06 Março 2013
Um padre da diocese de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, tornou-se um dos principais assessores jurídicos do Vaticano e ajudou Bento XVI a formular leis apresentadas como resposta aos casos de pedofilia na igreja.
A reportagem é de Bernardo Mello Franco e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 07-03-2013.
Doutor em direito canônico e há 23 anos em Roma, o monsenhor José Aparecido Gonçalves de Almeida, 52, ocupa o terceiro posto na hierarquia do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, o departamento jurídico da Santa Sé.
Conhecido por fiéis paulistanos como Padre Cido, ele redige pareceres em latim e integra um grupo de menos de dez brasileiros com cargos de chefia na Cúria. O mais destacado é o cardeal catarinense João Braz de Aviz, que votará no conclave.
Há três anos, Almeida foi escalado para atuar numa comissão encarregada por Bento XVI de fechar o cerco a religiosos acusados de assédio sexual a menores.
O trabalho resultou, entre outras coisas, no aumento dos prazos de prescrição desse tipo de crime. Agora, os sacerdotes que usarem a igreja para abusar de jovens podem ser punidos até 20 anos depois da descoberta dos casos.
Almeida diz que a medida reduzirá a impunidade e defende o papa emérito das críticas de que teria sido leniente com escândalos que mancharam seu pontificado.
"Bento XVI foi corajoso. Viu o problema, disse que havia uma imundície na igreja e mandou fazer uma legislação nova para ajudar a resolvê-lo."
A entrada no direito canônico aconteceu por acaso, quando o jovem que havia abandonado um emprego no Banco do Brasil para virar padre recebeu uma proposta do bispo de Santo Amaro, dom Fernando Figueiredo.
"O bispo me convidou parta estudar e pediu que me dedicasse ao direito canônico, porque ninguém queria saber isso na época. Fui o primeiro padre da diocese a estudar no exterior", orgulha-se.
O "vestibular" foi numa paróquia de Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, onde ele recebeu ameaças de morte ao pregar em favelas já dominadas pelo crime organizado no início dos anos 80.
"Tinha uma relação melhor com os bandidos do que a polícia", conta. "Muitos policiais não gostavam de padres que defendessem os direitos humanos."
Numa ocasião, o sacerdote atravessou um tiroteio no volante de um jipe para resgatar freiras antes de uma missa. Em outra, foi ameaçado pelo chefe do tráfico após encomendar a alma de um ladrão vítima de linchamento.
"Acharam ruim que eu fizesse o funeral de um bandido. Mas ele também era filho de Deus, e uma oração não se nega a ninguém", afirma.
Da temporada na periferia, o padre nascido em Ourinhos (378 km de SP) faz uma autocrítica sobre a perda de fiéis para as igrejas evangélicas.
"Durante um bom tempo, os padres tiveram muita preocupação social e descuidaram um pouco de lado do lado espiritual. A gente falava dos problemas, mas as pessoas também queriam ouvir uma palavra de fé", diz.
O religioso chegou a Roma em 1990 para estudar numa universidade mantida pelo Opus Dei. Não entrou formalmente na prelazia, tida como uma das mais conservadoras da igreja, mas adotou o uso do cilício, objeto de autoflagelação colado à perna.
Ele sustenta que há preconceito contra a prática e diz que ela causa menos dor do que "permanecer horas sentado num confessionário".
"O cilício incomoda um pouquinho para lembrar que o nosso corpo também pertence a Deus", afirma.
DOGMAS
Com a proximidade do conclave, o monsenhor tem dedicado parte do tempo a reler as normas que envolvem o processo de escolha de um papa. Ele diz que os cardeais que se trancarão na Capela Sistina devem votar sob inspiração do Espírito Santo, mas podem cometer erros.
"Como a metodologia da eleição é humana, os cardeais podem não escolher a pessoa mais virtuosa ou adequada", explica.
"Mas o novo papa, depois de escolhido, ganha o dom da infalibilidade. O poder de um papa não vem dos cardeais, vem de Deus."
O monsenhor tem mandato de cinco anos no cargo e deverá continuar com o novo papa assim que ele for escolhido, até o final do mês.
O sucessor de Bento XVI, diz Almeida, não poderá mudar doutrinas criticadas como o veto à ordenação de mulheres e a caracterização do aborto como delito que pode levar à excomunhão.
"João Paulo II declarou que a igreja não se sente habilitada a ordenar mulheres porque o Senhor não as ordenou. É uma doutrina que não pode ser modificada."
"O papa também não pode mudar a composição hierárquica da igreja. Não pode dizer que não haverá mais outros bispos, que só ele vai governar", exemplifica.
O canonista conta ainda que as leis do catolicismo preveem uma terceira hipótese para o fim de um pontificado, além da morte e da renúncia. É a prática de heresia, que ocorreria, por exemplo, se um líder da igreja dissesse que Jesus não ressuscitou.
"O papa que comete heresia ou cisma deixa automaticamente de ser papa", diz.
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De Parelheiros ao Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU