03 Março 2013
Para compreender as forças que provavelmente irão influenciar o iminente conclave para eleger um sucessor ao Papa Bento XVI, comecemos pelo óbvio. Primeiro, um conclave não é uma convenção política. Tanto João Paulo II quanto Bento XVI nomearam cada um dos 117 cardeais que irão participar das votações, incluindo 11 norte-americanos. Por isso, haverá pouco confronto ideológico. Não importa o que aconteça, a Igreja quase certamente não vai reverter as suas proibições com relação ao aborto, ao casamento gay ou à ordenação sacerdotal de mulheres.
O reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 01-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As transições papais têm mais a ver com mudanças no tom do que na substância. Por exemplo, imaginem duas respostas diferentes do novo papa sobre o casamento gay.
Resposta um: "Ataques contra a família são um câncer moral, e devemos defender a verdade de Deus".
Resposta dois: "O ensino da Igreja é bem conhecido, mas o nosso desejo é ir ao encontro das pessoas em um espírito de amor".
É o mesmo conteúdo, mas a sensação é muito diferente.
O segundo ponto é que o conclave de 2013 é diferente da última edição de 2005, em cinco aspectos-chave:
• Este conclave segue-se à renúncia, ao invés da morte. Não haverá elogios fúnebres intermináveis, nenhuma onda de luto, de forma que os cardeais possam sentir uma maior liberdade para serem críticos. Além disso, tendo dado um passo inesperado, Bento XVI encorajou a que se pense de forma diferente.
• Em 2005, apenas dois cardeais haviam estado em um conclave antes – o norte-americano William Baum e Joseph Ratzinger, que se tornou Bento XVI. Desta vez, 50 dos 117 eleitores são veteranos em conclaves. Isso poderia significar que os cardeais estarão mais bem organizados, mas também poderia augurar um processo prolongado se todos esses veteranos quiserem ter uma palavra a dizer.
• Parecia claro em 2005 que as rodadas de abertura se configuraram como um "sim" ou um "não" a Ratzinger. Hoje, embora haja uma série de figuras percebidas como plausíveis, não parece haver um único ponto de referência.
• Da última vez, havia uma possibilidade de chegar a uma votação de maioria simples, após mais de 30 rodadas. Uma vez que um candidato cruzasse o limiar de 50%, a sua eleição parecia inevitável. Bento XVI removeu essa disposição em junho de 2007, o que significa que o novo papa tem que obter dois terços, talvez tornando o compromisso essencial.
• Em 2005, Ratzinger se posicionou idealmente para consolidar o consenso em seu papel de decano do Colégio dos Cardeais. Desta vez, o decano é o cardeal italiano Angelo Sodano, que já tem 85 anos. A outra figura-chave no interregno, o cardeal italiano Tarcisio Bertone, o camerlengo, não é visto como um sério candidato. Como resultado, ninguém tem uma vantagem intrínseca durante o período de transição.
Tomados em conjunto, esses contrastes com 2005 sugerem que é mais difícil fazer apostas sobre a eleição papal de 2013 do lado de fora, e, do lado de dentro, pode ser ainda mais complicado forjar uma coligação vencedora.
Por enquanto, a dinâmica parece estar se configurando como uma disputa entre quatro campos principais. Para ser claro, não se trata de blocos abertos com plataformas e porta-vozes, mas sim instintos que circulam entre os cardeais, que colidem com relação a alguns pontos de vista sobre o futuro e se sobrepõem com outros.
O primeiro é o que podemos chamar de "campo de governo", ou seja, cardeais que acreditam que a administração interna da Igreja, começando pelo próprio Vaticano, sofreu durante os anos de Bento XVI. Em geral, eles não culpam Bento XVI tanto quanto as pessoas ao seu redor, começando por Bertone.
Esse campo ficou visível pela primeira vez em 2009, quando uma polêmica envolvendo a revogação da excomunhão de um bispo negacionista sugeriu uma incapacidade de Bertone e de sua equipe de desarmar bombas antes que elas explodissem. Agora essa insatisfação persistente encontrou uma voz. No dia 12 de fevereiro, apenas um dia após o anúncio de Bento XVI, o cardeal Joachim Meisner, 79 anos, de Colônia, Alemanha, revelou que ele havia apelado junto a Bento XVI, em nome de um grande número de cardeais há quatro anos, para que Bertone fosse destituído.
Obviamente, isso não aconteceu.
"Os ratzingerianos são leais", disse Meisner em uma entrevista a um jornal alemão, "e isso nem sempre facilita as suas vidas".
Esse campo de governo irá procurar um papa mais inclinado a tomar as rédeas em suas próprias mãos, ou ao menos ser mais inteligente com relação à nomeação de assessores, com capacidade para fazer com que os trens andem nos trilhos.
No passado, quando os cardeais falavam sobre "governo", muitas vezes era um código para um papa italiano, na pressuposição de que os italianos possuem um gene especial para a administração eclesiástica. O recente escândalo Vatileaks, no entanto, pareceu destacar o pior das mesquinhas disputas italianas e pode ter minimizado a preferência por um candidato italiano.
Em segundo lugar, há o "campo pastoral", ou seja, cardeais que procuram por um pontífice menos ideologicamente definido, com capacidade para curar divisões internas, como a recente rebelião dos padres na Áustria, e que tenha um novo olhar sobre questões espinhosas, como a Comunhão para os católicos divorciados e em segunda união.
Um ponto de referência para esse campo pode ser o cardeal Christoph Schönborn, de Viena, dominicano e protegido teológico de Bento XVI, que manteve abertas as linhas de comunicação com os seus sacerdotes dissidentes e deu a entender que estaria aberto a repensar o celibato obrigatório.
Ao longo dos próximos dias, sempre que você ouvir um cardeal anunciar que a Igreja precisa de um papa "pastoral" – como fez o cardeal italiano Giovanni Lajolo no dia 16 de fevereiro, ao dizer que é isso que os tempos exigem, em vez de um burocrata vaticano –, esse é o tipo de coisa que eles têm em mente muitas vezes.
Schönborn não é nada de esquerda, mas também não é um ideólogo. No entanto, não está claro se os cardeais estão preparados para eleger outro europeu de língua alemã.
Outra força é o "campo do Terceiro Mundo", ou seja, um bloco que acredita que é hora de a Igreja eleger um papa que possa dar um rosto à crescente pegada católica fora do Ocidente.
O cardeal Peter Turkson, de Gana, atual presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz do Vaticano, é um representante desse grupo.
"Eu acho que, de certa forma, a Igreja sempre esteve e está pronta para um papa não europeu", disse ele à Associated Press no dia 13 de fevereiro. Quando o ganês de 64 anos foi perguntado se ele poderia ser esse papa, Turkson disse: "Eu sempre respondi: 'Se for a vontade de Deus'".
Não são apenas os terceiro-mundistas que defendem isso.
"Quando você simplesmente olha para as estatísticas, dois terços da Igreja estão fora do Ocidente. Esse é um movimento do qual devemos tomar consciência", disse o cardeal Theodore McCarrick, dos Estados Unidos, em uma entrevista no dia 14 de fevereiro. McCarrick já tem mais de 80 anos e, portanto, é inelegível no conclave, mas irá participar das deliberações que o antecedem.
Em uma nota relacionada, muitos cardeais identificam a relação com o Islã como uma prioridade fundamental para o próximo papa, e alguns acreditam que um candidato com profunda experiência pessoal de contato com os muçulmanos pode ser o mais apropriado.
Finalmente, há o que poderia ser definido como o "campo evangélico", isto é, cardeais que procuram por uma continuidade intelectual com o ensino do papado de Bento XVI, mas talvez com um tato um pouco mais popular e uma orientação profundamente missionária.
O cardeal Angelo Scola, 71 anos, de Milão, frequentemente é visto como uma figura de liderança nesses círculos, um especialista em antropologia moral que vem dos mesmos círculos teológicos de Bento XVI, mas que passou mais tempo nas trincheiras pastorais e que tem um maior nível de conforto com a mídia e com a cena pública.
No dia 17 de fevereiro, Scola liderou um grupo de bispos da região italiana da Lombardia para ver Bento XVI, o último grupo de bispos que ele encontraria em suas regulares visitas "ad limina" a Roma. Bento XVI convidou-lhes a serem uma "luz para todos", uma consideração dirigida a todos os bispos, mas, na atmosfera quente do período pré-conclave, alguns também leram isso como um sutil aceno a Scola pessoalmente.
* * *
Na realidade, as fronteiras entre esses campos são porosos, e muitos cardeais se identificariam com mais de um deles. Schönborn, por exemplo, é bem-visto por muitos dos cardeais "evangélicos", que também tem grande consideração por alguns candidatos do mundo em desenvolvimento, como o cardeal Robert Sarah, de Guiné, que atualmente chefia o departamento de caridade do Vaticano, Cor Unum.
A necessidade de construir um consenso pode augurar uma busca por um candidato que apele a vários desses grupos.
O cardeal Leonardo Sandri, por exemplo, é um argentino de 69 anos que passou a maior parte da sua vida na Itália. Por isso, ele une o Primeiro e o Terceiro Mundos. Ele foi o substituto, ou chefe de equipe, de João Paulo II, e por isso tem uma capacidade comprovada para governar. Como produto do corpo diplomático do Vaticano, ele é visto como um moderado pragmático sobre a maioria das questões, apelando ao instinto pastoral.
O cardeal Albert Malcolm Ranjith Patabendige Don, de Colombo, Sri Lanka, é um favorito entre os cardeais mais "ratzingerianos" por causa de sua insistência sobre o decoro litúrgico, e esse purpurado de 69 anos também seria um símbolo atraente do crescimento do catolicismo fora do Ocidente.
Se Sandri ou Rnajith irão surgir como sérios candidatos, é uma incógnita, mas eles representam o apelo "suprapartidário" que a situação pode exigir.
Como veterano observador vaticano, o italiano Andrea Tornielli escreveu: "Desta vez, pode ser verdadeiramente complicado chegar à fumaça branca".
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A escolha do papa: uma disputa entre quatro campos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU