24 Fevereiro 2013
A Igreja faz as contas com dois lutos muito difíceis de reelaborar: o do "titânico" João Paulo II e o "incompleto" de Bento XVI. Em uma transição feita de escândalos e de nomeações de última hora.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, nos EUA. O artigo foi publicado no jornal Europa, 23-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A renúncia de Bento XVI abre um vazio a partir de muitos pontos de vista. O vazio mais imediatamente visível é o jurídico-canônico e litúrgico-simbólico. Mas há um vazio ainda mais delicado relativo à gestão da memória desse pontificado, que chega à sua conclusão com um olho nas câmeras e outro no relógio.
Em toda passagem de pontificado, um momento particularmente delicado é o da gestão da memória do pontífice falecido. A "memória institucional" que a Igreja faz de um pontífice falecido não é o contrário, mas sim a companheira da "amnésia institucional" – a necessidade que as instituições e as comunidades têm de esquecer alguns aspectos do seu passado, a fim de manter a coesão e curar as feridas.
Após a renúncia de Bento XVI, a Igreja deverá buscar um equilíbrio entre memória e amnésia que é muito mais complexo do que de costume: o julgamento histórico sobre o seu pontificado permanece em aberto, ainda mais aberto do que para o pontificado carismático global de João Paulo II. Fazer um julgamento sobre o papa emérito Bento XVI ainda vivo, embora retirado, senão recluso, será ainda mais árduo do que foi para João Paulo II imediatamente após a sua morte.
Mas é inegável que o julgamento histórico sobre Bento XVI não poderá deixar de se ligar ao julgamento sobre o pontificado do seu antecessor, João Paulo II, do qual Joseph Ratzinger foi o teólogo de referência para a política doutrinal do pontificado durante um quarto de século. Em 2006, Alberto Melloni prognosticou o pontificado de Bento XVI como um "pontificado de decantação", depois de longos 27 anos do Papa Wojtyla. Se isso for verdade, a renúncia de Bento XVI lançam luz não só sobre a personalidade e a teologia de Joseph Ratzinger, mas também sobre a herança de João Paulo II. Nesse sentido, o dia 28 de fevereiro de 2013 assume o valor de uma cesura, porque, com a renúncia de Bento XVI, esgota-se também o impulso propulsivo do pontificado de João Paulo II, de uma forma mais traumática e verdadeira do que aquele 2 de abril de 2005.
A crise cultural e constitucional da Igreja Católica assume o valor de um apocalipse (em sentido literal) sobre o estado atual do catolicismo: um "levantar o véu" de tudo o que havia sido coberto pelo pontificado carismático de João Paulo II. As divulgações sobre o suposto "lobby gay" no Vaticano são apenas o ruído de fundo e não os sinais a serem captados.
Entre os sinais, no entanto, certamente há o frenesi de nomeações de bispos, núncios e altas autoridades da Cúria, e as "promoções" (como a de ontem, de Dom Ettore Balestrero, até agora poderoso subsecretário da seção para as relações com os Estados, a núncio apostólico na Colômbia), que se encaixam mais em um regime em queda livre do que na Cúria Romana: toda passagem de pontificado deveria assegurar ao novo papa uma liberdade de nomeações próxima ao spoils system, mas essas últimas nomeações feitas in limine, antes do início da vacância da Sé e não depois do fim dela, são apenas algumas das forçações evidentes destes dias.
O pontificado titânico de João Paulo II selou por muito tempo, mesmo após a sua morte, as falhas no sistema católico saído da christianitas medieval. Por esse motivo, a agenda do conclave de 2013 e do próximo pontificado "em convivência" com o papa emérito deve ser lida à luz dos desafios lançados por João Paulo II: desafios que Bento XVI tentou recolher, forçando a mão sobre alguns aspectos (o desafio ao secularismo, a desconfiança com relação às mediações da política) e eliminando outros, típicos do Papa Wojtyla (a relação entre cristianismo e culturas não europeias, a "teologia do corpo" e o "gênio feminino").
O pontificado romano, depois de 28 de fevereiro, deverá se reformular de um modo mais radical do que já fizeram João XXIII e Paulo VI, os papas do Concílio Vaticano II: a relação com a Cúria, com Roma, com a Itália, com o Sul global; o papado como função temporária ou como carisma pessoal; o papado e a unidade de uma Igreja cada vez mais fragmentada; o papa teólogo ou o papa de governo.
Todas essas questões (e outras, como as da sexualidade e do papel da mulher na Igreja, levantadas já no distante 1999 pelo cardeal Martini) foram cobertas pelo manto de João Paulo II. O Papa Bento XVI não conseguiu evitar que viessem à tona e, de algum modo, acelerou a sua vinda à superfície.
Esse apocalipse pode significar renascimento, se passar pelo luto da herança do pontificado de João Paulo II, juntamente com o de Bento XVI: dois lutos diferentes, ambos difíceis de elaborar.
A Igreja Católica deverá celebrar esse luto como um funeral sem um corpo a enterrar. O conclave de 2013 se assemelhará ao Antígona de Sófocles não menos do que ao Habemus Papam de Moretti.
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A dupla herança (Wojtyla e Ratzinger) que complica o conclave. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU