18 Janeiro 2013
A convite do governador do Estado do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, Oneide Bobsin, reitor da Faculdades EST, pastor, integra a Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul, que tem até fevereiro de 2014 para esclarecer as graves violações aos direitos humanos ocorridos no Estado no período compreendido entre 1o de janeiro de 1961 a 5 de outubro de 1968.
“Estou percebendo nas sessões de escuta das pessoas cujos direitos foram negados, que há uma riqueza de material para a reflexão acadêmica, teológica e de outras áreas do saber”, disse Oneide. Afinal, os conceitos com as quais as Comissões se envolvem, como reconciliação, verdade e memória, nasceram da religião e da teologia, lembrou.
A entrevista é da Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC), 15-01-2013.
Eis a entrevista.
Quais foram as atribuições recebidas pela Comissão Estadual da Verdade?
O decreto do governador do Estado Rio Grande do Sul, Tarso Genro, de 17 de julho de 2012, criou a Comissão Estadual da Verdade (CEV). O decreto fala da composição da CEV. Em seu Art. 2 está declarado: “A Comissão Estadual da Verdade, composta de forma pluralista, será integrada por cinco membros, designados mediante ato do Governador do Estado, que não exercem cargos diretivos em agremiações partidárias, de reconhecida idoneidade, conduta ética e notório saber com trajetória dos direitos humanos.”
A primeira atribuição da CEV, segundo o Art. 1, está vinculada com a Comissão Nacional da Verdade, com sede em Brasília. A CEV tem a finalidade de auxiliar a Comissão Nacional da Verdade, que foi criada pela Lei Federal no 12.528, de 18 de dezembro de 2011. Assim, cabe à CEV “examinar e esclarecer as graves violações aos direitos humanos praticados no Estado do Rio Grande do Sul, sem excluir o exame das violações cometidas em outros Estados da Federação e no estrangeiro, de cidadãos naturais deste Estado, durante o período compreendido entre 1º de janeiro de 1961 e 5 de outubro de 1968, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e auxiliar os esforços nacionais em favor da reconciliação nacional”.
São objetivos da CEV, entre outros, promover esclarecimento sobre fatos e as circunstâncias de casos de graves violações aos direitos humanos, reunir documentação no âmbito da administração pública estadual, e “promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de perseguição política, prisões arbitrárias, torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres que vitimaram pessoas no Estado do Rio Grande do Sul.”
Também cabe à CEV “identificar e tornar público os locais e as instituições do Estado do Rio Grande do Sul, relacionados às práticas de violações aos direitos humanos”, assim como o encaminhamento de informações aos órgãos públicos a respeito da localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos. A CEV pode recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violações aos direitos humanos.
A Comissão Estadual trabalha em sintonia com a Comissão Nacional?
A CEV auxilia a Comissão Nacional da Verdade (CNV). As competências da CNV são mais amplas. Por exemplo, ela tem o poder de convocação de pessoas para prestarem informações, ao passo que a CEV limita-se a convidar. Nossa atuação não tem o poder de julgar. Isso cabe ao Poder Judiciário.
Como elas se interconectam? Qual o período que será analisado pela Comissão no Estado?
Ao decretar que a CEV tem a finalidade de auxiliar a CNV, pode-se deduzir que há uma relação de trabalho. O relatório que geraremos na CEV será enviado ao final de 22 meses de trabalho, em fevereiro de 2014, para a CNV. Há contatos constantes entre a coordenação da Comissão estadual exigidos pelos procedimentos de averiguação das violações aos direitos humanos durante o período do regime militar. Nos depoimentos de sobreviventes de torturas têm aparecido uma estratégia importante. O pessoal da resistência nem sempre atuava em seu Estado de origem. Gaúchos, por exemplo, atuavam em outro Estado, onde foram torturados. A vítima pode ser de um Estado, mas o aparato de repressão funcionava numa área das forças armadas noutro Estado. O assassinato do coronel Molina, em novembro do ano passado, é um exemplo do lado dos que comandavam a repressão. Como um dos chefes da repressão nos idos dos anos 70, ele atuava como mandante da repressão no Rio de Janeiro. A documentação que se encontrava em seu poder sobre o desaparecimento do deputado Rubem Paiva demonstra que o referido parlamentar foi morto em âmbito do setor militar. Neste caso, as duas Comissões trabalham juntas, mas com competências distintas.
Qual o período de atividades da CEV?
A Comissão terá 22 meses para gerar um relatório que demonstre a violação aos direitos humanos praticados por agentes do Estado brasileiro contra pessoas que resistiram politicamente a um governo não eleito pelo povo. Mais do que arrolar depoimentos, o relatório deverá apontar os que atentaram contra a vida. As vítimas já foram julgadas, muitas com a sua própria vida. Cabe agora delinear o esquema de repressão militar e responsabilizar o Estado. O coordenador da CNV usa a expressão Estado Ditatorial Militar para descaracterizar a falsa ideia de que foram agentes ou grupos nas Forças Armadas que agiram em seu próprio nome. Também o Poder Judiciário estava amordaçado pelo regime. Temos o compromisso de entregar o relatório em fevereiro de 2014 à CNV.
Já há casos de violação aos direitos humanos revistos pela Comissão, ocorridos no Estado?
São inúmeros. Certamente a Comissão não terá condições de averiguar todos os casos no detalhe. Semanalmente temos sessões para colher depoimentos de pessoas que foram torturadas, ex-presos políticos, parentes que buscam os restos mortais etc. Até agora, decidimos trabalhar com casos emblemáticos, que representam categorias de crimes perpetrados por agentes do Estado Ditatorial Militar. Antecedeu a constituição das Comissões da Verdade a criação e desenvolvimento de grupos, entidades e comitês de memória e verdade, os quais já fizeram um levantamento de inúmeros casos. Agora, a CEV torna-se o espaço do Estado para ouvir, registrar e dar encaminhamento dessas questões. Desde a luta por anistia, em 1979, tanto em âmbito público como em espaço da sociedade civil, grupos, pessoas e comitês vêm se articulando em busca da memória e da verdade. A Comissão da Verdade constitui-se no espaço de Estado para tornar mais vis vel o direito à memória e à verdade histórica. Atrás de nomes como da presidente Dilma Roussef, do governador Tarso Genro, do deputado estadual Raul Pont, entre tantas figuras públicas, há centenas de pessoas em busca da justiça para vivos e mortos.
Por que, na sua avaliação, escolheram um teólogo para integrar a Comissão?
Imagino que o governador Tarso Genro não fez escolhas a partir de critérios profissionais. Na Comissão há uma professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande. Há um defensor público e um desembargador aposentado. Além disso, há um advogado que tem longa militância na defesa dos direitos humanos, identificado, como eu, com a Teologia da Libertação. Na resposta à primeira pergunta os critérios de escolha estão bem explicitados.
Ao perguntar ao governador, por ocasião do convite feito por telefone, indaguei a respeito da contribuição de alguém da teologia para o trabalho da Comissão. Presumo que em primeiro lugar pesou a contribuição da Faculdades EST às lutas pelos direitos humanos, amplamente reconhecida por órgãos públicos e sociedade civil. No âmbito teológico a EST tem sido pioneira no estudo, pesquisa e assessoria das questões de gênero, das questões étnico-raciais (indígena e afro-descendentes), dos direitos humanos e assessoria às políticas públicas voltadas para as maiorias excluídas.
A função representativa de reitor da EST e o meu compromisso histórico com o pensamento crítico, teológico e político, deve ter sido outro critério usados para a escolha de meu nome. Nunca excluí da minha atuação eclesiástica, ecumênica e acadêmica a militância social. Acima de tudo, há uma forte razão para que pessoas cristãs se envolvam nessa luta: Jesus Cristo foi torturado e morto na cruz. Do ponto de vista confessional, somos teólogos e teólogas da cruz.
Essa escolha tem algum impacto na EST ou na Igreja?
Os compromissos institucionais, acadêmicos teológicos e eclesiais, antecederam ao meu nome. Primeiro as causas, depois o indivíduo. Caso contrário, seria um neoliberal. Quando o todo é justo, a justiça se faz ao indivíduo. A escolha passa por aquilo que já estamos fazendo na EST e na Igreja.
É evidente que a escolha do meu nome dará visibilidade ao lugar que ocupo na direção de uma instituição acadêmica e à Igreja à qual sou filiado – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Exerço, pela função, uma representação, mas não fui escolhido para ser representante de instituições na CEV.
Estou percebendo nas sessões de escuta das pessoas cujos direitos foram negados, que há uma riqueza de material para a reflexão acadêmica, teológica e de outras áreas do saber. Esse acervo estará disponível para nós e futuras gerações. A Editora Sinodal já traduziu um livro de César Moya a respeito de temas como reconciliação, perdão e vítimas, prenunciando aos pesquisadores e às pesquisadoras, também da teologia, que há um vasto campo de pesquisa a fim de que o passado seja passado a limpo para que no futuro não haja mais ditadura militar ou de outra natureza. A EST tem uma oportunidade de pesquisa, já que conceitos como reconciliação, verdade e memória nasceram da religião e da teologia.
Há casos de torturas no Estado que religiosos sofreram? E há casos de religiosos entregando pessoas às forças repressoras da época?
Ainda não temos pistas seguras sobre o assunto até agora. Sabemos que lideranças indígenas e de agricultores sofreram torturas ou perseguição das forças de segurança pública, como outras pessoas da resistência de partidos e organizações. Parece ser possível descobrir nesses âmbitos de lutas sociais lideranças torturada e perseguidas. As pastorais da Igreja Católica e as raras atuações das igrejas protestantes exerceram um papel importante na defesa dos direitos dessas coletividades. Por exemplo, o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Encruzilhada Natalino, tinha a presença de sacerdotes católicos. O MST nasce no momento mais forte da repressão no Brasil.
Precisamos mais informações para uma resposta segura. Lideranças de movimentos sofreram torturas. Em alguns lugares, ainda sofrem hoje. Em São Paulo está se constituindo, ou já foi constituído, um comitê de pessoas vinculadas às igrejas para fazer esse levantamento. No ano passado, uma revista de circulação nacional apresentou matéria mostrando os protestantes que foram perseguidos e exilados, bem como destacou nomes de lideranças religiosas e pastores que ainda mantêm a convicção de que o regime militar estava correto em prender e torturar quem “apoiava o comunismo.”
Esse comitê pretende levantar nomes de religiosos das igrejas tradicionais que apoiavam o regime militar e os que estavam na resistência. Como exemplo cita o então líder da Igreja Metodista, Anivaldo Padilha, pai do ministro da Saúde do governo Dilma. Ele foi forçado a deixar o Brasil em razão de sua luta na resistência em âmbito eclesial.
Na pesquisa que Cláudio Fonteles, coordenador da CNV, está fazendo do material recebido de parte das Forças Armadas, o nome do dom Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo na época forte da repressão militar, é citado mais de 1.300 vezes. Dom Paulo foi e ainda é um defensor das pessoas a quem os direitos humanos, individuais e coletivos foram negados.
No prédio do arquivo da CNV em Brasília está escrito num lugar bem visível uma frase que sintetiza a razão de ser das Comissões da Verdade: PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA. PARA QUE NUNCA MAIS ACONTEÇA.
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Um trabalho para dar visibilidade à memória e à verdade histórica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU