19 Abril 2013
"Existe um preconceito histórico contra os povos indígenas que continua ainda muito vivo", diz a antropóloga e demógrafa Marta Maria do Amaral Azevedo, há quase um ano na presidência da Fundação Nacional do Índio, a Funai. "Acreditamos que, conhecendo mais, o preconceito diminui. Como os povos indígenas vivem e vão continuar vivendo no território brasileiro é questão que diz respeito a todos nós."
São cerca de 250 etnias e 800 mil indígenas autodeclarados no Brasil, segundo o Brasil Indígena, publicação que Funai e IBGE lançam hoje. Desses, 500 mil vivem em terras indígenas e 300 mil não se reconhecem como pertencendo a um povo específico. Sofrem pressões da expansão da fronteira agrícola, da mineração, dos projetos de infraestrutura, de conflitos de terra. "Em regiões onde a ocupação econômica é mais antiga, há mais problemas. Ficou um passivo que começa a surgir agora", diz.
A reportagem é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 19-04-2013.
A Funai fica no meio deste tiroteio. Nesta entrevista, Marta Azevedo rebate críticas de que o órgão atrasa licenciamentos, diz que uma meta da política indigenista atual é diminuir a desigualdade entre os indicadores desses povos e os dos não indígenas e afirma que a Funai foi abandonada em governos anteriores. "Estamos fazendo uma reestruturação e ela é muito recente."
Eis a entrevista.
Há críticas à Funai de falta de agilidade nos processos de licenciamento. O que acha delas?
São completamente descabidas. A Funai tem obedecido todos os prazos legais estipulados pela regulamentação do licenciamento ambiental. Não somos um órgão licenciador, participamos na análise do componente indígena. E isso é muito recente. Foi o ex-presidente Márcio Meira que, a partir da reestruturação da Funai, criou uma pequena estrutura de técnicos para pensar essa questão. Antes isso era feito de uma maneira informal. A Funai fazia o diálogo com os povos indígenas, como sempre foi seu papel, mas não tinha um procedimento técnico com prazos e padrões para relatórios e estudos. Em 2012 criamos uma coordenação geral específica de licenciamento. Estamos aumentando o número de equipes técnicas, mas acho que não existe ainda nenhum mestrado ou doutorado em universidade que especialize antropólogos, biólogos e engenheiros florestais no componente indígena do licenciamento ambiental. Mas o governo tem valorizado a ação da Funai nos processos de licenciamento.
Como?
A Funai é o órgão que coordena e organiza a política indigenista do Estado brasileiro. Somos chamados a todas as reuniões que têm alguma relação com a questão indígena. O governo federal entende que a participação da Funai dá vez, voz e visibilidade à questão indígena em todos os processos que têm impacto sobre esses povos, que damos lisura a esses processos. Fazemos os termos de referência para os estudos de impacto ambiental que o empreendedor contrata e estudamos e avaliamos o componente indígena.
Porque se diz que a Funai tem sido ou é tão controversa?
Não é a Funai que gera controvérsias. O que gera polêmica, e aí não é uma questão só do governo federal, mas da sociedade brasileira, são modelos de desenvolvimento, a presença de povos indígenas em um Estado, como eles vão ficar. Questões que afetam a todos nós.
Por que a questão indígena é tão complicada?
Até a Constituição de 1988, os indígenas no Brasil eram vistos como uma categoria que ia se integrar à sociedade nacional. Era assim que se pensava: "A gente cerca ali uma aldeia para aqueles índios enquanto eles aprendem português e aprendem a viver na cidade, como não índios." Infelizmente até hoje tem muita gente que tem ainda essa visão, que os índios são obrigados a se integrar à sociedade nacional e a viver da mesma maneira que qualquer pessoa em qualquer cidade.
Por que é uma visão ruim?
Porque é colonialista. De que são obrigados, quando eles têm direito. Têm direito de morar na cidade se quiserem, direito de ir e vir como qualquer outro cidadão. Essa visão de obrigar os povos nativos a viverem como povos ocidentais é algo que mudou no mundo todo, não só no Brasil. Garantidos pela Constituição Federal, os índios têm direito de viver à sua maneira, falar suas línguas, processar suas crenças, sua economia. A perspectiva de futuro vai depender de cada um desses povos, de como se organizam, de como pensam o futuro junto aos brasileiros. E há aí outro problema.
Qual?
Todos os povos indígenas perderam população até 1960 e só depois começaram a ter uma recuperação. O aumento populacional exerce pressões sobre a demanda por terra. Muitas vezes isso assusta o pessoal que está fora da Amazônia Legal.
Qual é a diferença?
Depois da Constituição as terras indígenas começaram a ser demarcadas com outros critérios. Não era mais só fazer uma cerca ao redor das casas, mas tratava-se de demarcar terra para uso de roça, caça e pesca, para sobrevivência física e cultural dos povos indígenas. Até 2000, a prioridade foi dada para demarcar na Amazônia legal e com essa concepção. Mas fora de lá o que temos são pequeníssimas porções de terras demarcadas e com a concepção de aldeamento. Em regiões onde a ocupação econômica é mais antiga, há muito mais problemas. Ficou um passivo que começa a surgir agora.
Os guarani kaiowá são um exemplo?
Exatamente. O Mato Grosso do Sul foi criado em 1978 e veio o boom do desenvolvimento do Estado com a soja e gado, a abertura de fazendas. Essas comunidades guarani kaiowá viviam nesses matos onde as fazendas eram abertas. Eles então eram retirados de lá e colocados em oito reservas antigas, demarcadas em 1917, 1925. Essas áreas serviram para que os índios fossem sendo colocados lá quando o Estado ou a União titulava as fazendas ou quando eram vendidas. Houve um esbulho, eles foram tirados de seus locais tradicionais e jogados nas reservas antigas. Esse processo continuou a acontecer nos anos 90 com muita pouca ação dos governos estadual e federal. Hoje então, se tem um passivo enorme nessa questão. O problema foi ficando para a frente e foi se avolumando. E agora, a geração que foi retirada desses lugares originários, que hoje está com 60, 70 anos, diz que quer morrer no lugar em que nasceu. Sempre foi dito a eles que um dia poderiam voltar.
A Funai está resolvendo?
Temos processos de identificação desses territórios antigos, já publicamos um dos relatórios, vamos publicar outros. É uma questão muito complexa. Onde temos esses territórios antigos o Estado já titulou, ou a União, ou o fazendeiro comprou, é difícil. Temos tentado fazer um diálogo tanto com o governo estadual como com parlamentares para achar uma solução pacífica para os guarani kaiowá. É uma prioridade da minha gestão, porque acredito que são um dos povos com maior indicador de vulnerabilidade.
O conflito de terras está no cerne da dificuldade de se resolver a questão indígena no Brasil?
Não só. Nossa política indigenista é demarcar terra, mas não só isso. Temos que pensar junto com os povos indígenas o que fazer com os territórios, como fazer a gestão ambiental e territorial dessas terras. A outra grande missão da política indigenista atual do governo federal é melhorar a qualidade de vida desses povos, seus indicadores de saúde, de segurança alimentar. Diminuir a desigualdade que existe entre os indicadores dos povos indígenas e dos não indígenas.
Temos que garantir aos índios, por exemplo, seu direito à documentação. Parece um detalhe bobo, mas os índios eram proibidos de colocar nome próprio nas suas línguas. Se iam estudar em uma escola, a escola não aceitava a matrícula, porque dizia que aquele era um nome muito esquisito.
Procuramos garantir que eles tenham este direito, que as escolas ensinem nas línguas maternas, que as atividades produtivas levem em conta seus conhecimentos tradicionais. Em 5 de junho, a presidente Dilma assinou a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial (PNGAT) que é exatamente isso, os princípios da política indigenista brasileira atual. Temos que conhecer, respeitar e levar em conta os conhecimentos tradicionais desses povos e com eles formular planos de gestão ambiental e territorial para as terras indígenas.
Como vê as ameaças que estão sobre os índios hoje? Há a pressão da mineração, a PEC indígena, a ocupação ao redor...
São ameaças históricas. Existe um preconceito histórico contra os povos indígenas, que continua ainda muito vivo. Acreditamos que conhecendo mais, tendo um diálogo, o preconceito diminui. As ameaças dependem de lugar para lugar, mas elas são pautadas pela falta de conhecimento. Como os povos indígenas vivem e vão continuar vivendo no território brasileiro é questão que diz respeito a todos nós.
Outro ponto de tensão são os projetos de desenvolvimento.
Sempre que há esses projetos, a Funai é chamada para tentar trazer os índios para essa conversa. E entender onde esses projetos irão impactar e ver junto com os índios como fazer. Se existe o "Luz para Todos" temos que ver com eles como a luz irá chegar às aldeias, como vão pagar, como será feita a manutenção das linhas. Os povos indígenas têm que participar como sujeitos desses projetos e não só como receptores.
Que falhas a Funai tem?
Foram muitos anos de pouquíssima valorização da instituição. Ficou largada, sem nenhum concurso. Sua reestruturação é muito recente, de 2009, 2010. Abriu-se um concurso porque grande parte dos 3 mil servidores da Funai se aposenta em julho. Conseguimos umas 600 vagas e agora estamos fazendo gestões para conseguir abrir novos concursos. Há áreas específicas que queremos fortalecer, como o licenciamento ambiental e a área social. Agora estamos em uma missão de qualificar e aumentar a nossa presença nas regiões, nas 38 coordenações regionais. Isso é absolutamente fundamental, é onde os índios têm suas necessidades.
Mas ela não representa os índios, essa é outra confusão, não?
Até a Constituição de 88, a Funai era tutora, os índios eram considerados incapazes juridicamente. Mas a tutela acabou ali. A Funai é um órgão do governo, não os representa. Eles se representam a si próprios, têm seus movimentos. São mais de 400 organizações indígenas hoje no Brasil.
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Marta Azevedo diz que Funai foi abandonada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU