24 Fevereiro 2013
Ernesto Cardenal, padre e poeta nicaraguense, seguidor da teologia da libertação, foi um dos ícones da revolução sandinista de 1979. Hoje, é um dos mais ferozes críticos do regime do presidente Daniel Ortega e... do Vaticano.
A reportagem é de Jean-Michel Caroit, publicada no jornal Le Monde Géo & Politique, 24-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Aos 88 anos, Ernesto Cardenal não perdeu nada do seu entusiasmo contestador. Cabelos brancos e barba combativa, com o eterno barrete na cabeça, o poeta nicaraguense é um dos pouquíssimos padres latino-americanos que expressaram abertamente a sua satisfação pela renúncia do Papa Bento XVI.
Esse apóstolo da teologia da libertação não poupou críticas com relação ao soberano pontífice renunciante, nem com relação ao seu antecessor, João Paulo II, que ele acusava de ter traído o evangelho. Há cerca de 20 anos, ele também é um dos censores mais severos de Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, a quem critica por ter desviado a revolução sandinista.
É ao homem das letras que cerca de 200 poetas de cerca de 50 países prestaram homenagem, depois de participarem, na segunda quinzena de fevereiro, do nono Festival Internacional de Poesia organizado em Granada (sudeste da Nicarágua). O lema dos organizadores, "A poesia é o canto do cosmos", ecoa o Cântico Cósmico, uma das suas obras mais importantes.
No seu discurso inaugural, a poetisa nicaraguense Gioconda Belli saudou o precursor do "exteriorismo", definido por Ernesto Cardenal como "a poesia objetiva, composta a partir de elementos da vida real, de coisas concretas, de nomes próprios, de números, de fatos, de ditos". "Uma poesia impura, única capaz de expressar a realidade latino-americana, de alcançar o povo e de ser revolucionária", disse o poeta, falando de A oração por Marilyn Monroe, que recebeu o prêmio Rainha Sofia de poesia ibero-americana em 2012.
Três anos antes, Michelle Bachelet, então presidente do Chile, havia lhe entregue o prêmio de poesia Pablo Neruda. O grande poeta chileno, juntamente com o norte-americano Ezra Pound, foi um dos seus principais inspiradores. "Pound me ensinou uma coisa muito importante: todos os temas cabem na poesia".
Nascido em 1925 em uma família rica de Granada, Ernesto Cardenal viveu uma juventude despreocupada e festiva. Incentivado pelo primo, o poeta Pablo Antonio Cuadra, estudou literatura na Cidade do México e depois na Columbia University, em Nova York. Depois de um complô fracassado contra o ditador Anastasio Somoza, em 1956 fez uma experiência mística que o fez aportar no mosteiro trapista de Gethsemani, no Kentucky (EUA), onde sofreu uma forte influência do seu superior, o poeta Thomas Merton.
Humilhado por João Paulo II
Ordenado padre em 1965, criou uma comunidade religiosa em uma ilha do arquipélago de Solentiname, no Lago Nicarágua. Essa comunidade introduziu agricultores e pescadores à arte ingênua e se tornou um foco de resistência à ditadura dos Somoza. Durante uma viagem a Cuba em 1970, Ernesto Cardenal abraçou o marxismo, cujo ideal de uma sociedade sem classes se reconecta, segundo ele, ao cristianismo das origens.
Após a destruição da comunidade de Solentiname por parte da Guarda Nacional de Somoza, Cardenal se aproximou da Frente Sandinista de Nacional de Libertação (FSLN). "El Padre", como o chamavam os jovens guerrilheiros, tornou-se ministro da Cultura do governo sandinista na queda da ditadura, em julho de 1979.
É nessa função que ele foi humilhado na frente das câmeras por João Paulo II, em visita à Nicarágua em 1983. Com o dedo apontando para o padre-ministro ajoelhado no tapete do aeroporto de Manágua, o papa lhe intimou a abandonar o cargo ministerial. Em vão. Dois anos depois, o Vaticano lhe proibiu de celebrar a missa.
Atacada de fora pelo Contras, os contrarrevolucionários dos Estados Unidos de Ronald Reagan, corroída de dentro pela corrupção, a utopia sandinista não resistiu ao exercício do poder. Os sandinistas perderam as eleições de 1990. Várias figuras emblemáticas como Ernesto Cardenal e o escritor Sergio Ramirez, ex-vice presidente da República, romperam com a FSLN em 1994.
Ernesto intitulou o terceiro tomo das suas memórias de A Revolução perdida. "Perdida – diz – porque é uma ditadura pessoal de Daniel Ortega – reeleito em 2006, depois em 2011 –, da sua esposa e dos seus filhos".
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Ernesto Cardenal, a constância do contestador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU