24 Abril 2013
O médico Paul McMaster não consegue se esquecer da primeira vez que teve de escolher, entre dezenas de feridos em uma explosão na Somália, as crianças que tentaria salvar e as que deixaria morrer - não havia tempo ou recursos para todos. Há uma década separando a vida da morte nos hospitais de campanha que leva aos campos de guerra, este cirurgião da Médicos Sem Fronteiras (MSF) afirma, irredutível: "A Síria é, de longe, a maior tragédia humana deste século".
A reportagem e a entrevista é de Adriana Carranca e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 24-04-2013.
Aos 70 anos, ele cruzou as montanhas da fronteira com a Turquia à noite, arrastando-se "como um crocodilo", e entrou secretamente na Síria para dar apoio à equipe em um centro cirúrgico improvisado no subterrâneo de uma caverna. Três semanas depois, o local foi bombardeado pelas forças de Bashar Assad.
Ex-professor de cirurgia nas universidades de Cambridge e Birmingham, McMaster esteve em países como Somália, Ruanda, Congo, Burundi, Sri Lanka, Afeganistão, Paquistão e Haiti. Aqui ele conta o que viu na Síria.
Eis a e entrevista.
Qual a situação na Síria?
(Ele mostra a foto de uma sala de cirurgia no que parece ser um subterrâneo com teto e paredes de terra). Este era um hospital de campanha improvisado dentro de uma caverna, muito próximo de uma das cidades palco da guerra (possivelmente Alepo). Nós saímos desse lugar em dezembro, pois senti que estava muito perigoso. Havia bombardeios constantes e próximos. Quando as bombas caíam, as lâmpadas balançavam, partes do teto ruía. Eu sabia que era uma questão de tempo. Então, mudamos para outro lugar, uma granja, e improvisamos o hospital ali. Três semanas depois, o antigo local foi bombardeado e completamente destruído. Teríamos morrido todos!
Como suas equipes chegaram às áreas de conflito?
Atravessamos as montanhas à noite, nos arrastando como crocodilos. Você vai até um ponto de travessia na fronteira com a Turquia e um jovem guia (partidários dos rebeldes ou que ajudam estrangeiros a entrar no país por dinheiro) se oferece para carregar sua mochila, acende um cigarro e some na montanha. Você só precisa segui-lo. É assim que estamos conseguindo colocar nossas equipes dentro da Síria. Mas dos médicos, eles não cobram, só de jornalistas (risos).
Há sinal do governo sírio sobre o acesso à ajuda humanitária?
Se quer saber se temos autorização para operar na Síria, não, não temos! Bombardearam o meu hospital! Aquilo foi uma mensagem muito clara (do governo sírio).
Onde as equipes operam?
Estamos operando 3 hospitais de campanha no noroeste do país, não posso revelar o local exato. Mas precisamos de mais gente e suplementos. O conflito se expandiu para o sul, de Alepo a Homs, de Damasco até Dera. Toda essa faixa do oeste do país, na fronteira com a Turquia, Líbano e Jordânia está em conflito. Estamos fazendo de tudo para chegar ao sul. Nosso temor é o de que a situação seja ainda pior onde não temos acesso.
Quais são as condições nos hospitais de campanha?
Não estão em grandes tendas, como os que temos no Haiti ou Afeganistão. Na Síria, temos de montar os hospitais subterrâneos, onde nossos cirurgiões podem operar em relativa segurança. E estão lotados, inundados de sangue! Tivemos dificuldades de recrutar médicos, as enfermeiras são pessoas das redondezas que vieram oferecer ajuda e nós as treinamos. A segurança limita nossos passos e a chegada do material. Então, o que estamos fazendo na Síria é o atendimento clássico de guerra: gerenciar o desastre com recursos limitados. Não podemos ter uma UTI numa caverna, não temos banco de sangue suficiente, o que podemos fazer são cirurgias emergenciais que salvam vidas.
Quando o sr fala em atendimento clássico de guerra com recursos limitados, o sr quer dizer que precisa fazer escolhas?
Esse é o tipo da coisa que temos de fazer num cenário de guerra. Quando uma bomba explode e os feridos estão chegando, alguém tem de fazer essa escolha. Você tem os que podem esperar - com fraturas, ferimentos que não precisam de cirurgia - e os que estão em estado gravíssimo. Se focarmos nestes, a equipe não faz mais nada. É o grupo do meio que você trata. Aqueles com ferimentos sérios, que precisam de uma cirurgia que vai durar 1h, 1h30 e pode-se atender o próximo caso e o próximo. A ética que é o maior benefício para o maior número. Em São Paulo ou em Londres você trabalha com o principio igualitário: o que quer que um paciente precise, deve-se atender. No cenário de uma guerra, quando uma bomba explode e os feridos estão chegando, isso não é possível, e alguém tem de fazer essa escolha.
O sr. se lembra quando teve de fazer essa escolha pela primeira vez?
Sim. Somália... Eu me lembro bem. Sempre me lembrarei. Houve uma grande explosão a bomba em Kismaayo, no sul da Somália, e cinco crianças estavam entre as vítimas. Tínhamos cerca de 40 ou 45 feridos, quase todos graves, muitas amputações. Eu tive de decidir que duas das crianças nós não tentaríamos salvar, porque os ferimentos eram tão severos que consumiriam recursos e tempo de cirurgia com os quais poderíamos salvar mais vidas. Tenho três netos, e essa é uma escolha muito dura a fazer. (Ele faz um longo silêncio). Parte do meu trabalho para a MSF agora é preparar médicos para enfrentar esse tipo de situação no campo.
Como é a situação dos refugiados?
Há 1,5 milhão de refugiados em campos na Turquia, Líbano, Jordânia e um pouco no Iraque, segundo a ONU. Nos últimos 4 ou 5 meses, o número aumentou muito e esses países já não conseguem absorvê-los. Desde dezembro, temos recebido um número crescente de feridos vindos do sul da Síria - 300 por mês estão chegando à Jordânia! E não estamos falando de soldados. Mais de 70% das pessoas que tratamos são civis feridos ou pessoas com sérias necessidades médicas, como diabéticos, que estão sem medicamentos.
Pelas condições dos feridos que chegam à Jordânia, o que o sr. pode dizer sobre o que está ocorrendo no sul da Síria?
Estamos vendo ferimentos a bomba e ferimentos de artilharia. Veja, sou um simples médico, não posso comentar, tenho de ser neutros e imparcial... Mas isso é uma guerra civil completa e de larga escala! No campo, vamos helicópteros M25 despejar bombas cluster (ele faz um gesto com as mãos, mostrando como o artefato explode em diferentes direções) e elas provocam destruição em massa. Você se sente esmagado por isso.
Entre os refugiados, quanto estão seriamente feridos?
A maioria. Eu diria cerca de 80 a 85% dos casos são severos. E estes são os que conseguem chegar. Muitos não podem se mover, têm ferimentos e fraturas múltiplas graves, e ficam para trás, assim como os velhos e as crianças, encolhidos de medo. As ambulâncias muitas vezes chegam trazendo só corpos. O transporte é feito por organizações sírias ou informalmente. Na fronteira, têm de esperar por escolta da polícia local e muitos morrem no caminho. Estamos em negociação com o ministério da saúde da Jordânia para colocar um hospital cirúrgico no campo de refugiados. Nossa esperança é de que, dali, possamos encontrar uma forma de chegar ao sul da Síria. Atualmente, isso não é possível, as autoridades sírias estão restringindo os deslocamentos dentro do país e não é seguro.
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'Síria é a maior tragédia humana do século', diz cirurgião do MSF - Instituto Humanitas Unisinos - IHU