele previu um tempo em que a comunicação seria instantânea, mas ninguém teria nada a dizer; ou um momento em que todos estivessem obcecados por encontrar sua voz, mas sem muita substância ou "significado profundo" por trás de suas postagens em blogs.
Em um de seus livros, Kierkegaard lamenta: "A era presente é a era da publicidade, a era dos anúncios diversos: nada acontece, mas ainda assim há publicidade instantânea". No final, Kierkegaard estava preocupado com o poder da imprensa de fomentar e formar a opinião pública, e no processo nos desobrigando da necessidade de pensar nos assuntos à fundo por conta própria.
Em um espaço de 17 anos, Kierkegaard publicou vários livros e compilou milhares de páginas de anotações de diários. Como Nietzsche e outros gênios que muitas vezes foram imolados pela força de suas próprias ideias, Kierkegaard sacrificou seu corpo na dança da riqueza de seus pensamentos. Consciente de seus próprios poderes sobrenaturais, ele escreveu: "Os gênios são como as trovoadas: vão contra o vento, aterrorizam as pessoas, purificam o ar".
É claro, todos nós conhecemos horas de inspiração, mas viver com a Musa nos ombros ano após ano significa habitar próximo da fronteira do que às vezes pode parecer loucura. Não é uma tarefa fácil.
Apenas para colher algumas poucas ameixas da ampla árvore da obra extraordinária de Kierkegaard: ele não foi o que rotularíamos como um eticista. Ele não dedicou suas energias a tentar encontrar uma base racional para a ética, nem se ocupou em destrinchar dilemas morais. Mesmo assim, ele tem algo muito significativo a dizer sobre a ética.
Segundo Kierkegaard, não é mais conhecimento ou capacidade de análise que é necessário para se levar uma vida zelosa. Se conhecimento fosse a questão, então a ética seria uma espécie de talento. Algumas pessoas nasceriam gênios morais e outras palermas morais. Mesmo assim, até onde ele e Kant podem dizer, quando se trata de bem e mal, nós todos estamos em pé de igualdade.
Diferente da indústria da ética que está pulsando atualmente, Kierkegaard acreditava que a principal tarefa é se ater ao que sabemos, e evitar nos enganarmos, porque não gostaremos dos sacrifícios que fazer a coisa certa provavelmente exigirá. Como colocou Kierkegaard, quando nos vemos em um dilema moral, nós não apenas procuramos a saída fácil. Em vez disso, ele escreve, "deixe passar algum tempo e então abre-se um ínterim: cuidaremos disso amanhã".
E depois de amanhã, nós geralmente decidimos que a saída certa era, afinal, a saída fácil. E assim o provocador de Copenhague conclui: "Assim vive talvez a maioria de pessoas, trabalhando gradualmente para obscurecer o seu juízo ético e ético-religioso, o que os leva a decisões e conclusões com as quais sua natureza inferior não se importa".
Há epifanias em cada canto da obra de Kierkegaard, mas paradoxalmente, do início ao fim, o homem que parecia saber sobre tudo foi gentilmente enfático: "A maioria dos homens (...) vive e morre com a impressão de que a vida é simplesmente uma questão de entender mais e mais, e que se pudéssemos ter vidas mais longas, essa vida continuaria sendo um longo crescimento contínuo de entendimento. Quantos deles já experimentaram a maturidade de descobrir que chega um momento crítico em que tudo é invertido, após o qual o sentido se torna entender mais e mais que há algo que não pode ser entendido."
E o que significaria entender que há algo de vital importância na vida que não pode ser entendido? Com as vias indiretas de um mestre zen, nosso aniversariante nos ajuda a destravar esse e outros koans que atingem o âmago da questão do que significa ser um ser humano.
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Bicentenário lembra filósofo dinamarquês Kierkegaard, "pai do existencialismo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU