10 Março 2013
"Nutro a séria suspeita de que, tal fracasso e colapso de seu edifício teológico, lhe tirou “o necessário vigor do corpo e do espírito” a ponto de, como confessa “sentir incapacidade” de exercer seu ministério. Cativo de sua própria teologia, não lhe restou outra alternativa senão honestamente renunciar", escreve Leonardo Boff, teólogo e filósofo.
Eis o artigo.
É sempre arriscado nomear um teólogo para a função de Papa. Ele pode fazer de sua teologia particular, a teologia universal da Igreja e impô-la a todo o mundo. Suspeito que esse foi o caso de Bento XVI, primeiramente enquanto Cardeal, nomeado Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé (ex-Inquisição) e depois Papa. Tal fato não goza de legitimidade e se transforma em fonte de condenações injustas. Efetivamente condenou mais de cem teólogos e teólogas por não se enquadrarem em sua leitura teológica da Igreja e do mundo.
Entre as razões para sua renúncia, o Papa alega “diminuição de vigor do corpo e do espírito”e de “sua incapacidade” de enfrentar as questões que dificultavam o exercício de sua missão. Por detrás desta formulação, estimo que se oculta a razão mais profunda de sua renúncia: a percepção do colapso de sua teologia e do fracasso do modelo de Igreja que quis implementar. Uma monarquia absolutista não é tão absoluta a ponto de dobrar a inércia de envelhecidas estruturas curiais.
As teses centrais de sua teologia sempre foram problemáticas para a comunidade teológica. Três delas acabaram refutadas pelos fatos: o conceito de Igreja como “pequeno mundo reconciliado”; a Cidade dos Homens só ganha valor diante de Deus passando pela mediação da Cidade de Deus; e o famoso “subsistit” que significa: só na Igreja Católica subsiste a verdadeira Igreja de Cristo; todas as demais “igrejas’ não podem ser designadas igrejas. Esta compreensão estreita de uma inteligência aguda mas refém de si mesma, não tinha a força intrínseca suficiente e a adesão para ser implementada. Bento XVI teria reconhecido o colapso e coerentemente renunciado? Há razões para esta hipótese.
O Papa emérito teve em Santo Agostinho seu mestre e inspirarador. De Agostinho assumiu a perspectiva de base, começando com sua exdrúxula teoria do pecado original (se transmite pelo ato sexual da geração). Isso faz com que toda a humanidade seja uma “massa condenada”. Mas dentro dela, Deus por Cristo, instaurou uma célula salvadora, representada pela Igreja. Ela é “um pequeno mundo reconciliado” que tem a representação (Vertretung) do resto da humanidade perdida. Não é necessário que tenha muitos membros. Basta poucos, contanto que sejam puros e santos. Ratzinger completou-a com a seguinte reflexão: a Igreja é constituida por Cristo e os Doze Apóstolos. Por isso é apostólica. Desconsidera os discípulos, as mulheres e as massas que seguiam Jesus. Para ele não contam. São atingidas pela representação (Vertretung) que “o pequeno mundo reconciliado” assume. Esse modelo eclesiológico não dá conta do vasto mundo globalizado. Quis então fazer da Europa “o mundo reconciliado” para reconquistar a humanidade. Fracassou porque o projeto não foi assumido por ninguém e até posto a ridículo.
A segunda tese tirada também de Santo Agostinho é sua leitura da história: o confronto entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. Na Cidade de Deus está a graça e a salvação: ela é o único pedágio que dá acesso à salvação. A Cidade dos Homens é construída pelo esforço humano. Mas como já é contaminado, todo o seu humanismo e demais valores, não conseguem salvar porque não passaram pela mediação da Cidade de Deus (Igreja). Consequentemente o Cardeal Ratzinger condena duramente a teologia da libertação porque esta buscava a libertação pelos pobres mesmos, feitos sujeitos autônomos de sua história. Mas como não se articula com a Cidade de Deus e sua célula, a Igreja, é insuficiente e vã.
A terceira é uma interpretação pessoal que dá do Concílio Vaticano II quando fala da Igreja de Cristo. A primeira elaboração conciliar dizia que a Igreja Católica é a Igreja de Cristo. As discussões, visando o ecumenismo, substituíram o é pelo subsiste para dar lugar a que outras Igrejas cristãs, a seu modo, realizassem também a Igreja de Cristo. Essa interpretação sustentada na minha tese doutoral, mereceu uma explícita condenação do Cardeal Ratzinger no seu famoso documento Dominus Jesus (2000). Afirma que susbsiste vem de "subsistência" que só pode ser uma e se dá na Igreja Católica. As demais “igrejas” possuem “somente” elementos eclesiais. Tanto eu quanto outros notáveis teólogos mostramos que este sentido essencialista não existe no latim. O sentido é sempre concreto: “ganhar corpo”, “realizar-se objetivamente”. Esse era o “sensus Patrum” o sentido dos Padres conciliares.
Estas três teses centrais foram refutadas pelos fatos: dentro do “pequeno mundo reconciliado” há demasiados pedófilos até entre cardeais e ladrões de dinheiros do Banco Vaticano. A segunda, de que a Cidade dos Homens não tem densidade salvadora diante de Deus, labora num equívoco ao restringir a ação da Cidade de Deus apenas ao campo da Igreja. A Cidade dos Homens é atravessada pela Cidade de Deus, não sob a forma de consciência religiosa mas sob a forma de ética e de valores humanitários. O Concílio Vaticano II garantiu a autonomia das realidades terrestres que tem valor independentemente da Igreja. Contam para Deus. A Cidade de Deus (Igreja) se realiza pela fé explícita, pela celebração e pelos sacramentos. A Cidade dos Homens pela ética e pela política.
A terceira de que somente a Igreja Católica é a única e exclusiva Igreja de Cristo e ainda mais, que fora dela não há salvação, tese medieval ressuscitada pelo Cardeal Ratzinger, foi simplesmente ignorada como ofensiva às demais Igrejas. Ao invés do “fora da Igreja não há salvação” se introduziu no discurso dos Papas e dos teólogos “o universal oferecimento da salvação a todos os seres humanos e ao mundo”.
Nutro a séria suspeita de que, tal fracasso e colapso de seu edifício teológico, lhe tirou “o necessário vigor do corpo e do espírito” a ponto de, como confessa “sentir incapacidade” de exercer seu ministério. Cativo de sua própria teologia, não lhe restou outra alternativa senão honestamente renunciar.
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O colapso de sua teologia: razão maior da renúncia de Bento XVI? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU