Por: André | 27 Fevereiro 2013
A Igreja de Roma é retratada pela mídia como um museu dos horrores. No passado foi inclusive pior. Mas há 500 anos um Papa fez o milagre que hoje todo o mundo admira. Uma lição para o iminente conclave.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada no sítio Chiesa.it, 25-02-2013. A tradução é do Cepat.
A mídia compete nestes dias na difusão de um retrato muito negativo da Igreja: tudo são intrigas, avidez, traições, morbosidades sexuais. Bento XVI teria se rendido, abrumado por esta abjeção, que teria infectado também o colégio cardinalício chamado para escolher o sucessor.
É uma maneira de apresentar os fatos que, deliberadamente, obscurece a verdadeira identidade do pontificado que está terminando e a posta em jogo tanto do destino da civilização humana, como também da vida de cada um dos seres humanos. Os discursos de Bento XVI em Regensburg, Paris, Berlim, suas homilias, seu magistério, abriram uma confrontação de alcance histórico entre a Igreja e o mundo moderno sobre as questões últimas, essenciais, que é impossível ignorar.
Há exatos 500 anos, precisamente por estes dias, morria Júlio II, o papa que chamou Miguel Ângelo para pintar o afresco no teto da Capela Sistina, capela na qual os cardeais se encerrarão em breve para a escolha do novo papa.
Também nessa época a Igreja romana estava cheia de pecados e pecadores, era a Babilônia descrita com horror por Martinho Lutero.
Antes de Júlio II havia reinado Alexandre VI, chamado no século Rodrigo de Borja, e cujo filho César havia inspirado “O Príncipe” a Maquiavel. O próprio Júlio II era um homem de armas que, quando era mais jovem, empunhando a espada, havia liderado o assalto à fortaleza de Mirandola.
Entretanto, quando enfrentou a morte, no dia 21 de fevereiro de 1513, as crônicas o descrevem “con tanta devotione et contrizione che pareva un santo” (“com tanta devoção e contrição que parecia um santo”).
Mas o Papa Giuliano della Rovere, além das campanhas militares e das tramas políticas para assegurar à Igreja romana a autonomia e a liberdade das potências da época, foi também portador de uma visão teológica e sapiencial grandiosa, de uma inaudita síntese entre fé cristã e civilização clássica, entre “fides” e “ratio”, maravilhosamente infundida em obras primas da arte que hoje o mundo inteiro admira maravilhado.
É isto que resta do papa Júlio II, esta é a sua verdadeira identidade, sua mensagem imortal.
A este Papa, no dia do aniversário de sua morte, no dia 21 de fevereiro, o L’Osservatore Romano dedicou uma página inteira, que se abre com um cativante autorretrato escrito por Antonio Paolucci, diretor dos Museus Vaticanos.
Porque também os Museus Vaticanos, em seu núcleo inicial, foram uma genial invenção de Júlio II, com as estátuas antigas que fez colocar nos jardins do Belvedere por seu arquiteto de confiança, Bramante, assim como os afrescos dos quartos do apartamento papal encomendados a Rafael, com vista aos mesmos jardins.
Redescobrir a concepção e o nascimento deste primeiro núcleo dos Museus Vaticanos significa abrir o olhar sobre uma visão que poucos conhecem plenamente, mas que ainda hoje tem consequências excepcionais e extraordinariamente atuais por sua coincidência com as linhas mestras do pontificado de Bento XVI.
No sábado, 23 de fevereiro, ao terminar os Exercícios Espirituais, o Papa Joseph Ratzinger voltou uma vez mais, precisamente, à união por ele tão amada entre a razão e a arte, a verdade e a beleza, embora contraditas “pelo mal deste mundo, pelo sofrimento, pela corrupção”.
“Os teólogos medievais traduziam a palavra ‘logos’ não somente pela palavra ‘verbum’, mas também pela palavra ‘ars’: ‘verbum’ e ‘ars’ são intercambiáveis. Só com estas duas palavras juntas aparece, para os teólogos medievais, todo o significado da palavra ‘logos’. O ‘logos’ não é só uma razão matemática; o ‘logos’ tem um coração: o ‘logos’ é também amor. A verdade é bela, e a verdade e a beleza se dão as mãos: a beleza é o selo da verdade”.
Para penetrar nesta visão de grande envergadura – que parte de Júlio II e chega a Bento XVI – falta ler o escrito publicado mais abaixo, também ele tirado do L’Osservatore Romano de 21 de fevereiro, aqui em uma versão mais extensa.
A autora é historiadora da arte e especialista no tema. Ela publicou na Accademia dei Lincei um ensaio consagrado à obra de Giuliano della Rovere.
O sinal indelével deixado por esse papa, de Sara Magister
Sigamos os passos de um viajante de 500 anos atrás. A fama do jardim de estátuas antigas criado no Vaticano pelo Papa Júlio II (1503-1513) chegou até seu distante país havia. Uma vez percorrida a Itália, atravessou o Tíber pela ponte Milvio, na qual ainda ressoavam épicas batalhas. Sua meta estava precedida por uma vasta área solitária, coberta de verdes prados. E eis que, no alto da colina do Vaticano, perfila-se o contorno fortificado e austero do palacete do Belvedere.
Ao seu lado se encontrava, em uma torre monolítica, o acesso desejado pelo Papa Júlio para facilitar as visitas à sua coleção sem ser molestado em seus aposentos pontifícios. Nada fazia pressagiar as maravilhas de seu interior, mas, uma vez cruzado o umbral da torre, eis a primeira surpresa: sua base quadrada se transformava no inesperado círculo da rampa helicoidal idealizada por Bramante, o arquiteto do papa. Deviam impressionar ainda mais o ligeiro classicismo das colunas que ritmavam sua ascensão e o inédito dinamismo da estrutura. Desde a galeria aberta na parte mais alta a sensação devia ser, verdadeiramente, a de dominar com a vista toda a cidade de Roma.
Aqui se encontrava a planta do jardim, que ainda estava escondida à vista pela porta de entrada, sobre a qual figurava uma inscrição de tom severo, tirada da Eneida de Virgílio (VI, 258): “Procul este prophani”, mantenham-se distantes, oh profanos! Eram as palavras que Sibila disse a Eneas, no momento da entrada deste no inferno, e para o Papa Júlio II significavam que só quem escutava ou se movia com respeito, como em um lugar sagrado, podia transpor a porta.
E aqui se desvela a meta ardentemente desejada e sobrevém o ápice da emoção. Repentinamente aparecia um luminoso jardim secreto, em cujo centro se encontravam árvores de laranja azeda dispostas em fileiras ordenadas ao longo de um pavimento de barro cozido. Em 1510, os embaixadores da corte de Ferrara haviam visto o temível Júlio II plantar essas árvores com suas próprias mãos e durante todo o tempo de sua audiência. O muro que cercava o jardim estava ritmado por nichos obtidos de sua espessura, habitados por esplêndidas estátuas antigas. Desde a entrada situada a nordeste se vislumbrava em seguida, entre as árvores, a parede sul do pátio, em cujo centro se destacavam as obras mais belas: o Laocoonte, entre o Apolo do Belvedere e a Vênus Felix. No meio do pátio estava a esfinge alongada do Rio Tíber e em um ângulo a estátua de Ariane dormindo, com função de fonte.
Sobre tudo isso reinava o silêncio, interrompido apenas pelo sussurro da água e pelo barulho da folhagem. O perfume embriagador da flor das laranjas azedas completava a comoção dos sentidos. A percepção de estar em um lugar especial, onde o tempo e o espaço fluíam com ritmos distintos dos cotidianos, devia ser muito clara quando, em agosto de 1512, o neto de Pico della Mirandola irá comparar este jardim descomunal com o “bosque de Vênus e Cupido”. Para um filósofo neoplatônico de seu nível, era inevitável pensar no jardim de laranjas habitado pelas imagens de deuses da Antiguidade, da “Primavera” de Botticelli.
Mas quando durante os banquetes que se realizavam ali as palavras dos poetas enchiam o silêncio, e as estátuas, como se estivessem vivas, desvelavam o motivo de sua presença, então tomava corpo verdadeiramente a percepção de que a grande civilização dos antigos havia renascido, e que esse milagre se realizava precisamente e unicamente ali: no seio mais íntimo da Igreja de Roma, junto à sepultura do apóstolo Pedro.
Desloquemo-nos agora para o apartamento pontifício desses anos. O estúdio do Papa Júlio II se chamará depois a “Câmara da Assinatura”. Aqui se encontrava também sua pequena biblioteca privada, pela qual se intui que ele, há já 500 anos, defendia que a ciência e a fé eram integração uma da outra, e que qualquer outra forma de expressão, como a poesia e a beleza, eram vias privilegiadas para o conhecimento de Deus, que nos doou a “mens” e a “ratio”, a capacidade intuitiva e a racional, que inspiram toda forma de arte. E é isto o que Rafael, seguindo o preciso ditado de Júlio II, havia traduzido em imagens nessa câmara, com uma nitidez formal e conceitual formidável.
Sentado na mesa de seu despacho, nos momentos de intervalo, o pontífice erguia a vista para a parede da frente. Rafael havia pintado ao redor da janela o monte parnaso, o reino de Apolo, das Musas e dos poetas. Daqui Júlio II contemplava um de seus grandes projetos, que Bramante estava levando a cabo: o monumental jardim aterrado do Belvedere, definido pelo Papa “Hortus”, com a intenção de recriar no Vaticano os antigos “Horti Romani”. Estes eram jardins onde os notáveis passavam o seu tempo livre, em uma natureza recriada por fontes, estátuas antigas, pórticos e quiosques, onde eram realizados banquetes e recitais de poesia e teatro. Eram também o contexto no qual, já no século XV, se tentava reviver o antigo ideal do “otium” literário, como alternativa de repouso aos cansaços do dia a dia do “negotium”. Mas ninguém, antes de Júlio II, havia conseguido recriar os antigos jardins do “otium” em uma escala tão grandiosamente complexa, inédita e funcional. Em seu cume estava o palacete do Belvedere, construído pelo Papa Inocêncio VIII (1484-1492), cujo lado sul havia sido ampliado com novas estruturas, como o gigantesco nicho com função de fonte, e o Antiquarium, a sede designada pela primeira coleção vaticana, hoje denominada “Patio Octogonal”.
Na história da museologia, o Antiquarium é um dos primeiros espaços construídos “ex novo” para acolher uma coleção de obras antigas, em um contexto deleitado por árvores e fontes e com uma finalidade mais ou menos pública. Mas, qual era seu significado para o Papa Júlio II?
Retornemos novamente às suas câmaras e sentemo-nos em sua mesa de trabalho. A resposta se encontra, outra vez, ali, na parede da frente. Pela janela aberta, a vista dos jardins do Belvedere havia dado forma ao Pátio das Estátuas. E aqui o olhar do pontífice se cruzava com a imagem do Parnaso, pintada nessa parede por Rafael. Assim precisamente tinha que ser, porque aos olhos do Papa os dois lugares, o pintado e o real, coincidiam.
O Antiquarium havia sido concebido como o porta-joias da poesia e da arte. Não é casualidade que a estátua do Apolo do Belvedere, o deus das artes, fosse um de seus principais protagonistas, e quem visitava um lugar tão especial devia necessariamente comportar-se com um respeito sagrado. Contrariamente ao que se esperaria, a coleção de Júlio II contava com pouquíssimas estátuas, parece que menos de dez, enquanto que outras coleções romanas da época tinham mais de 90. Mas a qualidade da coleção vaticana era insuperável porque não havia sido criada para acumular de maneira espasmódica, por puro afã de posse pessoal, mas era fruto de uma escolha severíssima, estendida ao longo do tempo, e também muito favorecida pela Providência.
Por outro lado, quando era cardeal, Giuliano della Rovere havia conseguido adjudicar-se a que muitos considerassem a mais bela estátua da antiguidade, o Apolo do Belvedere, encontrada quase intacta em fevereiro de 1489 em um vinhedo sobre Santa Prudenciana em Roma.
Quando já era pontífice, em 14 de janeiro de 1506, em um terreno privado próximo a Santa Maria Maior ocorreu a descoberta mais impressionante do Renascimento: o Laocoonte. As crônicas da época narram a imensa multidão de curiosos que acorreu ao local: “Tutta Roma die noctusque concorre a quella casa che lì pare el jubileo” (“Toda Roma, dia e noite, acorre a essa casa, de tal modo que ali parece o jubileu”). Júlio II enviou Giuliano da Sangallo e Miguel Ângelo, para que reconhecessem o Laocoonte citado no século I d.C por Plínio o Velho como a obra mais bela de seu tempo. Oferecendo uma soma tal que faz palidecer a concorrência, o Papa converteu o Laocoonte na primeira estátua antiga que cruzou o umbral dos novos palácios pontifícios para além do Tíber. Nas motivações que se apresentaram no documento de aquisição da obra, explicita-se que esta era sinal evidente da “majestas et gratia Romanorum”, onde por “gratia” se entende a recuperação humanística do antigo ideal que vê na beleza estética o espelho das qualidades morais do sujeito representado. Estamos na primavera de 1506, três anos depois da eleição como pontífice de Júlio II.
Mas, fazia tempo que o Papa estava preparando o terreno para a futura chegada da sua coleção, sobre a qual tinha ideias muito claras, pois as havia experimentado como cardeal em sua residência próxima à igreja dos Santos Apóstolos. É sabido, por exemplo, que já em 1505 Bramante estava trabalhando para preparar as condições para as estátuas-fontes do Antiquarium, embora estas só chegassem em 1512.
Mas uma eleição feliz necessita de tempo, paciência e fé. Só em maio de 1507 chega a segunda obra: Hércules e Télefo, encontrada intacta próxima ao Campo de Fiori. Por fim, em outubro de 1508, o Papa transfere dos Santos Apóstolos o Apolo do Belvedere, e talvez também o fragmentado Hércules e Anteu e a estátua de Vênus e Cupido, chamada Vênus Felix. A Ariane dormindo, na época conhecida como Cleópatra morrente, consta como a única estátua adquirida, e não por pouco dinheiro, de outra célebre coleção, a da família Maffei, e já em agosto de 1512 adornava uma fonte, cuja água caía em um antigo sarcófago ornado. A estátua do Rio Tíber também foi transferida para o Vaticano em fevereiro de 1512, pouco depois de ser encontrada perto da igreja de Santa Maria sobre Minerva.
Eis o quanto se pode reconstruir, por enquanto, o primeiro núcleo da coleção vaticana. E estas são consideradas, ainda hoje, as obras primas antigas dos Museus Vaticanos, apesar do milhão de peças que chegaram ao longo dos séculos seguintes.
O que inspirou uma escolha tão feliz? A crítica já está de acordo em sustentar que esta aconteceu também para fazer narrar às estátuas uma história de forma poética. A coleção de Júlio II funcionava, com efeito, como uma sofisticada alegoria mitológica, baseada na poética de Virgílio. Por outro lado, sobre isto advertia a inscrição situada na entrada do pátio, tirada da Eneida. Suas estátuas eram vistas como atores, em um espaço que se assemelhava deliberadamente ao de uma cenografia de teatro, cujos significados simbólicos se ativavam e declaravam cada vez que os poetas as faziam recitar.
Narrava-se, portanto, a história da chamada desse pontífice à missão de devolver à cidade e à Igreja de Roma sua centralidade universal. Assim como os antigos deuses haviam investido o imperador César Augusto com a missão de levar Roma a uma nova era de ouro, agora, após séculos de crise, a Providência havia chamado um novo Iulius para que devolvesse a Roma sua antiga glória, convertendo-a na radiante pedra angular de uma nova era de paz, ordem, prosperidade e, sobretudo, de civilização. E não se tratava de palavras vazias, porque isto estava realmente acontecendo no seio mais íntimo e sacro da Santa Sé, junto à sepultura de Pedro, onde, visitando o Antiquarium, podia-se ver, escutar, tocar com a mão, inclusive cheirar o perfume, do renascimento da universalidade do “imperium” e da civilização dos romanos.
Júlio II, um homem de ação que tinha o dom de uma fé muito profunda, sentia-se realmente investido por Deus para esta missão, já desde que era cardeal. Vinte anos antes de sua eleição como pontífice, de fato, havia usado a arte antiga como alegoria de seus projetos universais para o renascimento da Igreja de Roma. Efetivamente, já em sua coleção cardinalícia podemos reconhecer um precedente tão revolucionário na composição e modalidades expressivas, como na universalidade da mensagem. Porque Júlio II, contra todas as injustas acusações de megalomania, foi um homem que quis colocar todos os seus talentos a serviço da Santa Sé, a quem precisamente quis deixar o seu legado.
Nem todos compreenderam plenamente, ou aceitaram, a mensagem que Júlio II expressou neste maravilhoso porta-joias de arte antiga. Mas deixou sua marca de uma maneira tão indelével e com tal força que ainda hoje, como então, atrai milhões de viajantes vindos de todo o mundo.
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Os subterrâneos do Vaticano e a luminosa janela do Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU